Os comprimidos servem para isto: dar visibilidade a outros olhares sobre obras estreadas no mês que passou. Neste caso, temos uma história – e não uma crítica? – sobre a última Palma de Ouro, o grande filme – e o grande amor – com Harry Dean Stanton, a defesa do filme de Louis C.K., a arte de Rodin pela objectiva de Doillon, o espelho de uma juventude por Pedro Cabeleira e uma animação da Pixar que deixa rendido um walshiano.
The Square (O Quadrado, 2017) de Ruben Östlund
A minha crítica não é uma crítica, mas uma história. Que história é essa melhor que uma crítica, e que é crítica ela mesma? Resposta: a narrativa da minha ida à sala de cinema para ver a mais recente Palma de Ouro. Foi numa das salas VIP das Amoreiras, num chuvoso fim de tarde de sábado. Primeira coisa que reparei e que me agradou muitíssimo: sala cheia, com pessoas de todas as idades, sobretudo mais velhas, o que desmistificou por momentos aos meus olhos a ideia de que os cinemas estão tomados por adolescentes – seguramente estão tomados por uma “mentalidade adolescente”, mas essa é toda uma outra história, que não é para aqui chamada. Entrei na sala, sentei-me no meu lugar e, em silêncio, assisti ao filme – é o que faço sempre e recomendo a todos que façam como eu. A sátira desconfortável e absurda – desconfortável na sua absurdeza afundada num lamaçal chamado realidade – começou a gerar os seus efeitos desde cedo. Gargalhadas tímidas começaram a ouvir-se nos primeiros minutos (por exemplo, na sequência do “grito” durante o cocktail de lançamento da exposição), mas elas continuavam a ser isso: tímidas. Uns gargalhavam, outros nem tanto. De tal modo que, a certa altura, ouvi um sonante “xiuuu”. Da escuridão, nas minhas costas, ouvi uma resposta acanhada. Uma mulher brasileira respondeu baixinho: “mas eu estou aqui a ver o filme e mandam-me calar…” Nas Amoreiras – como em todos os cinemas da Lusomundo – há sempre intervalo. Uma interrupção brutal que interrompe o grande sono do cinema, arranca-nos do filme e convida-nos ao consumo – de pipocas e coca-colas. Normalmente, são instantes em que procuro não fazer grande coisa, inclusivamente em que procuro não pensar muito no filme que estou a ver. Também é verdade que os intervalos são por norma, a posteriori, pouco dignos de ser recordados.
Uma pessoa que me é querida dizia-me há dias – citando um sketch de Herman José – que o segredo do melhor bolo-rei está no buraco. Qualquer coisa assim foi evidenciada durante o intervalo da sessão. A senhora que havia sido silenciada pelo tal “xiuuu” sonante aproveitou a interrupção (o “buraco” na sessão) para, de modo igualmente sonante, expressar a sua indignação. Juntamente com o seu marido, apontaram o dedo a quem os tinha mandado calar. Acusaram-no de uma agressão perpetrada durante a exibição. “A gente estava a rir… de uma comédia. Isto é uma comédia, como está anunciado lá fora”, disse o senhor, acrescentando: “Eu sou brasileiro, mas estou em Portugal há três anos. Nunca vi nada assim…” Pois bem, The Square (O Quadrado, 2017) é um filme em que as linhas de demarcação entre arte e vida, entre representação e sociedade estão diluídas, gerando, poderosamente, vários momentos de atordoamento. Em quem? Em nós, espectadores, que muitas vezes somos convocados no filme para pormos em dúvida os limites que pautam a nossa… sanidade. Pois bem, o filme prosseguiu. Só que, a certa altura, a imagem pára. Pensei para os meus botões: “Este Östlund está a levar o delírio longe de mais… agora um freeze-frame injustificado?!” Não, nada disso. A imagem pára, acendem-se as luzes da sala e entra uma funcionária do cinema que, pedindo desculpas pela (nova) interrupção, anuncia a “entrada em cena” de dois agentes da PSP. Pergunta a senhora: “pedíamos ao agressor e ao agredido para se identificarem”. “Mas eles já não estão cá… saíram durante o intervalo e não voltaram”, respondeu alguém em representação de todos nós, espectadores abananados ainda a saírem do grande sono do filme. “Não, o agressor está aqui”, ouve-se ao fundo, na sala. Aí um homem levanta-se e, mudo, “sai de cena” na companhia dos polícias e da senhora da Lusomundo. The Square é um filme hábil, poderoso, mas muito cínico, que, é verdade, contribuiu para tornar possível esta história em que, como dizia Oscar Wilde, a Natureza imita a Arte e não o contrário.
Luís Mendonça
Lucky (2017) de John Carroll Lynch
Creio que se aplicarmos o realismo, essa palavra cruzada de oito letras, a Lucky (2017), ele talvez não passe de um filme banal que elogia, ele próprio, uma certa banalidade. Escrito e realizado por actores sem experiência, tudo se organiza em torno de um diamante que resplandece uma última vez antes de ser levado pelo tempo. Esse diamante é Harry Dean Stanton, e, não há como negá-lo, um dos maiores actores da segunda metade de todo o cinema. O palco para essa última chama, daquele olhar que tudo penetrava, ora impiedoso, ora frágil e com medo, é o deserto, meia dúzia de cactos, umas botas, o mundo a céu aberto e o quotidiano num pequeno vilarejo.
John Carroll Lynch torna demasiado evidente essa moldura em torno dos últimos sorrisos, dos últimos caminhares, uma homenagem que o cinema procura, meio desnorteado, fazer ao próprio cinema. E se a encenação é clara através dos seus olhares para a câmara, das cantigas, dos momentos de recordação de um passado cheio, as cenas vão sucedendo-se como um quebra-cabeças de nível médio. A apologia da simplicidade, o minimalismo metafísico de uma bebida e um cigarro, a capacidade de olhar e aceitar a realidade tal como é. Mas… e aqui reside tudo, um grande filme não é (apenas) affair de cabeça. Como alguém respondia à pergunta “o que é um grande filme”, no documentário sobre crítica de cinema realizado por Maria de Medeiros, Je t’aime… moi non plus: Artistes et critiques (2004): “isso é a mesma coisa que perguntar o que é o amor. Não sei defini-lo mas quando, de repente, aparece eu sei o que é, sinto-o”. A mesma coisa com Lucky, eu sei que esse amor que só se sente pelos grandes filmes lá está. Sinto-o.
Carlos Natálio
I Love You, Daddy (2017) de Louis C.K.
Imaginemos que a leitura de Céline seria proibida porque este esteve envolvido com o partido fascista. Pois bem, não conseguimos pensar em tal coisa, porque Céline é de facto um escritor maior e há que separar entre o autor e a conduta do homem. O que assistimos actualmente, é precisamente esta confusão onde a conduta do homem afecta a sua obra. Isto não significa desresponsabilizar o seu autor, pelo contrário, se Louis C. K. cometeu um crime, há que ser punido. Assim como todos aqueles que durante décadas abusaram do seu poder, para molestar e ofender sexualmente. Mas é justo que o filme pague por isso? Acredito que não.
Esta actual caça às bruxas fará com que um processo necessário, urgente e que peca por ser tão tardio, dê origem a um código perverso e com traços bafientos de quando se denunciava os actores e realizadores comunistas para os proibir de filmar. É pena que os novos moralistas não assistam a este filme, porque talvez a amoralidade deste lhes pudesse refrear o impulso de justiceiros bacocos.
Bernardo Vaz de Castro
Rodin (2017) de Jacques Doillon
Olhando para a filmografia do francês Jacques Doillon parece claro que, pela frequência com que por cá se estreia um filme seu, o seu cinema está naquilo que se chama uma “relação aberta” com os cinéfilos portugueses. Talvez até haja motivos para esta deriva pois pelo menos desde Ponette (1996) que está a atravessar a sua saison en enfer. Aliás, a máquina parece estar a gripar pois este Rodin (2017) surge 4 anos depois do seu último, Mes séances de lutte (2013). Aqui tudo começou com uma encomenda de um documentário biográfico sobre a vida e obra do célebre escultor francês que depois evoluiu para a chamada ficção biográfica. Talvez valha a pena começar por dizer que, se estamos ante um filme algo chocho, ele tem o mérito de procurar escapar a uma tendência dos biopics que, por medo ou compromisso, se movem pela locomotiva da ficha enciclopédica que procura meter todos os feitos significativos do biografado em pouco mais de hora e meia. Doillon poupou-nos a esse fastio e resolveu ser mais comedido. Economia narrativa que se centra sobretudo em três pontos: a encomenda a Rodin, então já na casa dos quarenta, da Porta do Inferno para o Museu de Artes Decorativas de Paris, baseada em passagens de A Divina Comédia, de Dante Alighieri; a sua relação intempestiva com a musa e amante Camille Claudel (Izia Higelin); e o Monumento a Balzac, escultura de homenagem ao escritor, que demorou cinco anos a estar pronta e foi rejeitada pela comunidade de críticos da época.
Mas tratemos agora da chochice. Doillon foi buscar o entroncado Vincent Lindon para o seu Rodin, colocou-lhe uma espessa barba e de repente, como por passes de magia, assistimos ad nauseam a uma ideia que começa até por ser interessante: o paralelismo entre o fascínio de Rodin pelas carnes e o estudo das dimensões anatómicas próprias ao seu trabalho, ou a transmutação do corpo perene na eternidade da pedra. Mas se por aqui podemos aceder às paixões femininas de Rodin e a essa relação flutuante entre corpos reais e corpos de estátua, rapidamente o encerramento das cenas nos quartos e nos estúdios, por onde entra a parca luz do dia, transforma Rodin num filme de perseguições femininas de macho alfa, de intermináveis discussões semi-conjugais e planos de beijos e abraços a dois e a três, num fluir mais baboso do que esclarecido. Figuras como Mirbeau, Monet, Cézanne, Rilke aparecem e desaparecem sem qualquer importância, e continuam as poses, as frases murmuradas pelo grande génio, pleno de virilidade e visão que, lentamente, começa a sair da figura de Rodin e a resvalar para o corpo atormentado do grande artista. O apaixonado pela Mulher e por tricas sentimentais, quer quando toca uma estátua e recorda a sua Camille, quer quando cose um botão de camisa. Sei que é fácil a comparação mas se o filme de Doillon fosse uma obra de Rodin, ela seria o contrário daquela figura que a dada altura ouvimos o escultor dizer que se fosse perfeita ela flutuaria, sem peso. É exactamente esse o problema de Rodin, o peso. O peso da aura do grande artista, o peso do grande erotismo idealizado, o peso daquele que, mesmo quando tenta ser um homem comum, o faz de forma magnânime.
Carlos Natálio
Verão Danado (2017) de Pedro Cabeleira
O personagem de Verão Danado, de Pedro Cabeleira, é o espelho inapreensível de uma juventude concreta. O paradoxo e a potência deste filme joga-se precisamente através deste aspecto. Porque enquanto retrato psicológico este permanece em constante fuga e enquanto retrato sociológico, há o conhecimento profundo das situações, da imagética e do discurso de uma comunidade. Não há qualquer procura existencialista, mesmo que possamos esperar isso de um estudante de filosofia. A actual juventude não comunga mais do signo de Rebel Without a Cause (Fúria de Viver, 1955), de Nicholas Ray, porque esta não procura uma determinação ou sentido superior à sua existência aqui travada. A própria paixão não possui o desencantamento posterior que a geração The Last Picture Show (A Última Sessão, 1971), de Peter Bodganovich, se veria de forma tão cruel retratada.
O que sobra é o vazio, esse espaço além, com múltiplas referências onde o hedonismo é a única forma possível de consumir e ser consumido pela energia que nos move. Este é o mote de uma geração, que tal como nas palavras que ecoam no fim, o cinema de Pedro Cabeleira não quer prestar tributo a ninguém, mas a tudo é devedor. Porque ele feito no agora e o agora exige diferentes linguagem para expressar aquilo que só ganha forma no amanhã. Esse amanhã é sempre adiado, porque está em potência e porque afinal é Verão e o quente exige também a melancolia e o langor da inacção. Por esse motivo, Verão Danado é um filme tão completo quanto inacabado, pois encontra o equilíbrio no desequilíbrio daquilo que está sempre em transformação.
Bernardo Vaz de Castro
Coco (2017) de Lee Unkrich e Adrian Molina
Aproxima-se o final do ano e começam a pulular as listas de melhores filmes. Apanhado por essa leva chamo aqui – em jeito de antecipação – as grandes experiências de cinema que este ano vivi. E em jeito de aforismo místico faço acompanhar cada título de um ditame: Ma Loute (2016) de Bruno Dumont – o prazer do excesso –, Lumière! L’aventure commence (2016) de Thierry Frémaux – o prazer da simplicidade –, Verão Danado (2017) de Pedro Cabeleira – o excesso do prazer – e agora, Coco – a simplicidade do prazer. Quatro filmes que me fizeram chorar, ora pelo cansaço desesperado, ora pelo maravilhamento infantil (e é fácil perceber qual é qual). Não é pois por acaso que coloco o novo filme da Pixar lado a lado com o cinema dos irmãos Lumière. Ambos vivem da mesma matéria: a capacidade de um encantamento primário (ou primitivo) do espectador através da pureza cândida com que enquadram o manancial da experiência humana. A certeza dos planos dos Lumière e dos gestos que se revelam em perfeitas coreografias reencontram-se no coração certeiro (e naturalmente pedagógico, como são todos os corações certeiros) de Coco.
E se o poder emocional da Pixar é conhecido de longa data, ver Coco é atravessar um macadame de nós na garganta, ainda que narrativamente previsível (cheio de plot points e plot twists como ensinam os script doctors). Mas, na verdade, é a natureza previsível do argumento e a “mensagem” mais ou menos empacotada de quase todo o cinema de animação contemporâneo que propícia essa catarse. A qual só é possível dentro do conforto de uma estrutura domesticada e caseira – não tão previsível assim, nem tão empacotado como se poderia esperar. Veja-se o modo como perversamente se inverte do lema “agarra o teu momento” (que é, na verdade, uma mordaz coronhada nas balelas da auto-ajuda). Ou como se discute as fronteiras entre o facto e a lenda (também através do poder mitificador do cinema). E os processos da reescrita histórica sobre pontos de vista contemporâneos (a estátua de De La Cruz, no final, remete para o debate em torno dos monumentos aos generais sulistas dos EUA ou ao do Padre António Vieira). Mas claro, todo esse universo de questões que o filme convoca (e é bem mais vasto que as três anteriores – não esquecer que o centro de tudo são as ideias de enraizamento cultural que tanto enquadram como agrilhoam o indivíduo, na relação com a família, a memória e a tradição) só ganha força pela significação pessoal junto de cada espectador. Processo esse que é, e repito-me, emocionalmente devastador. Aliás, a devastação da canção entre a avó e o neto, no final do filme, só encontra equivalente, neste ano cinematográfico, na punheta hospitalar de 120 battements par minute (120 Batimentos por Minuto, 2017) de Robin Campillo: a mesma sagração da vida (e do prazer que é vivê-la) apesar dos efeitos destrutivos da doença – ora a demência num, ora o VIH noutro.
Ricardo Vieira Lisboa