Dreyer, Erice, Bresson, Romero, Antonioni, Lynch, Godard, Visconti, Argento, Pialat. É deste ouro que são feitas as escolhas de quatro walshianos baseadas no catálogo da plataforma portuguesa de streaming Filmin – parceira do À pala de Walsh. O top 10 que se segue partiu da escolha individual de Carlos Natálio, João Araújo, Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa. Depois de feitas as escolhas, os editores do À pala de Walsh votaram a ordem dos títulos. Esta ordem reflecte, assim, uma preferência – quiçá um cânone – que atesta a qualidade geral do catálogo que esteve na base do top que se segue.
1. La passion de Jeanne D’Arc (A Paixão de Joana D’Arc, 1928) de Carl Theodor Dreyer
Eis um monumento ou, melhor dizendo, eis vários monumentos. Cada plano toca o sagrado como nenhuma outra obra na história do cinema. Começar por onde, portanto? Comece-se por uma ideia: a de que este é um filme-mártir. Foi realizado em França pelo realizador dinamarquês Carl Theodor Dreyer. Sofreu várias vicissitudes de produção que redundaram na opção pela rodagem em mudo – quando já havia a possibilidade, ainda que algo aventureira, do som – e pela escolha de uma actriz desconhecida, Renée Maria Falconetti – isto quando estiveram em cima da mesa nomes como os das actrizes Marie Bell e Lilian Gish para interpretar a santa guerreira, mártir de uma nação. E como é que o martírio passou de assunto no filme para assunto do filme? La passion de Jeanne D’Arc foi censurado, mutilado, destruído (em incêndios que consumiram dois dos negativos do filme). A obra que conhecemos hoje parte de um restauro elaborado sobre um negativo encontrado num asilo psiquiátrico na Dinamarca em 1981. Ressurgido, o filme voltou a acender-se nos grandes ecrãs e a maravilhar-nos com o que nele tem lugar: nada mais nada menos que um verdadeiro milagre cinematográfico.
Acrescente-se então à ideia de filme-mártir a ideia, que importa mais, de filme-mito. Filmado com um orçamento avultado, La passion de Jeanne D’Arc é, contudo, um filme de poucos elementos, exercício de despojamento caro à economia estilística de Dreyer. Um “documentário de rostos”, chamou-lhe André Bazin. Foi neles, nestas faces impossíveis (de Facolnetti, mas também de Antonin Artaud e Michel Simon, só para citar dois outros actores míticos que integram este elenco) que o cineasta dinamarquês, auxiliado nomeadamente por Rudolph Maté na fotografia e pelo trabalho cenográfico de Herman Warm [Das Cabinet des Dr. Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari, 1920)], encontrou o espaço principal para o drama. Aqui tudo nasce nos olhos, na boca, nas lágrimas e nos gritos mudos de desespero desta actriz que, igualmente mítica, apareceu e desapareceu, como a sua personagem que, ardendo na fogueira, acedeu à vida eterna, à santidade. Este é um filme-mito também porque nunca mais se filmou assim – o mais próximo que temos hoje deste gesto de enquadrar o rosto e encontrar nele o lugar, a escala, do divino é Pedro Costa. Portanto, sim: esta é uma obra-prima insuperável. Daquelas para se ver e fazer ver em silêncio e em perfeito estado de estupefacção.
Luís Mendonça
2. El sol del membrillo (O Sol do Marmeleiro, 1992) de Victor Erice
Apetece estender o braço e colher o fruto da árvore. A árvore é o cinema e o fruto é o tempo. O cinema produz o seu tempo como a árvore os seus frutos. A própria câmara, fixa no tripé, repousando sobre o mundo e apontando a ele a sua “mira contemplativa”, se parece com uma árvore. Tudo em El sol del membrillo nos faz circular entre o tempo da vida e o tempo do cinema. A terceira longa-metragem de Erice num período de 30 anos é uma ficção documental sobre o processo criativo de um pintor, Antonio López, em sereníssimo frente-a-frente com o seu modelo, um pequeno e frágil marmeleiro. Mas este duo, como descobrimos no fim, é um trio, já que Erice decide tornar presente ao espectador a câmara, montada no tripé que a fixa, imóvel, ao solo; ou seja, faz da sua câmara modelo do filme, como o marmeleiro o é para o pintor. É o próprio Erice que assume, em entrevista publicada no booklet do DVD português, a presença decisiva da câmara no seu filme: “Impressiona-me muito a capacidade predatória que a câmara possui, especialmente se a compararmos com os utensílios, com a mão e o olho do pintor. (…) É curioso: o cinema sempre se apresentou debaixo de uma imagem positiva, juvenil, luminosa… e a mim, às vezes, me parece uma invenção da decadência, que se mostra especialmente sensível para captar tudo o que se desvanece, inclusive o mais fugitivo que existe: o tempo”. Nesta nudez fundamental entre os tempos e os corpos da arte e da vida Erice oferece-nos o fruto da existência e não há como resistirmos à tentação de lhe darmos uma trinca. El sol del membrillo permite-nos saborear lentamente o indefinível que é isto tudo que chamamos “vida”. Nada mais belo, nada mais comovente. O tempo, digo. Este tempo, digo ainda melhor.
Luís Mendonça
3. Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut (Fugiu um Condenado à Morte, 1956) de Robert Bresson
“Bresson é o cinema francês, como Dostoievsky é o romance russo e Mozart é a música alemã”. As palavras são de Jean-Luc Godard, no seu «Dicionário dos Realizadores Franceses», editado nos Cahiers du cinéma em 1957. Ora, se é ou não é sinónimo de todo o cinema francês, uma coisa é certa: não há economia como a de Robert Bresson. E de todos os seus filmes parece-me que mais nenhum leva tão longe o essencial de uma linguagem. Reduzido ao osso, feito de pedra e de puro toque – de mãos, as do fugitivo, em primeiro lugar -, este filme é um exercício sobre o escape, mas para onde escapa ele senão no sentido de uma pureza das formas? O cinema reduzido à matéria bruta do mundo: a mão, os pés, a cela… em cada célula deste organismo – desta prisão matérica que é o filme – ensaia-se, cronometriza-se, a salvação que, qual spoiler do século, se anuncia logo no título. O prisioneiro fugirá! Que ousadia, senhor Bresson, fazer um escape movie em que já sabemos o seu feliz desenlace! Mas não: encostando o enredo a um canto, podemos concentrar-nos nessa “cronometria” de cada gesto.
Com efeito, o cinema já nos deu alguns filmes de evasão brilhantes – lembro-me de Escape From Alcatraz (Os Fugitivos de Alcatraz, 1979), de Don Siegel, e de Le trou (O Buraco, 1960), de Jacques Becker, como estando entre aqueles que mais se aproximam da magistralidade deste filme que não se parece com um filme, mas com uma escultura, tal é a força da presença das mãos e da pedra que elas perfuram. Maior entre os maiores, Un condamné à mort s’est échappé… produz um tempo e um espaço ritualizados pelo gesto – é a transcendência de um estilo que se anuncia aqui, sem que este seja um filme frontalmente religioso como outra obra-prima de Bresson, Au hasard Balthazar (Peregrinação Exemplar, 1966). A salvação no fim é a salvação que se enuncia na matéria e na mão (olho para a imagem em cima e em vez de uma corda vejo uma coroa de espinhos, a de Jesus, sim, mas também… a de Falconetti no filme intemporal de Dreyer acima agraciado, com o qual, aliás, Bresson tinha uma relação turbulenta). Todo o Bresson cabe nesse “e” religioso, nesse espaço intermédio onde o mundo se faz presente, se dá ao toque, em toda a sua densidade e graciosidade. Graciosa densidade, a de Bresson.
Luís Mendonça
4. Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968) de George A. Romero
Em Night of the Living Dead, Romero limitava-se (como se fosse pouco) a reflectir o seu tempo e a sociedade de então dentro da casa (como qualquer bom filme de cerco à la Hawks), não fazendo portanto considerações sobre os monstros que lá estavam fora. Eram apenas monstros, catalisadores para os comportamentos extremados dos que lá estavam dentro – e sim, tudo se opera nesse limiar muito concreto que separa o dentro do fora. Acima de tudo, o que terá interessado a Romero era a atmosfera da luta pelos direitos civis e o racismo, onde o final antevê o assassinato de Martin Luther King, morto pouco depois do final da rodagem – “I was telling a story and I had a couple of radical ideas and, you know, it’s more of a political statement than it is a film”. A ideia de que o morto-vivo é um de nós (ou nós somos um deles) só surge nos filmes seguintes da série (e diria que se Night é uma obra-prima, os que se seguiram são obras-maestras). Mas como essa é, afinal, a ideia fundamental do seu cinema, Romero regressou ao seu filme-charneira e escreveu Night of the Living Dead. Um objecto altamente interessante por encontrarmos nele a mão de um mestre que tem a oportunidade de retocar a sua obra de estreia – e fá-lo sem qualquer pejo, ainda que seja, talvez, o seu filme mais admirado. Aliás, aquele que foi o grande trunfo do realizador foi, exactamente, saber gerir e moldar a evolução da sua mitologia em torno dos mortos-vivos. Como que descrevendo o mundo em fascículos, porque assim, em doses pequenas e certeiras, se mastiga melhor os podres da carne humana.
Ricardo Vieira Lisboa
5. L’Eclisse (O Eclipse, 1962) de Michelangelo Antonioni
Antonioni ficou conhecido por filmar como ninguém o sentimento de vazio, e também por arriscar como poucos na exploração dos limites da linguagem do cinema, em particular pela sua demanda em quebrar e renovar esquemas narrativos convencionais. Contrariando muitas vezes a expectativa criada pelo filme até certo momento, deixava lentamente uma espécie de tédio existencialista, um desalento pela falta de significado da vida, uma melancolia por algo que ainda não aconteceu, ocupar o espaço central dos filmes, algo por de mais evidenciado na trilogia temática composta por L’avventura (A Aventura, 1960), La notte (A Noite, 1961) e este L’Eclisse.
Neste último, uma mulher e um homem, interpretados pelos soberbos Monica Vitti e Alain Delon, dedicam-se a oclusos jogos de sedução, a falsos avanços e recuos, desligados do mundo à sua volta e cercados por posses materialistas que não conseguem preencher o mistério da letargia e languidez. Pouco a pouco revelam diferentes interpretações do amor e expectativas da vida, presos a um permanente estado de indefinição, que coloca em causa a relação entre os dois, entre eles e o que os rodeia, e até connosco. Se o princípio do filme é inesquecível, a sequência final apresenta uma das mais belas resoluções do cinema, ao mesmo tempo desorientador e sublime.
João Araújo
6. Mulholland Drive (2001) de David Lynch
É frequente encontrar Mulholland Drive de David Lynch no topo das preferências de listas, quer seja para melhor filme do século XXI (BBC) ou da década (Film Comment, IndieWire). Se normalmente tanto consenso será de desconfiar, esta é uma das ocasiões em que a obra é tão extraordinária que os elogios são justificados. A verdade é que este filme pode ser visto como uma súmula do trabalho desenvolvido por Lynch ao longo da sua carreira, onde as suas preocupações com as possibilidades do desconhecido, o desmontar da influência do subconsciente e psicoses sobre a interpretação da realidade, a normalização do inexplicável como uma certeza, o conluio entre essa mesma realidade e a ficção, que parecem habitar uma espécie de limbo indefinido, imaterial e material ao mesmo tempo, e que dão lugar a filmes-sonhos que parecem filmes-pesadelos impressionistas. São aspectos que aparecem aqui em sintonia perfeita, e Mulholland Drive surge também num período criativo particularmente fértil de Lynch, pouco depois de Lost Highway (Estrada Perdida, 1997) e antes de Inland Empire (2006), que exploram temas e estéticas semelhantes: o medo da perda de memória e de identidade, a cedência de controlo do destino, a multiplicação de personalidades e linhas narrativas.
Se este filme pode ser descrito como um sonho febril, é um sonho americano distorcido e mutilado, já que decorre no epicentro de Hollywood, terra dos sonhos, e é também um olhar para dentro do universo do cinema. No centro da história encontramos uma jovem actriz aspirante, numa interpretação magnífica de Naomi Watts, que certo dia ao chegar a casa encontra uma mulher que esteve envolvida num acidente de carro, e não se lembra do que lhe aconteceu, nem sequer quem é. Nos episódios que seguem-se (e é curioso pensar que Mulholland Drive começou por ser pensado como uma série para televisão), acompanhamos as duas mulheres na perseguição de escassas pistas, na colisão entre um submundo de crimes escondidos e o submundo do cinema, e o seu modo de destruição de sonhos. Essas pistas abrem portas para outros mistérios, na procura da reconstrução de uma história e de uma identidade, sem nunca ter a certeza de nada excepto uma realidade fugidia, numa ambiguidade que coloca o espectador no mesmo espaço das personagens, e que permite a cada um criar o seu próprio filme dentro do filme. É assim a derradeira cedência ao domínio da imaginação.
João Araújo
7. Week End (Fim de Semana, 1967) de Jean-Luc Godard
Este é um dos últimos filmes de Godard antes de dedicar-se a um novo formato de criação-colaboração sob o grupo Dziga Vertov, do qual resultaria mais tarde Tout Va Bien (Tudo Vai Bem, 1972). É assim um filme à beira do precipício, um filme onde vale tudo, e um pré-anúncio de tempestade. É mais um “adeus” à linguagem entre vários do realizador francês (o filme acaba mesmo com a frase “Fin de Cinema”), uma espécie de atirar tudo para a fogueira antes de recomeçar a partir do zero, quer seja ao nível do cinema de Godard, quer seja ao nível da sociedade: ao surgir pouco antes do período conturbado de 1968, parece proclamar o abalo que se seguiria. Um comentário sarcástico e sem concessões sobre o consumismo que despontava, é uma derivação de uma comédia negra divertida com a fantasia do colapso.
Numa aproximação extemporânea ao cinema de Luis Buñuel, é um filme igualmente pré-apocalíptico e pós-apocalíptico. Entre momentos absurdos e e deambulações surreais, seguimos um casal pouco amoroso à procura de uma herança, num percurso onde destacam-se a aparição de figuras literárias e históricas e uma longa sequência memorável de um encadeamento de acidentes de automóvel nas estradas, que aparecem aqui como um espelho da sociedade fracturada. É uma obra anárquica, que coloca em causa não só o seu meio envolvente, mas também o próprio filme – numa famosa cena, alguém pára um carro para perguntar ao condutor: “estás num filme ou na realidade?”
João Araújo
8. Ossessione (Obsessão, 1943) de Luchino Visconti
A história de um homem sem futuro que encontra na caridade de um dono de restaurantes e na bela mulher deste um pouso não é nova. Aliás, é esse o ponto de partida da novela (que ficou famosa) de James M. Cain, The Postman Always Rings Twice de 1934. Ficou famosa tanto ou mais porque causa das várias adaptações ao cinema que veio tendo ao longo dos anos. A primeira das quais foi pela mão de Luchino Visconti que, por não ter os direitos da obra, chamou ao seu filme simplesmente Ossessione, mas logo depois Hollywood (já com os direitos) fez The Postman Always Rings Twice (O Destino Bate à Porta, 1946) com Lana Turner e John Garfield. Anos depois fez-se um remake caliente com Jack Nicholson e Jessica Lange, The Postman Always Rings Twice (O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes, 1981) e recentemente o realizador alemão Christian Petzold regressou ao mesmo tema, com Jerichow (2008). Talvez a melhor adaptação seja mesmo a primeira, já que Visconti ao realizar um belíssimo filme, inaugurou também o neo-realismo.
Para Visconti, o que interessa, mais que a dita obsessão sexual, é a culpa e a forma como um mendigo errante lida com o ficar preso a uma mulher e a um lugar. Por oposição aos americanos, que se interessavam pela paixão mestiça de ódio e morte (de dependência e engano) no caso do original e no remake era o desejo sexual (a luxúria) que liderava as contas (e para o alemão o que mais interessava era como podia sobreviver a amizade sob o jugo das dívidas. Como diz o colega João Araújo, “Ossessione parece dá conta da complexidade das relações humanas, da recusa em aceitar uma visão simples das possibilidades da vida, e de como as imagens podem ser importantes para dar espaço a sentimentos subterrâneos e a tumultos interiores, iluminando essas diferentes possibilidades.”
Ricardo Vieira Lisboa
9. Suspiria (1977) de Dario Argento
Para o Luís Mendonça, escreveu depois de ver em sala Suspiria,“este filme foi pensado única e exclusivamente do ponto de vista da imagem (…) porque ela quer apenas projectar nos cenários o estado interior das suas personagens – mas quais personagens? De todo o seu cinema!”. Não é de boa índole contrariar os colegas (e não podia, porque o que diz o Luís é matéria de facto), mas há algo de muito curioso nessa construção dos arquétipos (para não lhes chamar personagens) através das suas mortes – e dos cenários que as acompanham. Suspiria é um filme de grande ecrã, é certo, mas a miniaturização da pantalha não lhe come o essencial, um essencial audiovisual na sua pureza máxima. O prazer das imagens e do som, das imagens com outras imagens, dos sons com outros sons e, claro, dos sons com as imagens. Prazer plástico, mais que tudo.
Não se importará o leitor que desvende alguns dos homicídios que constroem o propósito narrativo (por mais ténue que seja) de Argento. A primeira menina que morre é assassinada por um homem, todo de negro, que lhe salta da janela e lhe apunha-la as mamas (é o medo do sexo que a mata); a segunda morte é a do cego, que acontece exactamente no meio de uma praça sem ninguém (é a agorafobia que o mata); a terceira morte é a de uma menina que é atacada por um homem incógnito de braços peludos, caindo num tufo de arame farpado (é o medo ao masculino que a mata). Tudo isto em crescendo, até que a nossa menina vai parar à toca do lobo e dá de caras com a bruxa mais má, mas onde está ela? Não está – não se vê. Ou seja, está ela cheia de medo de algo que não existe sequer, ela está com medo do próprio medo. E como é Argento que filma, o medo não se combate com medo, mata-se à facada. Depois de morto o medo tudo acaba. Quando a menina olha através da janela à procura do seu carrasco o que vê são esses olhinhos vermelhos. Se tivesse uma faca tinha-se acabado o filme logo ali.
Ricardo Vieira Lisboa
10. Sous le soleil de Satan (Ao Sol de Satanás, 1987) de Maurice Pialat
Oficialmente esta adaptação do romance homónimo de 1926 de Georges Bernanos corresponde ao início da fase final, e de consagração, da obra de Maurice Pialat. Segundo se conta o empreendimento foi levado a cabo com o intuito de vencer Cannes, entrando em terrenos mais clássicos. A coisa correu-lhe bem e todos os manuais de história do cinema contam aquilo que Pialat, apupado pela audiência ao subir ao palco para receber a Palma de Ouro, terá dito: “Vocês podem não gostar de mim, mas têm de ficar a saber que eu também não gosto de vocês”. Mais do que uma recusa de um cinema popular, esta anedota ilustra bem como o sucesso do realizador, que recusou todas as correntes (com a nouvelle vague à cabeça), se fazia no centro de uma tensão entre os elementos. Da tensão com os actores, da procura do momento de descarga tensional de cada cena, da oposição entre imobilidade e movimento. É disso que trata Sous le soleil de Satan, através da figura-espelho do seu cinema.
Gérard Depardieu, que aqui incorpora o abade Donissan, luta entre o diabo e o senhor, entre o corpo e a alma, ante a tutelagem literal do seu mestre, o próprio Pialat no papel do veterano Menou-Segrais. Oposição também que é a luta do classicismo dos diálogos e do enredo de Bernanos – le soleil -, com a procura intensa da mise en scène de Pialat – le satan -, a fazer explodir os azuis na noite de todas as ameaças a Donissan, ou a câmara a fazer circular o sangue, a palidez da morte, nos rostos e nos espaços da santidade da igreja. Depois do corpo potente, desempregado e alcoolizado com que Depardieu surgiu, com Loulou (1980), ante a objectiva de Pialat, aqui assistimos à domesticação, auto-sevícia e sacralização desse mesmo corpo. Depois o actor ainda seria o escolhido para fazer de figura parental de Pialat na sua derradeira obra, Le garçu (O Miúdo, 1995). Desta passagem entre figuras, aparentemente coerentes na sua diversidade, talvez se possa concluir que Depardieu sempre foi o desafio supremo de Pialat, a carne incapaz de encenação que tanto o fascinou. Um espelho que lhe respondia de volta muito mais do que um reflexo, uma discussão acesa sobre a sua personalidade de cineasta, um cocktail ambulante de doçura e ira.
Carlos Natálio