Entre os dias 4 e 16 de Dezembro, o Cinema São Jorge acolhe a Mostra de cinemas Ibero-americanos – no escurinho do cinema. Mostra produzida pela Casa da América Latina no âmbito de Lisboa Capital Ibero-americana de Cultura. São 41 filmes contemporâneos (dos últimos três anos) de 17 países, entre longas, médias e curtas-metragens, e de todos os géneros (ficção, documentário, experimental). Programados pelo português Carlos Nogueira e pela cubana Teresa Toledo, esta é uma oportunidade de observar um panorama muito completo do cinema recente desta região, onde o destaca vai tanto para as primeiras obras (que compõem grande parte da selecção, 11 longas ao todo) como para os nomes consagrados (em especial, José Luis Torres Leiva e Luis Ospina). Para os primeiros dias da Mostra destaco seis filmes: três longas e três curtas, do Chile, Portugal, Brasil, República Dominicana, México e Peru.
Aquí no ha pasado nada (2016) de Alejandro Fernández Almendras – 4 de Dezembro, 21h30, Sala Manoel de Olievira
Depois de um percurso pelos grandes festivais (Sundance, Berlinale, San Sebastián) é apresentado em Portugal – com honras de filme de abertura – Aquí no ha pasado nada. Um filme que consegue duas proezas: a primeira, compreender como pode a inscrição de texto funcionar dramática e dramaturgicamente num filme sobre a juventude (uma vez que o ecrã se preenche frequentemente com texto de mensagens trocadas, as quais são fundamentais no intricado da trama, mas também de passagens de livros que comentam a acção); a segunda, contrói-se qual fábula moderna sobre a passagem da inconsequente adolescência para a idade adulta (passagem essa feita pelo trauma de classe, pela corrupção, pela pressão política e, por fim, pelo compromisso com a “verdade”). O filme de Fernández Almendras encontra o seu centro no modo como desenha o arco da narrativa (impecavelmente construído) que vai da bebedeira informe ao depoimento judicial de fato e gravata. E no entremeio: um rapaz descobre que a piscina dos crescidos está cheia de tubarões.
Verão Saturno (2017) de Mónica Lima – 6 de Dezembro, 21h30 Sala 3
Mónica Lima [depois de ter apresentado no IndieLisboa The Silence Between Two Songs (2013) e Victoria (2015) – filmes onde o classicismo da narrativa e o trabalho exaustivo sobre o argumento se destacam] prossegue o seu cinema da claridade subtil, elevado aqui a uma exploração conceptual impressionante. A saber: a cada cena do filme corresponde um único plano, cada plano faz-se na duração, na profundidade de campo e no recurso à panorâmica. Isto produz um objecto que bamboleia (como a certa altura o fazem as cortinas, com o vento) entre o seu personagem principal e o que o rodeia, sempre em lentas pans de vai-e-vem que parecem deliciar-se mais com o que está entre do que com o que está nos cantos dos enquadramentos. Um apuramento formal (que me fez pensar nos zooms de Hong Sang-soo) que reflecte, depois, a própria história de Samuel, perdido entre Berlim e Lisboa, entre a namorada e a mãe dela, entre a dependência e a independência, entre o reconhecimento e o anonimato. Estreado no festival Curtas de Vila do Conde, é um filme produzido no âmbito da escola de cinema berlinense dffb.
O Peixe (2017) de Jonathas de Andrade – 7 de Dezembro, 19h00 Sala 3
Jonathas de Andrade é um artista que circula entre os meios do cinema e os da vídeo-arte (não será por acaso que este filme tenha estreado em Portugal no festival Curtas de Vila do Conde e poucas semanas depois tenha estado em exposição na Fundação Serralves em versão instalada). Brasileiro, mas com formação pela conhecida escola norte-americana CalArts (aliás, este seu filme é uma cor-produção entre o Brasil e os EUA), o seu trabalho trata frequente de rituais e costumes em desaparecimento [a mais recente edição do FUSO – Festival de Vídeo-Arte de Lisboa exibiu O Levante (2012-2014) exactamente sobre o desaparecimento das carroças do Recife, filme que foi também evento, activismo, protesto e e performance urbana]. O Peixe retrata uma série de homens, pescadores, e uma série de peixes, nos seus braços: um momento de estranha ternura do caçador para com a presa. O homem afaga e acarinha o bicho (Pirarucu, Tambuacu e Tilápia) enquanto este sufoca. Um ritual filmado com uma simplicidade despretensiosa que recusa sistematicamente o etnográfico e o exótico, a favor de um inusitado (homo-)erotismo feito de músculos tensos e lentos zooms. A descoberta do performativo numa sucessão de gestos ancestrais (ou não, pouco importa): teatro da vida e da morte, apaixonado pela doçura do horror.
Santa Teresa y outras historias (2015) de Nelson Calos de los Santos Arias – 7 de Dezembro, 19h00 Sala 3
Vencedor do prémio de melhor filme latino-amerciano no Festival de Mar del Plata, Santa Teresa y outras historias é o filme anterior do realizador dominicano Nelson Calos de los Santos Arias, cujo mais recente Cocote (2017) acaba de vencer o grande prémio do LEFFest 2017, depois de ter estreado no festival de Locarno. Colocando os dois filmes lado a lado, apetece dizer que o título de 2015 é uma pérola brilhante por comparação aos pechisbeque que é o mais recente (jean rouch de segunda categoria). Uma adaptação muito livre de 2666 de Roberto Bolaño, sempre anti-ilustrativa e anti-figurativa. Composto ao sabor do vento, em capítulos dispersos. O filme tanto parte de passagens do livro do escritor chileno como de personagens inventadas e outras baseadas em testemunhos recolhidos. Uma alegre manta de relatos utópicos sobre uma América Latina purgada da violência e da corrupção, onde o que verdadeiramente interessa é a experiência sensorial (e também sensual) provocada pelas diferentes texturas que o realizador convoca: a película e o digital, a fotografia e a imagem em movimento, o arquivo e o contemporâneo, as cores e o preto-e-branco, a cidade a floresta. Contrastes que alimentam um onírico retrato coral (nos dois sentidos da palavra).
Vacío/a (2016) de Carmen Rojas Gamarra – 10 de Dezembro, 19h00, Sala 3
O representante do Peru na Mostra de cinemas Ibero-americanos não é um mas seis filmes, curtas-metragens, que constroem um panorama da cinematografia daquele país e constituem uma aposta dos curadores na movida cinematográfica que lá se anuncia. De entre os vários títulos desta sessão destaco um de apenas cinco minutos: Vacío/a (2016) de Carmen Rojas Gamarra. Pequeno objecto experimental que se apresenta como expiação das ruínas de um relacionamento num vai-e-vem entre a intimidade dos relatos e a natureza pública da forma. Explico-me: a realizadora usa imagens de catálogos do IKEA (vários têm sido os artistas que têm explorado esta publicação, a qual tem mais tiragens que a bíblia; símbolo e sinal do univeralismo dos poder económico e da uniformização cultural provocada pelo capitalismo global) e a voz robotizada de um leitor automático para expressar o abandono de uma mulher que se encontra numa casa que costumava ocupar com outrem. O filme resulta assim da tensão entre a delicadeza triste das palavras e a secura monocórdica do leitor juntamente com o choque entre as imagens que construímos a partir do texto e as outra, banais, do catálogo. Cinco minutos bastam para se revelar uma cineasta.
Joaquim (2017) de Marcelo Gomes – 10 de Dezembro, 21h30, Sala 3
Estreado no festival de Berlim, esta co-produção Luso-brasileira tem aqui a sua ante-estreia portuguesa. Realizado pelo brasileiro Marcelo Gomes, e com um elenco recheado de presenças portuguesas (Nuno Lopes, Diogo Dória, Isabel Zuaa, entre outros), é um filme que vem na onda contemporânea do filme de época feito no contexto de um cinema que promove uma revisão histórica e, igualmente, uma revisão do próprio género (longe dos academismos do filme de qualidade). Este é portanto um filme que produz um olhar sobre o revolucionário-mártir Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier) a partir de um frustração de burguesia, que é naturalmente uma frustração de classe. Um retrato de uma figura histórica antes daquilo que lhe conferiu reconhecimento. Por arrasto é também um retrato do colonialismo português aos olhos de hoje. Filmado entre uma câmara que se agarra aos corpos (e à lama e ao sangue) e outra que compõe e depura um naturalismo clássico, o filme só sobrevive ao seu olhar pedagógico-moderninho quando caminha pelas pisadas de John Huston [The Treasure of the Sierra Madre (O Tesouro da Sierra Madre, 1948)] e devem western garimpeiro sobre a cobiça e a loucura. Mas esse é só uma secção de um filme que procura encontrar na particularidade de um personagem (histórico) o veículo de um olhar (histórico).