São fascinantes os paradoxos do tempo, sobretudo se nos pusermos a pensar no cinema, a arte dele. A dada altura começou a criar-se o discurso de que o tempo do cinema parecia estar a esgotar-se. Os planos aceleravam (mas e no mudo, não pareciam já tão rápidos?); a câmara tinha de agitar-se como um brinquedo para ninguém fazer ó ó; as sessões de cinema fizeram rodear-se de toda a parafernália de eventos (realizadores, apresentadores, membros da equipa, tocadores de xilofone, macacos e sereias) todos ali para participar do “evento” e atrair gente; e, finalmente – eis a bandeira branca da rendição (?) – venha o aumento da rede wifi para as salas de cinema e, ao menos, façam-se as curtas bem curtinhas youtube, para se ver tudo, tudinho, bem rapidinho. Não há tempo, é o slogan do ocaso do cinema.
Mas – e venha daí esse paradoxo -, não se passa um par de dias sem que um jornal, um site, um profeta, nos espete com as 100 séries televisivas que não vamos poder perder só no próximo fim-de-semana. O binge watching – que tem qualquer coisa de performance sexual (aguentaste quantas seguidas?, seasons, I mean), assim como de concurso para ver quem consegue comer 700 cachorros quentes e um jarro de malaguetas em três minutos e meio – é um fenómeno muito, muito interessante. Desde logo, porque toda a gente parece ter tempo para ele, mesmo aqueles que não conseguem aguentar 90 minutos de escuridão sem consultar compulsivamente aquilo que têm no bolso.
Se parece que estou a erguer uma pira sacrificial para assar os amantes de séries de televisão, desenganem-se. Não é o caso, até porque há argumentos perspicazes de ambos os lados. Por uma parte, é verdade que há qualquer coisa de esvaziamento, de atordoamento da mente pelo atafulhar de dezenas de horas de séries em contínuo – no fundo, a comparação com as salsichas é isso, o consumo dos produtos culturais como fast food que engorda e entorpece o organismo, tornando-o mais lento, menos reactivo a nuances. Por outra parte, não fará o binge watching parte de um fenómeno que procura esticar, verter em filme de uma só sessão (que pode durar uma noite, por exemplo), o que antes era esporádico e fragmentário? Além disso, quem se lembraria de olhar de forma desconfiada o book lover de quem, a mãe, a avó e a tia dizem que “quando pega num livro só o larga quando chega ao fim”? Que ajuizado, o menino.
Bom, mas eu vinha falar de cinefilia. Mais concretamente de um programa de televisão francês dedicado ao cinema que foi emitido entre 1982 e 1991, pelo canal Antena 2, produzido pelo realizador Claude Ventura, pelo crítico Michel Boujut e pela jornalista Anne Andreu. Cinéma, Cinémas, assim se chama ele, foi um conjunto de emissões, que juntavam, de forma anárquica e passional, fragmentos de entrevistas, reflexões, curtas-metragens, castings, reportagens de rodagem, anedotas, tudo e mais alguma coisa. O que me fascina – além do natural brilho dos tesourinhos cinéfilos que por aqui se encontram – é a forma como esta questão do tempo está ela própria reflectida neste objecto. Senão reparem. Primeiro temos o incrível genérico inicial, assinado por Franz Waxman, que nos guia pela pintura que evoca Brando e a rodagem de On The Waterfront (Há Lodo no Cais, 1954), a Fonte de Trevi de Fellini e Godard a dirigir Belmondo. Tudo termina no interior de um quarto e numa panorâmica para um ecrã de televisão, como se Waxman, em pouco mais de um minuto, já nos dissesse que é todo o ar doido e incontrolado do cinema – o cinema como profissão da rua – que se prestasse a ser encapsulado em pequeninos diamantes preciosos para brilharem em pequeninas jaulas televisivas.
O programa, anos 80 pós folia nouvelle-vaguiana, já denuncia uma certa decadência da grande época do cinema – e muitos dos seus ícones americanos, como Sterling Hayden, Frank Capra, Stanley Donen, e Rock Hudson já nos surgem com uma certa aura cool, evanescente. Mas também o seu separador, um travelling de Eddie Constantine a entrar em portas sucessivas num grande corredor [retirado de Alphaville (1965) de Godard] nos dá esta ideia de dessacralização perversa, da televisão que serve para ir bisbilhotando na intimidade do interior de cada sala (sala de cinema, mas não só). Como se fosse uma actualização do crime voyeurista de James Stewart em Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954). Em Cinéma, Cinémas, o espectador já não está imóvel, de pata partida, a ver, com um certo complexo de culpa, o que se passa no ecrã-vizinhança que o rodeia; agora ele percorre (corre) de sala em sala, frenético (com esse sentimento de culpa pela “morta da privacidade” do outro a dar lugar a uma certa avidez e pressa), para tentar captar a essência de um cinema que se escapa, que se colecciona como um tesouro de peças brilhantes que é preciso ir unindo.
Esse fascínio de coleccionador, que é já um fascínio próprio de reunir o que se vai dispersando (do Cinéma aos Cinémas, dos cinemas às histoire(s) du cinéma), ganhou ainda novos contornos graças a Jean-Pierre Jeunet que pediu a Claude Ventura para compilar, para uma edição em DVD, um conjunto de doze episódios com algumas das sequências mais emblemáticas do programa. Poderíamos dizer que, quer o separador das portas, quer a edição de DVD, procuram dar, cada um à sua maneira, uma certa ordem ou norte ao avulso e ao heteróclito que compõem este grupo de cenas da cinefilia em bruto. Mas como organizar uma paixão? Foi assim, pelo formato em disco, que comecei por ter contacto com a série e por me deixar encantar com pedacinhos: a maneira tesuda como Fuller fala das cenas iniciais de Pickup on South Street (Mãos Perigosas, 1953) [imaginem só se todos os comentários de realizadores nos DVD’s fossem assim!]; a forma orgulhosa como o genial Elisha Cook Jr. conta que perdeu um dedo numa rodagem com o John Ford; a intempestiva direcção de actores de Pialat no set de Police (Polícia, 1985); o casting de Jean Seberg para Preminger; a personalidade intimidante de Philippe Noiret. A lista é bem interminável.
Para além de todas as pequenas revelações que o programa nos trás, aquilo que mais fica na memória é que, na passagem do cinema à televisão, esta segunda ainda continha espaço para mostrar a forma e a criatividade do primeiro. Assim, todos os pedaços são pensados como objectos de desejo a partir de uma certa ideia de realização, de uma linguagem passional que trabalha os espaços – Capra no jardim, Welles à mesa do almoço com a crítica francesa, de Niro num quarto de hotel com o seu cão sobre Dog Day Afternoon (Um Dia de Cão, 1975), Faye Dunaway deitada no leito, como il faut a uma estrela; que trabalha as deslocações – Scorsese a caminho do aeroporto, Godard no carro conversando com André S. Labarthes antes de apresentar Je vous salue, Marie (Eu Vos Saúdo Maria, 1985) nos arredores de Paris . Por falar em Labarthes que é, juntamente com Janine Bazin, o criador da melhor série de documentários sobre cinema já alguma vez feita (e pai natural deste Cinéma, Cinémas) – refiro-me naturalmente à série Cinéastes de notre temps – tem aqui uma pequena curta Le poids des mots (1987) em que pesa, literalmente, vários livros de cinema para saber quanto vale o Godard, o Fuller ou o Eustache ao quilo. É também bastante cómica a curta-metragem de Luc Moullet, Les Minutes d’un faiseur de films (1983), acerca dos seus métodos criativo-psicótico-quotidianos.
Mas termino, voltando à porta do separador do programa e à questão do tempo. Ia ainda a metade dos DVD’s da série quando descobri que no youtube, todos estes clipes, assim como outros não contidos na versão em disco, estavam disponíveis. Tinha-se ido o formato emissão televisiva, e também a falsa segurança do princípio, meio e fim do DVD tinha desaparecido. Aqui, a cinefilia encontra-se a céu (digital) aberto. As portas estão todas abertas e o corredor de Eddie Constantine é agora um horizonte, multidireccional, e pleno de links. E qual será o tempo para a cinefilia, não por detrás da porta, mas para além da porta? Uns dirão que a lista de reprodução do youtube é a tal cinematização remediada do televisivo e venha daí o tempo para ver todos estes pedaços, reunidos agora num grande e super objecto, à medida de um ininterrupto fim-de-semana. Outros dirão que o problema não é tanto o do ter tempo ou não para o cinema, mas que, e talvez pensando na obra-prima de Lang – Secret Beyond the Door… (O Segredo da Porta Fechada, 1947) -, o mais relevante de uma porta não é tanto abri-la. É saber que para lá dela ainda existe uma possibilidade de desconhecido, que nela mora um segredo que nos põe a mão na maçaneta. E depois…