Neste filme à huis clos, lento e difícil de digerir, temos medo do que aí vem. Não sabemos ao certo o que é, de onde vem e quais as intenções. Mas temos medo. O título do filme participa activamente na construção da tensão quando nos sugere que algo virá à noite. Sabemos que não nos vem aconchegar na cama ou contar “histórias para adormecer”. O ambiente é espesso, sentimo-nos na presença do medo – o medo como personagem, como o que dá corpo à escuridão que é tanta, mesmo de dia – desde os primeiros instantes. Estamos com as personagens, solidarizamo-nos com a sua ansiedade, mas não sabemos grande coisa sobre o que as rodeia, e o que as (quer) come(r) por dentro. Somos lançados para a escuridão, numa narrativa atordoante, desenrolada in media res, que nos oferece terror em fatias muito finas – Trey Edward Shults, um bem-haja para este sangue novo, sabe que a austeridade é uma virtude na criação do mais ressoante terror.
It Comes at Night (Ele Vem à Noite, 2017) obedece a uma economia notável, pesa o lugar de cada gesto, de cada palavra. Os actores participam na precisa, mas nem por isso excessivamente calculada, construção dos ambientes. Eles são realizadores do nosso próprio medo, no filme. Não é caso para menos, já que o fechamento é total: da família naquela casa, das personagens no seu próprio casulo mental. Acima de tudo, vivemos o medo, quase o sentimos como coisa palpável, na psique do rapaz que sonha à noite sobre o incerto de tudo o que vi(ve)u e irá v(iv)er. Estamos num longo, denso, espaço off de expectativas. Sob um mesmo tecto, nós, espectadores, elas, personagens, habitamos um espaço intermedial – entre o dentro e o fora – onde se promete ou a mais autoritária lei da sobrevivência ou a mais temível ordem da morte.
O grande mérito desta que é apenas a segunda longa-metragem deste auspicioso realizador é que nos faz aceder às profundezas da noite de alguns dos nossos mais intraduzíveis receios.
It Comes at Night pode ser uma obra assinada por um jovem cineastas, mas é adulto, porque gere com pinças tanto o que nos dá a ver – e a conhecer – como aquilo que omite ao nosso olhar – e ao nosso saber. É, em certo sentido, como uma segunda versão, mais refinada, de 10 Cloverfield Lane (2016), filme demasiado ansioso que quer explicar e demonstrar tudo. It Comes at Night acompanha as personagens e mostra, pelos olhos e por dentro da psique, as imagens da sua insegurança e medo. Para a construção deste mundo contaminado por uma obsidiante “fobia do mundo”, é decisivo: o découpage de Trey Edward Shults, a sua lenta devoração dos tempos, posta em prática “plano a plano”; o trabalho de luz de Drew Daniels, que faz entrar a noite na casa como uma maldição que abraça de morte os nossos olhos; e, claro, a performance dos actores, com Joel Edgerton (actor imenso) em lugar destaque, um poço de tensão e rosto do desnorte que aqui se quer representar (basta-lhe um olhar para fazer nosso um medo que parece ser, manda a lei da paranóia, só dele).
Tenho falado indistintamente de medo e terror. A ordem de importância neste filme – como nos melhores filmes do género, diga-se – é mesmo essa: medo e terror. Com efeito, o grande mérito desta que é apenas a segunda longa-metragem deste auspicioso realizador, que importa ir seguindo de perto, é que nos faz aceder às profundezas de alguns dos nossos mais intraduzíveis receios. Desde logo, o receio gregário, de estar acompanhado (o inferno são os outros), de braço dado com outro, tão ou mais poderoso: o receio de ficarmos sós, tomados por uma noite que não podemos partilhar (o inferno somos nós). Está visto: o ano desfecha com uma obra surpreendente, para ver no escurinho da sala.