Entre os dias 4 e 16 de Dezembro, o Cinema São Jorge acolhe a Mostra de cinemas Ibero-americanos – no escurinho do cinema. Mostra produzida pela Casa da América Latina no âmbito de Lisboa Capital Ibero-americana de Cultura. São 41 filmes contemporâneos (dos últimos três anos) de 17 países, entre longas, médias e curtas-metragens, e de todos os géneros (ficção, documentário, experimental). Programados pelo português Carlos Nogueira e pela cubana Teresa Toledo, esta é uma oportunidade de observar um panorama muito completo do cinema recente desta região, onde o destaque vai tanto para as primeiras obras (que compõem grande parte da selecção, 11 longas ao todo) como para os nomes consagrados (em especial, José Luis Torres Leiva e Luis Ospina). Para os últimos dias da Mostra destaco seis filmes: três longas, duas curtas e uma média-metragem.
Adiós entusiasmo (2017) de Vladimir Durán – 11 de Dezembro, 19h00, São Jorge – Sala 3
O jovem realizador, produtor e actor Vladimir Durán assina a sua primeira longa-metragem com Adiós entusiasmo (2017), estreada na secção Forum da Berlinale 2017, a divisão mais aventureira do festival. Por um motivo que o filme não revela, Margarita (Rosario Blefari) vive enclausurada numa divisão da casa, sendo assistida pelo filho (Camilo Castiglione) e pelas três irmãs (Laila Maltz, Mariel Fernandez, Martina Juncadella), que lhe fornecem os bens que asseguram a sua sobrevivência, a partir de pequenas janelas instaladas no interior da habitação. Vemos Margarita nos grandes planos das reacções nas faces das outras personagens, mas também na sua voz que ultrapassa as paredes da divisão e se espalha até aos limites da casa, tornando-se omnipresente nos assuntos que à família dizem respeito, comentando a acção, apresentando queixas, lançando desafios e promovendo os pequenos teatros que acontecem à sua volta e lhe são dedicados. Por isso, Margarita não apenas corporiza o coro de um teatro grego, expondo medos e segredos das personagens, ou o corifeu, a quem é permitido isoladamente declamar e interrogar, como também Dioniso, que gere o próprio culto através da imposição de uma antecipada festa de aniversário. Por meio de elementos de sátira e de tragédia, as restantes personagens conduzem a celebração, cantando e ofertando a força, na medida em que Margarita o desejar e até ao limite que não ponderam ultrapassar, construindo um exercício poderoso e comovente sobre a solidão na contemporaneidade e o poder que subsiste para a sabotar.
El invierno (2016) de Emiliano Torres – 12 de Dezembro, 21h30, São Jorge – Sala 3
Rodar um filme na Patagónia não é uma tarefa isenta de riscos, principalmente pela beleza de tipo postal do cenário, mas que pode resultar num estudo rigoroso sobre a relação entre monumentalidade e inospitalidade na paisagem, como é o caso de El invierno (2016), primeira longa-metragem de Emiliano Torres, após uma carreira como assistente de realização e argumentista. Numa sondagem da Variety dirigida a directores de festivais sobre o estado do cinema, José Luis Rebordinos (Festival de San Sebastián) aponta El invierno como um dos quatro destaques de 2016, ao lado de filmes como Elle (Ela, 2016) de Paul Verhoeven. Num rancho argentino, o velho capataz (Alejandro Sieveking), que sozinho conduz a manutenção durante o Inverno, recebe a equipa que assegura as tarefas temporárias até à mudança de estação. Antes de um novo Inverno chegar, o capataz é substituído por um rapaz (Cristian Salguero) cuja soturnidade o faz ressaltar do grupo. Numa narrativa mínima, em que as questões da precariedade e dos impulsos capitalistas são apenas sussurrados, é a violência do confronto entre a paisagem e o humano, o gigante e o pequeno, o mensurável e o imensurável, o plano geral e o aproximado que melhor expressa a vulnerabilidade da condição humana. Formalmente, estamos em território do western, portanto. Quando a neve desce dos vizinhos Andes para se propagar pelos vales, também é a calma enganadora do improvável Il grande silenzio (O Grande Silêncio, 1968) de Sergio Corbucci que irremediavelmente se instala, com as paisagens geladas de um imaginado Utah e o seu cavaleiro mudo (Jean-Louis Trintignant) como protagonista.
Minotauro (2015) de Nicolás Pereda, La tierra aún se mueve (2017) de Pablo Chavarría Gutiérrez – 14 de Dezembro, 19h00, São Jorge – Sala 3
Provavelmente um dos títulos mais experimentais propostos pela Mostra, La tierra aún se mueve (2017) de Pablo Chavarría Gutiérrez é uma discussão em torno da linguagem cinematográfica, dos seus códigos e modos de decifração. Numa deambulação por sons e imagens, sem preocupações de ordem narrativa, propõe uma leitura aberta a múltiplas interpretações, cruzando fontes e perspectivas de origens diferentes, como a poesia de Joaquín Vásquez Aguilar em “Erguido apenas”, “Epigramas: Fragmentos inconclusos de una búsqueda cinematográfica” de Diego Amando Moreno Garza, “Cours sur Spinoza” de Gilles Deleuze, um desenho de Miles Davis, “Serpiente en el Arte Prehispánico” da Revista Artes de Mexico e o pensamento de Jean Epstein e Dziga Vertov sobre a linguagem cinematográfica. Minotauro (2015) de Nicolás Pereda é outro titulo repescado da selecção do Festival de Roterdão, neste caso da edição de 2016. Totalmente rodado num apartamento, em que três ocupantes dividem o tempo entre o sono e a leitura, enquanto uma mulher e uma criança se ocupam das tarefas caseiras. Cada leitura de relatos de encontros amorosos, é dirigida a um companheiro que dorme profundamente, insinuando a imagem de um triângulo amoroso entre a mulher e os dois homens. A cinematografia do cineasta taiwanês Tsai Ming-Liang é a referência imediata, mas também a obra literária do checo Milan Kundera, nomeadamente na associação que faz entre o movimento e a memória (La Lenteur,1995). Para Kundera, a lentidão está ligada ao acto de lembrar e o aceleramento ao de esquecer, bem como a velocidade ao fracasso. Em Minotauro, o sono profundo não parece operar de modo improdutivo ou vulgar, mas antes como lembrança e deleite, num acto de resistência contra a velocidade da vida moderna.
Tierra mojada (2017) de Juan Sebastián Mesa, La defensa del dragón (2017) de Natalia Santa – 16 de Dezembro, 17h00, São Jorge – Sala Manoel de Oliveira
Para a sessão de encerramento são propostas duas obras colombianas com diferentes durações: uma curta e uma longa-metragem. Numa área de abundante floresta tropical, impregnada de crenças e lendas, Tierra mojada (2017), de Juan Sebastián Mesa, contorna o mito colonialista do El Dorado, evocando construções em ouro maciço, repletas de tesouros, para se focar na noção local de riqueza enquanto intersecção entre a comunidade humana e a exuberância da flora e da fauna. Fora de campo, a maquinaria lança ruídos furiosos que anunciam um mundo em mudança e assombram o futuro da biodiversidade, temas que, ainda que deslocalizados para um cenário urbano, também são abordados em La defensa del dragón, primeira obra de Natalia Santa estreada na secção La Quinzaine des Réalisateurs da edição de 2017 do Festival de Cannes. A partir de fotografias que o marido, o fotógrafo Iván Herrera, iluminando-se na obra de William Eggleston, Trent Park e Joachim Brohm, captou no centro histórico de Bogotá, Natalia Santa organiza estórias de sucessos passados e fracassos presentes de três velhos amigos (Hernán Méndez, Manuel Navarro, Gonzalo Sagarmínaga), enquanto circulam por armazéns, bares de jogo de xadrez e restaurantes, marcados pelo desenho de letreiros e de grafites. São vidas congeladas num mundo em constante mudança, que aceitam ser reconstruídas pela assunção de riscos e, assim, demonstrando que ainda há espaço para segundas oportunidades. La defensa del dragón é a estreia auspiciosa de uma jovem cineasta que, em vez de nos oferecer o habitual coming of age, olha para a velhice com ternura e maturidade. Uma despedida feliz para uma Mostra que, sem perder gravidade, aborda temas populares a partir de olhares de cineastas que, apesar da juventude, suscitam pistas seguras para a sua obra futura.