Há seguramente um aspecto irrisório na crítica ao Mundo do Silêncio, porque enfim a beleza do filme é primeiro que tudo a beleza da natureza e ninguém quer criticar Deus.
André Bazin
Quando se interroga sobre o cinema, Bazin encontra frequentemente as suas respostas em filmes marginais. Documentários, reportagens, filmes “poéticos” ou “registados ao vivo” permitem-lhe formular com nitidez uma lei para ele fundamental: sempre que é possível encerrar num mesmo enquadramento dois elementos heterogéneos, a montagem é proibida. Dessa perspectiva, vamos ver que a essência do cinema se torna uma história de animais.
Serge Daney
Numa das primeiras cenas de Le monde du silence (O Mundo do Silêncio, 1956) de Jacques-Yves Cousteau e Louis Malle, após se queixar de uma inexplicável dor no joelho, o mergulhador André Laban é introduzido numa câmara de descompressão para tratar sinais de narcose por nitrogénio, comummente conhecida como embriaguez das profundezas. Um dos seus companheiros, Albert Falco, relata que, durante um mergulho até cerca de cinquenta metros de profundidade, Laban comportara-se erraticamente, tentando tirar a máscara de oxigénio e libertando as lagostas caçadas do saco. Este tipo de desordem, acelerada pelo nível de profundidade, é criada pela difusão de nitrogénio no sistema nervoso central, tornando-se num dos maiores perigos para os mergulhadores, ao provocar estados alucinatórios que podem terminar em morte por afogamento ou ataque cardíaco. A câmara hiperbárica para descompressão, a que Laban chama “caixão”, é o equipamento usado para reequilibrar o nível interno de gazes no organismo humano, que pode ser visto como um choque com o real, na medida em que desencadeia o corte com a embriaguez do fundo do oceano onde o mergulhador está livre da pressão e se move livremente entre cores e formas que desafiam a lucidez.
Apoiado por uma tripulação de cientistas e académicos, Le monde du silence não evitou críticas de inconsciência ambiental em cenas como o massacre de um cardume de tubarões, o choque entre o navio oceanográfico Calypso e uma cria de baleia, a destruição da base de um recife de coral e a pesca com dinamite – colocando-o em linha com a exploitation do retrato de culturas exóticas dos filmes mondo ou mesmo de Cannibal Holocaust (Holocausto Canibal, 1980) de Ruggero Deodato. Ainda assim, Le monde du silence recebeu a Palma de Ouro do Festival de Cannes e o Óscar para o melhor documentário. Uma das suas maiores contribuições para o universo cinematográfico foi ter utilizado equipamento e métodos inovadores para filmar o exigente fundo dos oceanos, colocando verdadeiramente o homem no centro deste cenário alucinatório, sem recorrer a técnicas de montagem, facto que tanto agradava a André Bazin. Seis décadas percorridas, a ficção cinematográfica mantém a consciência tranquila e desvia-se da rota traçada por Le monde du silence, aliando modernos estúdios de produção às aplicações gráficas de computer-generated imagery. No caso de 47 Meters Down (47 Metros de Terror, 2017), de Johannes Roberts, a “beleza da natureza” é apenas a água límpida, ainda que biologicamente controlada, de um reservatório na região do Caribe. Tudo o resto é falso, desenhado ao ritmo da velocidade de um periférico de computador.
A luta contra a desagregação familiar é fundamento para as personagens de 47 Meters Down permanecerem dois terços do filme entre a superfície e o fundo do oceano.
Em 47 Meters Down (47 Metros de Terror, 2017), quase integralmente filmado dentro do tanque aquático da divisão dos Pinewood Studios na República Dominicana, as irmãs Lisa (Mandy Moore) e Kate (Claire Holt) participam num mergulho dentro de uma jaula metálica, quando o cabo rebenta, atirando-as para os confins do oceano. Vigiadas por enormes tubarões, a quantidade de oxigénio nos cilindros a diminuir, o grosso de 47 Meters Down são sessenta minutos com as irmãs afundadas no oceano, a lutarem para chegar à superfície. Como o pai que procura reconquistar o amor da ex-mulher e da filha, em F (2010), a mulher assombrada pela morte prematura do filho, em The Other Side of the Door (2016), ou o reencontro do casal durante o massacre dos ocupantes de um armazém por um monstro extraterrestre, em Storage 24 (2012), também a luta contra a desagregação familiar é fundamento para as personagens de 47 Meters Down permanecerem dois terços do filme entre a superfície e o fundo do oceano.
Compreende-se a questão comercial ao assinalar 47 Meters Down como um filme de tubarões, mas a sua presença (ausência) é mais perturbadora quando a ameaça está fora de campo, como numa boa parte do melhor cinema de terror da década de 1970. Aqui, a intromissão do tubarão no plano serve apenas para preencher a quota mínima de jump scares capazes de satisfazer o apelo veraneante do público norte-americano num intervalo entre as idas à praia. Com Bruce, o assustador tubarão mecânico de Jaws (O Tubarão, 1975), Steven Spielberg deu uma impulso substancial ao lançamento da geração dos movie brats , educados a ver cinema desde uma tenra idade antes de seguirem para a escola de cinema, e para a definição do modelo de blockbuster. Contudo, é no assassino anónimo e invisível do seu primeiro filme, Duel (Um Assassino pelas Costas, 1971) que melhor exprime o medo pelo desconhecido, numa sociedade em convulsão, ferida pelos estilhaços da Guerra do Vietname e pelas interrogações que acompanharam o movimento hippie.
Também se compreende o adiamento do lançamento de 47 Meters Down no Verão de 2016, com a possibilidade de anular o seu potencial comercial ao concorrer nas bilheteiras com The Shallows (Águas Perigosas, 2016), a vibrante versão pop do filme de tubarões em que Jaume Collet-Serra larga a teen starlet Blake Lively no oceano, cercada por outro animal fabricado integralmente por computer-generated imagery. Da última fornada de filmes com o nome do produtor Harvey Weinstein nos créditos, antes de cair em desgraça pelas muitas acusações de assédio sexual, 47 Meters Down acabaria por ser relançado no Verão de 2017, tornando-se num sucesso de público, proeza para um filme realizado por um cineasta praticamente desconhecido do público americano, filmado num tanque de água com a dimensão de meio campo de futebol e com o elenco quase reduzido a duas actrizes sem peso mediático. De resto, não causa surpresa que, posteriormente, Johannes Roberts tenha sido convidado para dirigir Strangers: Prey at Night (2018), sequela de The Strangers (2008) de Bryan Bertino, reaproximando-se de um dispositivo que tinha trabalhado em F, notável actualização do filme de cerco, onde os assaltantes de uma escola mantém o anonimato debaixo do capuz e irrompem desfocados do fundo do plano, sem corporalidade definida, como fantasmas.
Outro aspecto sobre o qual importa reflectir em 47 Meters Down é a narrativa minimal que pode ser contida em cerca de três linhas, com pouco mais do que consta acima, mas que encerra um final falso, revertendo o habitual happy end, algo que pode irar o espectador que mede a qualidade do filme pela quantidade de pipocas que consegue emborcar durante a sessão. Taylor (Matthew Modine, num pequeno papel), o capitão do barco que transporta as irmãs até à zona de mergulho, por mais que uma vez lança o aviso do perigo da narcose por nitrogénio. Kate é arrastada por um tubarão para longe do centro da acção, a jaula que, neste caso, em vez de prisão serve de protecção. Incomunicável e imune às interferências do mundo exterior, este pequeno espaço que convida ao recolhimento e ao silêncio, oferece um enganador abrigo para a insegura Lisa se redesenhar como pessoa e assegurar a sua posição dentro do núcleo familiar, depois da confissão de o namorado ter terminado a relação por a considerar entediante.
Em competição constante com a descomprometida afectivamente e popular irmã, Kate vê a relação com o namorado como o único poder conquistado. Rompida a relação, traça o seu novo lugar no mundo, como alguém capaz de se libertar das ameaças e guiar a irmã ferida até ao convés da embarcação, a câmara de descompressão onde, fatalmente, a ilusão se irá desvanecer. Nunca chegaremos a saber onde o sonho começou mas percebemos como terminou: com Kate sozinha na jaula a ser recolhida pela equipa de salvamento. Por meio de um mundo falso, recriado com pinceladas digitais, o final reforça a ideia de 47 Meters Down enquanto pequeno teatro calibrado para expor a fragilidade (e pequenez) humana e projectar fantasias que resultam impossíveis de dominar. A partir do fundo do oceano, vemos a equipa de salvamento a elevar a única sobrevivente, o que recorda um dos primeiros planos de Le monde du silence, quando os mergulhadores regressam à superfície e deixam para trás um “mundo estranho, quase desconhecido: o mundo do silêncio”.