Desde o clássico de George A. Romero Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968) que as variantes do “filme de zombies” se multiplicam. Nos últimos anos, vários realizadores, auxiliados por máquinas de produção maiores ou menores, têm celebrado essa morte-vida. Os casos recentes são prova de que a premissa (re)inventada por Romero continua a dar frutos: desde a sátira bélica/política mais ácida [Homecoming (2005)] até ao filme de acção mais lúdico [Shaun of the Dead (Zombies Party – Uma Noite… de Morte, 2004)], passando pela interpretação mais catastrófica e solene [World War Z (WWZ: Guerra Mundial, 2013)]. Esta crónica Civic TV parte de onde tudo – nem sempre, mas às vezes – deve partir: do começo. Um começo-fim, “morto-vivo”, do próprio George A. Romero, um dos (grandes) realizadores desaparecidos este ano e cujo derradeiro sopro, Survival of the Dead (A Ilha dos Mortos, 2009), passou recentemente na televisão portuguesa, no canal Cinemundo. Saltaremos a seguir para uma estreia – directamente na televisão, tal como aconteceu com o filme de Romero, aliás – de um dos títulos mais bizarros do ano cinematográfico, Swiss Army Man (2016), exibido este mês na grelha do canal TV Cine 2. Continuando a “exumar” os mortos, em (des)favor dos “corpos quentes”, prego os olhos num filme rawmântico, exibido no AXN Black, que nos diz que é possível o amor depois da morte: Warm Bodies (Sangue Quente, 2013).

Survival of the Dead (A Ilha dos Mortos, 2009) de George A. Romero
Com o desaparecimento físico de Romero, já se pode olhar para a sua filmografia e distinguir nitidamente duas trilogias zombie. A primeira inclui Night of the Living Dead, Dawn of the Dead (1978) e Day of the Dead (Zombie: A Maldição dos Mortos-Vivos, 1978). A segunda inclui os muito menos vistos e apreciados Land of the Dead (Terra dos Mortos, 2005), Diary of the Dead (Diário dos Mortos, 2007) e Survival of the Dead. A minha proposta é que se comece a rever o conjunto da sua obra, dando especial atenção a estes seus três filmes finais. Sobretudo ao seu finalíssimo Survival of the Dead. De todos os seus filmes zombie, este é aquele que terá sido menos visto e que menos paixões despertou. Trata-se, contudo, de um regresso às raízes para Romero, um dos filmes mais clássicos a saírem do seu imaginário de horror. Ao mesmo tempo, é uma alegoria política mordaz que fala de um povo dividido, de uma guerra fratricida que parece não ter fim. Não entre mortos-vivos, mas, antes deles, entre “corpos quentes”. É velha a conclusão e remete-nos, obviamente, para o primeiríssimo de todos os seus filmes, Night of the Living Dead: o mal está em todos nós antes de estar na “coisa” maligna que nos quer devorar a carne. Os verdadeiros carniceiros são as vítimas dos mortos-vivos canibais, isto é, os verdadeiros carniceiros somos nós. Romero convoca os seus zombies – palavra que evitou durante mais de quarenta anos, para a usar pela primeira vez na sua derradeira obra – para pôr em evidência a maldade que nos corrói a carne e a alma. Survival of the Dead fala desta inclinação nefasta que temos para a auto-aniquilação. E da incapacidade – uma incapacidade política, entenda-se – de sermos razoáveis, de aceitarmos as consequências nefastas das nossas acções. Na divisão que nos aniquila, têm razão poucos ou nenhuns de nós. E os mortos-vivos? Assistem a tudo isto de cadeirinha.
A história de Survival of the Dead passa-se numa ilha americana onde grassa a divisão entre a população: uns estão ao lado do patriarca Patrick O’Flynn, que, à falta da existência de uma cura, defende que se devem eliminar os mortos-vivos e, com isso, roubar a vida à morte, e outros apoiam o patriarca Seamus Muldoon, que, por oposição, defende que os mortos-vivos devem ser poupados à chacina até que uma cura seja descoberta e, com isso, que se deve roubar a morte à vida. A facção de Muldoon acaba por vingar, levando Patrick O’Flynn e seus acólitos a procurarem exílio no continente. É aí que, entre as duas facções, surge uma terceira no filme, um grupo paramilitarizado que procura escapar da epidemia zombie que não cessa de alastrar pelo mundo afora. Uns vão juntar-se a outros, sendo que a união é quase sempre impossível para Romero. Será a lei das balas, a pura lei da sobrevivência, que vai circunstancialmente provocar parcerias entre os grupos, em particular, entre os homens de O’Flynn e os paramilitares chefiados por Sarge “Nicotine” Crocket. Mas no início, entre eles, há guerra. Destaque-se a sequência, ambientada na zona portuária onde busca refúgio o grupo de O’Flynn, em que tem lugar um verdadeiro shootout, com tiros e arremessos de dinamite, digno de Rio Bravo (1959). Uma deliciosa recriação fílmica, muito “velha guarda”, que nos faz lembrar eloquentemente quais são as raízes de Romero.
Amor aos mortos? Sim, mas sem higienizações e com alguma da boa e bela culpa. A culpa adstrita ao facto de sermos o que somos: humanos. A maior das nossas desculpas.
Uma espécie de humanismo retorcido parece moldar a visão do mundo de Romero quando este nos diz que, sim, como afiançaria Jean Renoir, “o mais terrível é que todos temos as nossas razões”, mas, sim também, “nem sempre as melhores pessoas estão do lado das melhores razões”. É isso que já se passava no primeiríssimo Night of Living Dead. Fechados numa casa, os “vivos” entravam numa guerra civil de argumentos sobre se deveriam permanecer no rés-do-chão ou ir para a cave. O elemento mais temperamental deste grupo de humanos alegava que deviam todos barricar-se na cave, mas a sua posição era dúbia, já que a sua filha, gravemente ferida, agoniava lá em baixo. Este homem de péssimo temperamento parecia argumentar em causa própria. Só que Romero foi mais longe e, retorcidamente, acabou por lhe dar razão. A facção – maioritária – que acabou por votar pela opção de permanecer à superfície acabou chacinada pelos zombies, ao passo que o nosso herói, o nosso “resistente” negro que lembra o Sargeant Rutledge (O Sargento Negro, 1960) de John Ford, encontrou abrigo na dita cave onde recusara refugiar-se. Ou seja, urdindo assim a narrativa, é como se Romero nos quisesse dizer que as melhores pessoas podem estar erradas e as piores pessoas podem estar certas. A lei da sobrevivência não obedece a nenhuma ordem moral que nos salve. E o bom pode ser belo, mas também pode acabar morto – e levar à morte – por causa dessa sua bondade – o “sargento negro” deste filme que o diga.
Survival of the Dead é um implacável filme de “guerra civil”, em que a humanidade perde sempre. O combate é de homens contra homens, apenas circunstancialmente interrompido pelo suposto “grande inimigo”: os mortos-vivos. A ironia trágica: todos estes homens almejam o regresso à vida dos mortos-vivos que lhes são queridos, mas nenhum tem a frieza de espírito suficiente para verificar que os vivos também já não obedecem à lei da racionalidade, apenas ao instinto de matança que turva a mente na hora de cerrar fileiras e proteger o que é mais precioso: a própria raça humana. A última imagem do cinema de Romero (que trago em cima) é um recado enviado ao mundo: podemos ver-nos privados da nossa própria – e redentora – morte, mas o instinto para o conflito – mais forte que a morte ela mesma -, esse ninguém nos rouba. Retrato de um país chamado Estados Unidos, de um planeta chamado Terra, de uma raça chamada humanidade. Num plano apenas, a extinção – cínica comme il faut – de tudo isto. Romero fez aquilo sobre o qual tanto e tão acidamente teorizou – partiu, finou, morreu -, mas já nos faz falta.

Swiss Army Man (2016) de Dan Kwan e Daniel Scheinert
Os mortos ajudam-nos. Dizem-nos que o nosso tempo na Terra é curto, que temos de dar corda aos sapatos se queremos chegar a algum lado na vida. Nenhum filme, pelo menos recentemente, levou tão longe esta devoção – ia escrever “à morte”, mas não, é mesmo devoção ao morto. Falo de Swiss Army Man, a perto de inqualificável história de amor e esperança – natalícia, até certo ponto – realizada pela dupla Dan Kwan e Daniel Scheinert. No centro da narrativa estão Hank, um náufrago suicidário (Paul Dano), e Manny, um cadáver factotum (Daniel Radcliffe). Hank, sozinho e já sem esperança, esquecido que está numa ilha deserta, encontra a salvação de última hora nesse corpo sem vida, frio, de um homem trazido pelo mar. Manny está frio, sem vida, mas dá sonantes bufas. Não é o mau cheiro que atrai a atenção de Hank, mas a capacidade de propulsão desse temeroso gás – não é por acaso que este título está em posição de destaque num vídeo de Luís Azevedo que se propõe contar a história da bufa na Sétima Arte.
A partir daqui, leia-se, a partir das bufas que projectam este inusitado casal para novas paragens, desenvolve-se uma relação em que a utilidade anda de braços dados – e aos “encostanços” – com a mais profunda intimidade. A dupla de realizadores, Dan Kwan e Daniel Scheinert, sabe que só faz sentido temperar o excesso com excesso, pelo que converte o bizarro escatológico num dos mais desesperadamente sentimentalistas bromances ou, qualifico eu, rawmances do cinema recente. Apesar da patetice generalizada, é apreciável – até estranhamente comovente – o grau de pathos desta história que tão longe se aventura pelos recantos mais absurdos da existência humana. Parece que sim, que os mortos-vivos, pós-Romero, têm salvação (lembra-se como fracassava a educação de um morto-vivo em Day of the Dead?). Ok, não há vida depois da morte, mas haverá uma ténue possibilidade de amar e ser feliz para lá do fim de tudo?

Warm Bodies (Sangue Quente, 2013) de Jonathan Levine
A pergunta pode ser respondida por outro filme que dá a volta ao texto original de George A. Romero: Warm Bodies, de Jonathan Levine. Enquanto que Swiss Army Man não põe o pé no travão do absurdo da sua premissa, aventurando-se por caminhos nunca antes trilhados, inquirindo a nossa relação com a morte, o amor e todas as frustrações humanas, segue num outro sentido este filme rawmântico, sobre um zombie deprimido e uma jovem esbelta de sangue ainda bem quente (interpretado por Teresa Palmer, também conhecida por “aquela rapariga parecida com a Kristen Stewart”). Que sentido é esse? O sentido da normalização mais mole de qualquer filme boy meets girl para adolescente ver. Começa relativamente bem, com algumas observações existenciais, que ouvimos em over, do jovem zombie que protagoniza o filme. Ele vagueia num aeroporto – inteligente a ideia de colocar os mortos-vivos nesse espaço de ninguém que dá acesso ao mundo inteiro – sem saber para onde ir, sem saber como mobilizar o seu estado “mortificado”. Esvaziado de sentimentos – pois, é um morto-vivo… -, o rapaz sonha voltar a amar, o que também significa: sonha voltar a sonhar (prerrogativa dos humanos viventes).
O caro leitor já está a ver toda a história a partir daqui, por isso, vou abreviar dizendo que se ensaia em Warm Bodies uma tentativa de um Romeu e Julieta pós-Romero, desenrolado entre um membro do gangue dos mortos-vivos e um membro do gangue dos vivos-mortos (são mais carniceiros os militares comandados pelo big boss encarnado pelo vivo, com sangue na guelra, John Malkovich que muitos dos zombies que habitam, eternamente perdidos, o dito aeroporto). O que este filme encerra é uma possibilidade que nunca assume até ao fim – Swiss Army Man vai mais longe, porque nunca deixa de nos confundir, desconcertar, até incomodar. É que Warm Bodies tem alguma temperatura, mas é “calor de radiador”. Não há coração e não há corpo, vísceras, animalidade – é vinda dessa animalidade que queremos sentir o calor mais rawmântico. O amor bonitinho, limpinho, “à temperatura ambiente”, não encaixa no tormentoso e/ou apocalíptico imaginário zombie – nesse sentido, Burying the Ex (2014), de Joe Dante, é relativamente mais eficaz. Enfim, amor aos mortos? Sim, mas sem higienizações e com alguma da boa e bela culpa. A culpa adstrita ao facto de sermos o que somos: humanos. A maior das nossas desculpas.
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