A guerra civil de Espanha (1936-1939) preocupou a ditadura portuguesa. O regime salazarista endureceu a repressão aos seus opositores e o recém-criado Secretariado Nacional da Propaganda (SPN) empenhou-se na exibição e produção de filmes que minassem o avanço do comunismo a nível interno e além-fronteira. A partir de 1937 intensificaram-se as sessões de cinema popular ambulante por todo o país e, no mesmo ano, estreou finalmente A Revolução de Maio (António Lopes Ribeiro, 1937), história de uma conspiração bolchevique abortada pela polícia política do Estado Novo. No ano seguinte, Monsanto venceu o concurso de aldeia mais portuguesa de Portugal, registado em documentário produzido pelo SPN e recheado de metáforas sobre a sentinela beirã que defendia o país das nefastas influências vermelhas do outro lado da raia – A aldeia mais portuguesa de Portugal (António de Meneses, 1938).
A Guerra Civil em Espanha (SPN, 1936)
Com os principais laboratórios ocupados pelos republicanos, as forças nacionalistas espanholas dependeram dos seus principais aliados para continuar a travar a guerra da propaganda cinematográfica. Se a Alemanha colocou os seus estúdios à disposição do cinema de ficção franquista, Portugal disponibilizou os laboratórios da Lisboa Filme para a revelação, montagem e sonorização de documentários para a produtora CIFESA ou diretamente para a Falange (Falange Española Tradicionalista y de las Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista, FET y de la JONS). Durante a guerra, sairiam da Lisboa Filme quase duas dezenas de documentários pró-nacionalistas, depois mostrados em Espanha. Foi o caso, por exemplo, dos filmes sobre os funerais de líderes militares nacionalistas como Entierro del general Sanjurjo (1936) ou Entierro del General Mola (1937); sobre as conquistas nacionalistas como De Bilbao para España (1937), En el frente de Asturias/Oviedo, la Mártir (1937), Frentes de Aragón (1937), Santander para España (1937), ou Sevilla Rescatada (1937); ou ainda sobre a batalha de Madrid, como Madrid: Cerco y bombardeamiento de la capital de España (versão de 1938), que retomava imagens de A Caminho de Madrid, realizado por Aníbal Contreiras no Outono de 1936; entre muitos outros documentários, vários deles remontados em versões diferentes ao longo da guerra. Foi um apoio continuado e muito importante, ao ponto de se poder dizer, como o fez o historiador Alberto Pena Rodriguez, que “sem os laboratórios de cinema lusos, provavelmente hoje não poderíamos falar da existência de um cinema franquista durante o conflito.”[1]
A Guerra Civil em Espanha é um dos vários filmes de remontagem do SPN que distorcem as imagens para fazer propaganda anticomunista.
Mas Portugal não se limitou a apoiar a produção franquista. O SPN e outras produtoras privadas fizeram vários documentários com a mesma orientação política. Regressemos ao já citado A Caminho de Madrid, uma longa-metragem sonora portuguesa cujas únicas imagens sobrevivem na remontagem franquista Madrid: Cerco y bombardeamiento de la capital de España (1938). Em novembro de 1936, o Diário de Notícias enviou um conjunto de jornalistas e o realizador Aníbal Contreiras de automóvel desde Salamanca até à linha da frente em Carabanchel. No caminho, Contreiras filmou (com uma Kinamo de motor de corda) as tropas marroquinas de Franco, os quartéis-gerais de Mola e Varela. A chegada aos arredores de Madrid ficou assinalada pelos destroços de dois aviões de guerra: um soviético e outro francês. A equipa instalou-se nas posições nacionalistas em Leganés e Carabanchel e foi dali que assistiu ao bombardeamento da Telefónica dirigido por Jaime Botelho Moniz, fundador do Rádio Clube Português e Capitão de Artilharia da Legião Portuguesa, para lá de grande apoiante da causa nacionalista e dos voluntários portugueses que combateram em Espanha do lado franquista. Justamente devido à sua intervenção no conflito, Botelho Moniz seria mais tarde expulso da Missão Militar Portuguesa de Observação em Espanha. De regresso a Portugal, Contreiras viu o Diário de Notícias desinteressar-se do filme por não o considerar “suficientemente objectivo”[2]. O realizador conseguiu mesmo assim acabar o documentário e mostrou-o por sua conta. O filme obteve algum sucesso e as suas imagens foram reutilizadas em vários outros documentários espanhóis, e até num jornal de atualidades da Paramount, ou não fosse, como explicou o realizador, “um dos raros documentos filmados do lado de Franco” (p. 11). Sobre a falta de objetividade, ficamos conversados.
Madrid: Cerco y bombardeamiento de la capital de España (1938; remontagem de A Caminho de Madrid, de Aníbal Contreiras, 1936) | (c) Filmoteca Española
Mas o meu filme preferido nesta história é um pequeno documentário do SPN intitulado A Guerra Civil em Espanha (1936). Segundo Alberto Pena Rodríguez, poderá ter sido exibido em Portugal “entre Outubro de 1936 e 1938, pela simples razão de que o filme, no seu início, é apresentado como uma ‘sensacional’ reportagem que contém as primeiras imagens das ruas de Barcelona, governada pelas autoridades leais ao governo de Madrid.” (p. 144). O título, aparentemente neutro, esconde um enviesamento da realidade não muito distante do filme de Contreiras, e muito frequente noutros documentários do SPN do mesmo período. Na verdade, A Guerra Civil em Espanha é um dos vários filmes de remontagem do SPN que distorcem as imagens para fazer propaganda anticomunista. Neste caso, os intertítulos e a montagem transformaram as imagens da destruição provocada pelos bombardeamentos nacionalistas em “provas” do suposto “vandalismo” das “hordas marxistas”. Mesmo assim, no final de vários planos, ainda conseguimos ver a população saudando alegremente a presença da câmara. Independentemente destas manipulações grosseiras, o filme também mostra as célebres imagens do “terror vermelho” anticlerical que levou à profanação dos cadáveres de várias freiras, exumados e expostos no exterior de uma igreja de Barcelona.
A Guerra Civil em Espanha (SPN, 1936)
Entre 2007 e 2009, um projeto de investigação conjunto da Cinemateca Portuguesa e da Filmoteca Española identificou todas as imagens sobre a guerra civil espanhola existentes nos arquivos portugueses – muitas delas inexistentes em Espanha. O projeto terminou com a tiragem de várias cópias destas imagens para a Filmoteca Española. Alfonso del Amo García foi uma peça fundamental nesse projeto uma vez que o arquivista, para além de ter assinado várias obras fundamentais de conservação fílmica, é o autor do mais completo catálogo de cinema feito durante a Guerra Civil de Espanha – Catalogo general del cine de la guerra civil (1996). Muitos destes documentários foram incluídos na excelente edição DVD da Filmoteca Española, La Guerra Filmada; e os filmes do SPN podem ser vistos na Cinemateca Digital.
Todas as imagens (exceto indicação em contrário): Col. da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.
[1] Alberto Pena Rodríguez, “O cinema português e a propaganda franquista durante a guerra civil de Espanha”, in O cinema sob o olhar de Salazar, 2000, p.153.
[2] Luís de Pina (ed.), Aníbal Contreiras, 1987, p.11.