Je me promenais dans les lignes. Ils ont dû m’apercevoir par une malchance, un intervalle, une mauvaise plantation du décor.
Jean Cocteau, “Visite”
O princípio da distorção
Fallen Angels (Anjos Caídos, 1995), de Wong Kar-Wai, é um filme enquadrado pela sua primeira imagem (abaixo). Depois deste plano, uma analepse retoma um momento temporal anterior, desenvolvendo-se o filme cronologicamente, a partir daí, até regressar, perto do final, à mesma imagem de abertura. Esta torna-se, assim, a imagem paradigmática do filme, em função da qual todo o resto terá de ser perspectivado, tanto ao nível da análise narrativa quanto da análise formal.
Que imagem é esta? Um plano aproximado, a preto e branco, em que se vêem duas personagens. Ela (Michelle Reis), visivelmente nervosa (a mão treme), fuma, olhando o vazio. Ele (Leon Lai), por seu turno, e também fumando, olha para fora de campo. Não se encaram. O facto de se tratar de um plano aproximado concretiza, à cabeça, uma proximidade física entre as duas personagens. Isto passa-se ao nível da evidência física – o plano aproximado faz com que os corpos sejam mostrados juntos, ocupando uma área substancial do campo da imagem –, mas também a um nível mais simbólico: o close up sobre duas personagens é, tradicionalmente, um recurso que figura de forma particularmente económica a proximidade entre as personagens, sendo disto exemplo os abundantes planos aproximados sobre casais que se beijam ou abraçam.
No entanto, aqui, o plano aproximado funciona de forma oposta. Dispondo-os muito perto um do outro, e no entanto mostrando que fitam direcções diferentes, não concorrentes em nenhum ponto, a imagem inaugural sublinha, pelo contrário, a falta de sintonia entre estas duas personagens. Ou seja, se o habitual entendimento do close up enquanto elemento de retórica formal nos levaria a perceber que estas personagens são próximas – fisicamente, mas não só –, o filme perverte este entendimento simples da gramática do cinema com a qual trabalha.
Esta desconstrução simultânea de expectativas romanescas e meios formais de significação opera-se a dois níveis. Por um lado, através da instituição de uma falência primordial na comunicação entre as personagens. Ela pergunta: “are we still partners?”, e, ao fazê-lo, denuncia um impasse no relacionamento do casal, levando o espectador a supor que testemunha uma fase de indecisão num relacionamento amoroso. Não oferecendo resposta, ele confirma a suspeita de crise na relação. Ao iniciar então um diálogo com o espectador através da voz over, ao invés de falar com ela, ele acentua a ideia de que não assistimos, neste plano, a um índice de proximidade entre as personagens envolvidas, dando conta de um problema de comunicação inerente à ambiguidade da relação que as une: sejam “parceiros” no amor ou “parceiros” no crime (o termo partner joga precisamente com essa indecisão central do filme), o que os liga é uma associação com a esfera do indizível e do obsceno que, penitenciando-os, se interpõe também, como um véu opaco ou diferencial, na própria união entre os amantes criminosos.
Por outro lado – e de modo porventura mais significativo –, podemos verificar desde logo que a grande angular surge como um recurso particularmente insólito, uma vez que materializa um contraste acentuado, em termos de significação, com o grande plano. Se o grande plano pretende concentrar o espaço, isolando determinados elementos e reforçando uma ideia de união entre eles, a grande angular serve o propósito de expandir o espaço e distribuir nele os elementos da composição, destacando-os na sua individualidade ou diluindo-os no múltiplo. Aqui, porém, como vimos, o grande plano não significa necessariamente aproximação, e a grande angular não expressa forçosamente abertura. O filme propõe, assim, desde o recurso a esta espécie de contradição formal que o inicia, um entendimento singular da forma – e em particular destes dois processos formais hipoteticamente antagónicos (o plano aproximado e a grande angular) –, dissociado das noções que lhe são comummente associadas. Estes dois elementos serão recorrentes ao longo do filme, e serão trabalhados com vista a um fim semelhante: o grande plano isolará as personagens, e a grande angular (que, em Fallen Angels, é mesmo grande, já que, segundo o director de fotografia, Christopher Doyle, estamos a falar de 6,5mm, tendo sido apenas uma cena filmada em 18mm) – ao abrir o campo de visão para um aumento do espaço circundante – acabará por sublinhar igualmente o isolamento das figuras humanas em relação a esse espaço adicional, dimensão oceânica em que elas, por assim dizer, flutuam solitariamente. Em ambos os casos, e ainda antes de entrarmos na narrativa, a solidão das personagens que encontramos em Fallen Angels (e que é um dos tópicos obsessivos do cineasta) fica, desde o início, documentada visualmente.
Depois do plano inicial, a analepse leva-nos a um momento em que ela limpa o apartamento dele – como convém a um assassino e à sua agente, nenhum deles é identificado pelo nome (embora venhamos a conhecer o nome dele num encontro inesperado com um amigo de juventude) –, sem que ele esteja presente. Ele já nos havia dito, no início, que embora trabalhem juntos há muito tempo, raras vezes se cruzaram. Mantém-se o uso da grande angular, agora enfatizado pela movimentação no espaço extremamente apertado do apartamento, anormalmente distendido pela lente.
Dir-se-ia, por um lado, racionalizando o estranhamento inicial, que o quarto é exíguo, e que por essa razão Doyle precisou de uma grande angular para filmar no seu interior. Por outro lado, à luz do que já adiantei antes a propósito da articulação que aqui se explora entre forma e conteúdo, percebemos que a grande angular não só possibilita filmar num espaço pequeno, como torna esse pequeno espaço notoriamente maior. Como consequência desta amplificação do espaço, a figura humana em campo torna-se mais pequena, e o contraste ou a dissolução entre ela e o meio envolvente evidencia-se. Esta forma de intervenção plástica sobre o espaço, com vista à sua redimensionalização, talvez não esteja demasiado distante de estratégias aplicadas por, a título de exemplo, Caspar David Friedrich nas suas paisagens com figuras humanas (veja-se a este propósito, particularmente, o Monge à Beira-Mar [1808-1810]), sendo, ainda assim, bem singular no domínio do cinema – aparte, naturalmente, o western – enquanto forma de representar visualmente a solidão.
Fallen Angels apresenta-se como uma espécie de neo-noir. Adiante, falarei de homicídios, traições e femmes fatales, sendo evidentemente a partir desses marcadores temáticos que a aproximação ao género se estabelece. No entanto, e à luz da reflexão que tenho desenvolvido, um aspecto menos evidente através do qual o filme de Wong Kar-Wai se aproxima do noir é justamente o trabalho sobre a forma, entendida como matriz compositiva. Tal como no noir clássico o preto e branco, e em particular o trabalho sobre a luz e a sombra, era usado enquanto elemento expressivo que procurava estabelecer uma lógica de significação até certa medida autónoma da intriga (o que se verifica em referências abundantes ao que é entendido como uma atmosfera noir), também aqui o estilo serve um propósito correlato. Esta estilização passa, entre outras coisas, pelo uso da grande angular enquanto princípio de forma. Um recurso como este, para além de ser perfeitamente expressivo (estruturando um filme que adeptos de mensagens e morais podem muito facilmente acusar de “formalismo sem conteúdo”), institui a tensão crucial entre as figuras e o espaço como o principal tema do filme.
O uso da grande angular faz com que o mundo re-apresentado pelo filme seja um mundo muito distinto daquele que o olho humano percepciona habitualmente. É um mundo fundamentalmente distorcido. Não há linhas rectas, e portanto não há ilusão de um princípio de equilíbrio. Pelo contrário, desmente-se a mentira da geometria e reitera-se a noção de um mundo desequilibrado, fora dos eixos. E é precisamente o princípio de visão que a grande angular concretiza que institui no filme uma força centrípeta, mas assente no descentramento. Não se trata aqui apenas das imagens em fuga características do cinema enquanto meio de representação, mas de uma maneira de recriar o próprio mundo como se este estivesse, fatalmente, em fuga. No que toca ao nexo essencial entre vida e arte, à representação da primeira pela segunda, talvez não estejamos demasiado longe, aqui, do universo nervoso de Jean Epstein.
O que escrevo aqui a propósito do filme de Wong Kar-Wai é bem distinto – devo fazê-lo notar, depois da aproximação que estabeleci antes – do que acontece no noir clássico. Através do preto e branco, e dos jogos de luz e sombra, o noir propõe uma visão que, apesar de ter sempre o caos como horizonte (trata-se de um género niilista, dizem), constrói-se habitualmente sobre princípios harmónicos. Há, por exemplo, correspondências simétricas: geralmente, a luz está para o bem como a sombra está para o mal, confundindo-se ambas, talvez, nas zonas de cinza, numa redução maniqueísta, ainda que matizada, desses princípios organizadores da narrativa. Tudo se mistura em determinados momentos, mas há um pré-requisito de ordem nas imagens que nos possibilita lê-las à luz de uma mesma grelha interpretativa. Em Fallen Angels, pelo contrário, a grelha fornecida baseia-se no desequilíbrio, originando uma dimensão de ilegibilidade que é reforçada pela própria carga expressiva, gráfica, decorativa, do trabalho sobre a imagem. Consequentemente, o mundo do filme apresenta-se em estado de liquefacção. É um mundo em fuga, o mundo das imagens. O cinema de Kar-Wai acontece nesta tensão entre o apelo das superfícies (naturalmente não-significantes, sensuais e sensoriais), das emoções (também não necessariamente significantes, como se vê no estado de espírito blue, herdeiro de um indeterminado ennui finissecular), e o apelo do sentido (como fazer sentido da conjugação entre superfícies mudas e emoções elusivas?). Não admira que, através do culto de um estilo sofisticadamente epidérmico, Wong Kar-Wai se tenha tornado um dos maiores mestres do melodrama contemporâneo.
Montagem de atracções
Depois da cena em que a mulher limpa o quarto, é ele quem está no mesmo espaço, pressupondo-se que tenha chegado logo depois de ela sair. O filme acumula, até então, três momentos: 1) eles estão juntos no mesmo espaço; 2) ela está sozinha num espaço diferente; 3) ele está sozinho no mesmo espaço em que ela esteve na sequência anterior. A descoincidência no espaço e o diferimento temporal tornam-se, assim, elementos centrais na economia do filme. A sequência seguinte confirma-o. Ela está sozinha num bar. Levanta-se e percorre todo o espaço. Para o espectador, não é perceptível o que está a acontecer. Logo depois, ela é mostrada no seu quarto a desenhar uma planta num caderno. Percebe-se então que se trata da planta do bar onde ela acabara de estar. Envia-a por fax (tal como a carta, um elemento-chave da descoincidência espacial e do diferimento no tempo) e, de seguida, vê-se o homem a retirar a planta do fax, no seu próprio quarto.
O fax é, assim, a figura que une o espaço dela e o espaço dele. É também, aqui, uma figura da montagem, porque o corte/raccord entre as duas personagens (e os planos que estas surgem) faz-se através da repetição do objecto.
O elemento crucial, no entanto, é a planta que viaja através do fax. Logo depois, compreenderemos que ela lhe enviou a planta para que ele pudesse percorrer aquele espaço sem nunca lá ter estado antes, com o desígnio de assassinar um grupo de homens. Esta é, portanto, uma instância em que, indubitavelmente, ele aprende a realidade através do domínio da representação. Neste momento, o filme propõe a ideia de que o domínio da representação tem valor de realidade, ou que, pelo menos, tem para o seu protagonista precedência em relação a ela. Um princípio semelhante seria retomado e desenvolvido, nomeadamente, em In the Mood for Love (Disponível para Amar, 2000) e 2046 (2004).
A planta também problematiza, novamente, a própria noção da experiência do espaço no filme. Num primeiro momento, a mulher tem de percorrer o lugar pela primeira vez, sem referente prévio algum, descobrindo-o à medida que o percorre. Depois, replica-o em código – o código do mapa. E, por fim, ele percorre o mesmo lugar, também pela primeira vez, mas com um referente prévio. Isto promove três experiências/representações do espaço muito distintas.
O facto de ele aprender a realidade através de uma representação concebida por ela, em particular, pode levar-nos a desconfiar de que ele possa ser uma personagem submetida às regras de um jogo ditado por ela. Ao nível narrativo, isto é explícito na relação profissional mantida por ambos: ela angaria os serviços e ele limita-se a efectuá-los (a certa altura, ele confessa em over a sua incapacidade de acção espontânea, e a sua necessidade de que outros lhe ditem o que tem de fazer, reconhecendo-se marioneta ou, pelo menos, personagem). A um outro nível, perceberemos no final que ela é uma meneuse de jeu e que este filme é, de certo modo, o filme dela. Ou, pelo menos, que o filme dele é, em grande medida, um filme concebido por ela. Perto do fim, quando ele toma a sua primeira atitude autónoma (a decisão de abandonar a parceria e iniciar uma nova vida), ela persuade-o a aceitar um último trabalho que acaba por ditar a morte dele. Isto é, no momento em que ele tenta sair do jogo da representação, traindo a sua natureza de marioneta/personagem e tentando agir como o ser humano que se supõe que seja, é condenado a morrer. Ele é, como tantas outras personagens cujo papel se associa activamente ao faz-de-conta, vítima dos perigos da representação.
Algumas sequências depois, o segundo trabalho do assassino será figurado de forma diferente. Ao invés de mostrar primeiro a mulher a sondar o lugar, depois a conceber a planta, e por fim a enviá-la ao assassino, o filme constrói uma montagem que dá a ver alternadamente o homem e a mulher a percorrerem o mesmo lugar. Um crítico sugeriu que este é o único momento, para além da imagem com a qual o filme inicia, em que as duas personagens partilham o mesmo espaço. O espectador incauto é levado a pensar isto porque, diz-nos a história do cinema, a montagem paralela dá a ver acções diferentes, mas coincidentes no tempo. No entanto, a estranha montagem paralela que Wong Kar-Wai introduz neste momento baseia-se numa coincidência de espaço, e não de tempo. Se lermos esta sequência à luz da primeira sequência do homicídio, que descrevi acima, percebemos que estamos a ver, simultânea e alternadamente, ela a percorrer aquele espaço antes de fazer a planta e de a enviar, e ele, depois de ter recebido e estudado a planta, a executar o assassinato colectivo de que fora incumbido.
Esta desafiante (e realmente original) montagem paralela assíncrona é uma forma económica – mas tão subtil, que passou despercebida – de tornar evidente o papel da partilha dos espaços neste filme. Tornou-se, e com razão para tal, um lugar-comum dizer que o tempo é a noção fulcral do cinema de Wong Kar-Wai. Em Days of Being Wild (Dias Selvagens, 1990), uma personagem passava um minuto com outra em silêncio, terminando-o a dizer que “aquele minuto de co-presença” já ninguém lhes tirava. Fallen Angels reitera, através destas duas personagens, a impossibilidade da partilha do espaço e do tempo, de tal maneira que esta discordância acaba por contaminar a própria retórica formal do filme, assente, como temos visto, no equívoco e na ilusão da simultaneidade.
Talvez ela seja
Noutra cena, vemo-la a limpar o pequeno apartamento do assassino e levar o lixo para o seu próprio quarto. Ela despeja o lixo em cima da sua cama e vasculha-o com minúcia. Diz-nos então, em over, que analisar o lixo de uma pessoa pode dizer-nos muito sobre ela. Foi deste modo que tomou conhecimento do bar que ele frequenta à noite. Um corte mostra-no-la no mesmo bar, sentada naquele que diz ser o banco habitual dele. Desta forma, diz-nos, “sente-se próxima dele”, mas não demasiado próxima. E desenvolve esta ideia: “não devemos querer estar muito próximos de certas pessoas; quando se sabe demasiado sobre alguém, é fácil perder-se o interesse”. E continua: “Sou uma pessoa prática. Sei como fazer-me feliz”. A sequência termina com ela a masturbar-se na cama dele.
Ao assistir-se aos filmes realizados por Wong Kar-Wai nos anos 90, deve sempre questionar-se aquilo que as personagens dizem em voz over. Elas não monologam, mas falam como se soubessem ter um interlocutor (por vezes, até olham para nós – a câmara nervosa e a espaços furtiva é, aliás, tornada análoga do nosso voyeurismo ao longo do filme).
E as personagens falam também, quase sempre, sobre si próprias. O texto que escrevem para os seus filmes é quase sempre expositivo. Elas apresentam-se, e formulam-se, de certo modo, como remetentes e destinatárias desse texto. Sabemos também que são indivíduos problemáticos, com relações complexas com o mundo, com os outros e, principalmente, consigo mesmos. A linguagem (quase nunca realmente falada; quase sempre ao nível da voz over, isto é, do pensamento e não da expressão) é uma forma de dar sentido à sua experiência. Mas o sentido que estas personagens atribuem às suas vidas, no diálogo com os espectadores dos seus filmes, não deve ser tomado inteiramente à letra. A linguagem é o meio através do qual elas buscam um sentido para si próprias, e esse sentido – à semelhança do que acontece connosco, em graus distintos – pode assentar inteiramente na ficcionalidade (qual é o referente real, por exemplo, da palavra amor?). É nesta efabulação que as suas vidas, e os seus filmes, se cumprem.
Na sequência que vinha descrevendo, vemo-la a vasculhar o lixo do homem pelo qual está apaixonada. De alguma forma, os objectos descartados tornam-se, mais do que meros índices de uma figura ausente (pacotes de cigarros com as impressões digitais dele, as latas de cerveja com resquícios de saliva dele), verdadeiros substitutos desse homem, isto é, a única forma através da qual ele adquire presença na vida desta mulher que o ama – tanto adereços cénicos como símbolos. Ela está, portanto, apaixonada por um fantasma, uma ideia (uma personagem de um neo-noir). Ao dirigir-se ao bar que ele frequenta com o intuito de se aproximar dele, sentando-se no banco dele, ela acaba por dar azo a um estranho processo de identificação que é muito típico de Wong Kar-Wai desde, pelo menos, Days of Being Wild: as personagens, um pouco como em Demy, são intercambiáveis: os plots e counterplots que encontram para si mesmas garantem-lhes uma certa singularidade, mas no fundo essas intrigas são uma contingência fruto de um mundo que, por estar em movimento, produz inevitavelmente histórias. Na raiz, as personagens de Wong Kar-Wai confluem todas numa solidão desesperada e num vazio ontológico que tentam, em desespero melancólico, preencher com intrigas amorosas. Nada muito longe da nossa realidade, é certo, mas poucas vezes desenvolvido com tanta sensibilidade como em Wong Kar-Wai (ou em Demy, que já referi, ou no universo literário de Manuel Puig, um autor-chave para compreender a imaginação melodramática do cineasta chinês).
No fim da mesma sequência, ela diz-nos que faz tudo isto porque é uma mulher prática. E de certa forma tem razão, iluminando aqui uma das principais diferenças entre a maioria das personagens de Demy e a maioria das personagens de Wong Kar-Wai. As de Demy não são práticas: entregam-se ao romance e perdem-se inevitavelmente, aprendendo no percurso que, como cantavam os Everly Brothers, “love hurts”. São personagens sem orgulho. As personagens de Wong Kar-Wai, por seu turno, resistem à entrega ao amor, possivelmente por terem já interiorizado a canção dos Everly Brothers (fala-se de pós-melodrama). Em Demy, explodem; em Kar-Wai, implodem. As primeiras são sonhadoras e vivem o sonho (tanto quanto Demy lhes permite fazê-lo), as segundas são desencantadas e habitam a paralisia (de certo modo, as figuras paradigmáticas do cinema de Wong Kar-Wai são os andróides de 2046).
Mas tudo isto que a mulher nos diz talvez seja verdade apenas em aparência. Talvez a protagonista de Fallen Angels não seja tão prática como supõe ou como nos quer fazer acreditar. Talvez ela seja, como o protagonista do filme de Satyajit Ray sobre o qual escrevi anteriormente, apenas uma cobarde. Porque não entregar-se ao amor por razões práticas (não correr os riscos de se aborrecer, de se desencantar, de sofrer) esconde, na verdade, uma incapacidade de viver e, em última instância, um abandono a uma existência num mundo de sombras (o do cinema de Wong Kar-Wai, claro está): aqui, uma vida em que o amor se vive em puro diferimento, sem aquele elemento essencial à realização do amor que Madame Tabard lembra a Antoine Doinel em Baisers Volés (Beijos Roubados, 1968): a co-presença, a vertigem milagrosa da matéria que se encontra no tempo e no espaço.
Forget-me-not
Após ter sido ferido num dos seus trabalhos, o assassino decide abandonar a parceria. Combina um encontro com a sua parceira, com o intuito de discutir a sua demissão. No entanto, ele falta ao encontro, deixando-a à espera. Ele dirige-se ao bar e diz-nos, em over, que ao longo do tempo foi deixando pistas e pedaços de informação para trás, sabendo que ela os recolheria. Isto leva-nos a perceber que, se ele é uma personagem dela, como atrás sugeri, esta é uma personagem com o poder de manipular também o seu autor. Sabendo que ela frequenta o mesmo bar, deixa-lhe uma mensagem, uma moeda e um número junto do barman. Ela descobre que o número diz respeito a uma faixa na jukebox, “Forget him”, aqui na versão de Shirley Kwan mas que também foi cantada por Faye Wong, a actriz que interpretara no filme-irmão Chung Hing sam lam (Chungking Express, 1994) uma personagem análoga a esta de Michelle Reis em Fallen Angels. No filme de 1994, incapaz de expressar o seu amor por um polícia que conheceu no bar em que trabalha, ela passa a ocupar a casa dele sempre que ele está ausente. Esta canção, diz-nos o assassino em over, levará a sua parceira a tomar conhecimento da mensagem que ele não tem coragem de lhe transmitir em viva voz: “esquece-me”.
De um plano no bar durante o qual a vemos, desolada, a ouvir a faixa de Shirley Kwan, passamos para um outro plano, no McDonald’s, em que se vê o assassino sentado a uma mesa. O restaurante está vazio mas, ainda assim, uma mulher loira (Karen Mok) pergunta-lhe se pode sentar-se com ele. O raccord entre o plano no bar e o plano no McDonald’s havia sido feito através da faixa musical, que continua a soar no novo espaço. De forma muito característica do cinema móvel e transitório de Wong Kar-Wai, entramos no segmento desta nova personagem – a mulher loira – através de um tema musical que, dizendo respeito ao drama de outra personagem, tem ainda mais que ver com esta, como veremos de seguida. Os tópicos da memória e do esquecimento (obsidiantes na filmografia do cineasta) foram introduzidos pela canção, e serão desenvolvidos por esta personagem.
Chove torrencialmente quando o assassino sai do restaurante. A mulher loira segue-o até à saída e condu-lo até casa dela. Inicialmente relutante, ele acaba por entrar no quarto. Ela nota que a roupa dele está encharcada e que, por essa razão, ele terá de passar a noite com ela, oferecendo-se também para levar o casaco a uma loja de lavagens no dia seguinte. Ao agir como se fosse sua esposa, ela cria uma espécie de jogo conjugal que será mais tarde desenvolvido em In the Mood for Love.
Ele está na casa de banho a experimentar a roupa que ela lhe empresta para substituir as peças molhadas. Serve-lhe perfeitamente. Ela diz: “ficas muito bem, ainda te serve”. Ele pergunta-lhe a quem pertenciam aquelas roupas, ela não responde.
Neste momento, o espectador tem à sua disposição dois caminhos possíveis de interpretação. Ele pode interpretar a conduta desta mulher como uma tentativa desesperada de não passar a noite sozinha (recordando o título de outro filme nocturno de Tsai Ming-Liang, I Don’t Wanna Sleep Alone [Não Quero Dormir Sozinho, 2006]), abordando um homem qualquer no McDonald’s, persuadindo-o a entrar na sua casa e obrigando-o a vestir roupas que não são dele, e com as quais, portanto, ele não poderá abandonar a casa, sendo assim obrigado a esperar por que as suas roupas sequem. Este espectador será sensível à pergunta do assassino – de quem são estas roupas? – e perceberá que esta mulher terá sido recentemente (no próprio dia?) abandonada por um homem, estando esse acontecimento na origem do seu aparente desespero actual. O assassino torna-se, então, um mero substituto para um original ausente, tal como vimos acontecer em Les Parapluies de Cherbourg (Os Chapéus-de-chuva de Cherburgo, 1963), quando Guy recorre à companhia de uma prostituta perante a ausência de Geneviève. Fiz notar, nesse outro texto, que a semelhança física entre a prostituta e Catherine Deneuve foi essencial para que o processo de substituição pudesse – ainda que deficientemente – efectivar-se. Aqui o mesmo acontece, uma vez que as roupas do homem anterior “servem perfeitamente” ao substituto.
Este espectador replica, provavelmente, o entendimento que o próprio assassino faz desta situação, o que fica evidente na menção que ele faz a “um outro” que veio primeiro. No entanto, outro espectador pode aperceber-se de que um termo usado por ela mina todo este esquema de interpretação. Ela diz, repito: “ficas muito bem, ainda te serve”. Quando ele lhe pergunta, logo depois, a quem pertencem aquelas roupas, ela zanga-se e não responde, porque tinha acabado de fazê-lo sem que ele se apercebesse disso: aquelas roupas pertencem-lhe. O homem que ele está a substituir é, na verdade, ele próprio, sem o saber.
Ainda na mesma noite, ela pergunta-lhe: “sabes porque pintei o cabelo de louro?” Ele responde indiferentemente que não, e ela continua: “para me tornar inesquecível para os outros”. Ele responde que é efectivamente um cabelo especial, e ela pede-lhe que não faça pouco dela. “Estou a falar a sério, tu és uma pessoa especial”. Ela anuncia-lhe que alguém lhe disse aquelas mesmas palavras outrora. Ele pergunta quem foi, e ela revela-lhe: “Tu. Estivemos juntos durante algum tempo. Naquela altura, eu tinha os cabelos compridos. Chamavas-me ‘baby’”. Mas ele não se recorda. “Não faz mal, estamos juntos agora”. “Eu nunca disse isso. Só queria companhia para passar a noite”, ele responde. “Talvez gostes mais de mim amanhã”, diz ela. O par beija-se e ressurge a canção que iniciou a sequência, “Forget him”, regressando o filme – ainda acompanhado pela canção – à mulher morena, que se masturba novamente no apartamento dele, chorando no momento em que atinge o orgasmo.
Anjos chamuscados
Se em Chungking Express uma mulher usava óculos escuros e uma peruca loira para esconder a sua identidade, isto é, não ser reconhecida como quem ela é realmente, em Fallen Angels uma outra mulher pinta de loiro os cabelos para que jamais a esqueçam. No entanto, tal como as heroínas dos melhores melodramas, ela está condenada a não ser reconhecida pelos homens que ama. Este micro-filme dentro do filme (ele mesmo construído sobre duas narrativas distintas, a do trio sobre o qual me tenho debruçado, e uma outra com um jovem mudo como protagonista) recupera uma longa linhagem cinematográfica de personagens, que inclui, por exemplo, a Madeleine de Parapluies e a Meredith Logue de The Talented Mr. Ripley (O Talentoso Mr. Ripley, 1999). Mas estas personagens são frequentes no cinema de Wong Kar-Wai. Para além do caso mais paradigmático da personagem interpretada por Tony Leung Chiu-Wai em In the Mood for Love e em 2046, há ainda, por exemplo, a personagem interpretada por Carina Lau em Days of Being Wild e retomada depois, com outro nome, em 2046.
No universo de Wong Kar-Wai, estas personagens não devem ser consideradas apenas personagens-tipo de melodrama. Pelo contrário, são personagens cuja singularidade melodramática se liga intimamente com as obsessões temáticas e teóricas do cineasta, nomeadamente a memória, a experiência, a descoincidência e a assincronia. De alguma forma, todos os filmes de Wong Kar-Wai trabalham estes problemas sob diversas configurações.
Perto do final do filme, o assassino leva a mulher loira a casa, avisando-a no entanto de que não subirá, e anunciando assim a impossibilidade de encetarem um relacionamento. Após uma breve discussão, ela morde-o no braço e, quando ele lhe pergunta porque o fez, ela responde que se ele poderá esquecer a cara dela, não esquecerá a sua mordidela. Mas ela não quer ser lembrada pela sua mordidela, mas sim pelo seu rosto (segundo alguns, um ingresso no ser). Arrependendo-se, diz-lhe pateticamente: “mas é fácil reconhecer a minha cara, tenho um sinal. Se vires na rua uma mulher com um sinal, posso ser eu. Mas tu não vais reconhecer-me…” Ele responde que a reconhecerá, beijam-se e ele abandona-a para se reunir com a sua parceira, com o intuito de abandonar o trabalho de assassino contratado.
Eles encontram-se, e regressamos ao momento inaugural. Ela pede-lhe que aceite executar um último trabalho. Ele aceita. Pouco depois, morre durante esse trabalho, que rapidamente se configura como uma armadilha. Se antes fora ele o homme fatal ao não corresponder ao amor obsessivo de duas mulheres, fantasmagorizando-as ou obrigando-as a mudar de identidade, isto é, a morrer, no final é ela quem se afirma como a femme fatale deste filme, aquela que, depois de orquestrar a vida do protagonista, encena a sua morte. Abandonar o trabalho mercenário – e desistir precocemente dos jogos emocionais e de faz-de-conta que ele traz consigo –, para se entregar a uma vida nova e livre, é um pecado imperdoável no universo de Wong Kar-Wai.