Em 1970 o romancista Darryl Ponicsan escreveu The Last Detail, três anos depois Hal Ashby levou-o ao cinema. Esse The Last Detail (O Último Dever, 1973) contava a história de três marinheiros, dois deles destacados a levar o terceiro a cumprir pena na prisão naval de Portsmouth. Uma missão que se desvia do seu caminho quando o trio se diverte em pequenos e grandes desacatos pela cidade de Nova Iorque. Passados mais de 40 anos o escritor foi convidado a escrever uma “sequela” do romance que depois co-adaptou com Richard Linklater para Last Flag Flying (Derradeira Viagem, 2017). De novo um trio de militares (marines neste caso, não confundir com marinheiros), de novo uma viagem cujo destino é ambíguo e tortuoso, onde cada personagem retoma (num corpo distinto) a rota que o filme-romance anterior havia traçado. Assim Jack Nicholson vira Bryan Cranston, Otis Young passa a Laurence Fishburne e Randy Quaid faz-se Steve Carell (e claro, NYC devém New Hampshire).
Este exercício de transferência é sintomático de uma série intenções que se alteram. Isto é, sinalizam os diferentes propósitos que o filme de Ashby e Linklater procuram desenvolver. O primeiro, a mudança de protagonismo. Onde Detail era tomado pela típica presença maníaca de Nicholson (enquanto jovem), Flag Flying encontra na figura de Carell o seu costumeiro otário adorável (tão doce como inerte). E esta alteração é característica dos cinemas de Ashby e Linklater, entenda-se, a diferença entre o áspero e o meloso. Daí que a insubmissão do personagem de Nicholson se faça agora pela caricatura de Cranston, entre a depressão alcoólica e a soberba infundada. E, claro, Fishburne enquanto pastor evidencia obviamente a passagem do tempo e a alteração cosmética do carácter dos personagens. O segundo, é o tom (consequência directa do protagonista, do universo do realizador e do tempo que agiu sobre os personagens). O filme de Ashby cantava a vida e a liberdade (antes que elas se esgotassem), o filme de Linklater canta a morte e a fixidez (porque são inevitáveis). Aqui o personagem de Carrel esteve preso por ser o bode expiatório de um “crime de guerra” no Vietname ao contrário do personagem de Quaid que roubara uns tostões a uma caridade. O peso da seriedade cobre todo o filme: todos eles são veteranos, todos eles atormentados pelos demónios da luta armada.
O que o filme investiga é o degradar do absolutismo ideológico, do matizar das ideias e, depois, o que sobrevive dessa visão acinzentada do mundo.
Aliás, esse é o tema do filme: uma América onde todos os homens têm a sua guerra. Linklater diz mesmo que este é o seu war movie (sem tiros nem trincheiras). O trio principal sobreviveu ao Vietname para agora enterrar o filho de Carrel, morto no Iraque (e chegam a cruzar-se com um funcionário dos comboios que lutara na Guerra do Golfo, e não era surpreendente se os pais deles tivessem participado na Segunda Guerra Mundial). Essa visão da guerra como coisa geracional é aquilo que Linklater procura observar. De como cíclica e sistematicamente a sociedade americana se vê a braços com um sentimento nacional de insegurança que os motiva a defender uma pátria belicista através do conflito. Várias vezes os personagens se questionam o porquê de todo aquele sacrifício: eram os comunistas, agora os terroristas, o que virá depois?. E chegam mesmo a comentar que os EUA são o único país no mundo que acredita que depois de invadir um país será recebido de braços abertos pela população local. Linklater e Ponicsan encontram aqui o cerne do seu retrato da América: a fé no bem, no certo e no bom, como valores não-subjectivos. Posto doutro modo, o que o filme investiga é o degradar desse absolutismo ideológico, do matizar dessas ideias e, depois, o que sobrevive dessa visão acinzentada do mundo. [Nem de propósito vi ainda ontem Red State (2011) de Kevin Smith, cruel atestado de demência daqueles que acreditam ser donos da razão.]
E o que sobrevive parecem ser os símbolos da nação. Mesmo que esses símbolos remetam para noções diferentes de nacionalidade para cada um. Sendo que a bandeira vermelha, branca e azul de listras e estrelas é talvez o eixo central de uma ideia abrangente de América. Algo que define e enforma os cidadãos daquele país. O mínimo denominador comum do melting pot. Mas como dizia, uma bandeira que remete para o abstracto, para uma ideia de país. Não a bandeira como símbolo militar, antes a bandeira como objecto ritualizado (veja-se a sequência do funeral, os movimentos mecânicos do dobrar da bandeira). Metáfora de qualquer coisa que se perdeu, ou que nunca se chegou a alcançar. Imagem utópica para uma pátria fragmentada. É aqui que Linklater-Ponicsan querem chegar: o que os une afinal, naquele país caótico?
Não é, no entanto, por acaso que para responder a isto o realizador e o argumentista tenham feito de Last Flag Flying um filme de época, situado em 2003. Uma diferença de 15 anos que faz a diferença. Que simplifica, que olha em perspectiva, que já tem a maturidade do tempo, que deixa a poeira do dias assentar. A anacronia do filme produz assim um feito pacificador para com o presente (porque reflecte-o, não o olhando de fronte, como o escudo cromado de Perseu) e uma efeito pacificador para com o espectador (que descomprime do universo funerário do filme através dos gags dos telemóveis e doutras marcas tecnológicas que o argumento sublinha). Se Linklater re-pega numa história já mil vezes contada, fá-lo com esse desejo de expor (de revelar) um país que não se reconhece ao espelho. Mas sendo Linklater, a imagem que encontram reflectida é, apesar de tudo, dourada (no mínimo, esperançosa). E aqui Linklater afirma-se como um dos grandes retratistas contemporâneos da América. Porque se cada geração americana tem a sua guerra, tem também o seu cineasta-pintor: Ford, Altman, Eastwood e… Linklater.