A rubrica Comprimidos Cinéfilos tem como propósito revelar novos olhares sobre obras que, apesar da sua estreia, passaram despercebidas nas últimas semanas – casos de Suburbicon (2017) de George Clooney, Un beau soleil interieur (Um Belo Sol Interior, 2017) de Claire Denis e D’après une histoire vraie (A Partir de Uma História Verdadeira, 2017) de Roman Polanski, e também para revelar segundas opiniões sobre filmes que já foram alvo de análise por outros autores no nosso site, como It Comes At Night (Ele Vem à Noite, 2017) de Trey Edward Shults, Last Flag Flying (Derradeira Viagem, 2017) de Richard Linklater e 120 battements par minute (120 Batimentos por Minuto, 2017) de Robin Campillo.
Suburbicon (2017) de George Clooney
A certa altura, quando o tumulto racista já se desenrola em todo o seu esplendor na rua, o agente de seguros – o sempre brilhante Oscar Isaac [quem o viu na série Show Me a Hero (2015) não esquece, e o cinema ainda não lhe deu um papel equivalente à altura] – toca à campainha, cumprindo a promessa de que voltaria à noite para falar com Gardner que fizera à sua cunhada Margaret [Julianne Moore, mulher que “vive duas vezes”, ou até três, na verdade, não fosse ela a versão cinquentista e “pré pós-moderna” da Carol White de Safe (Seguro, 1995) de Todd Haynes, também ela habitando um subúrbio branco da classe alta americana]. Bud (Isaac) – e nunca saberemos se a proposta-twist que faz a Gardner é, de facto, genuína (mérito da sua performance, novamente) – senta-se à beira da janela para iniciar a conversa com Gardner, já munido de todos os elementos que monstruosamente incriminam aquele maquiavélico casal que agora sua em bica (irão matá-lo também a ele?…). E eis que, nesse preciso momento, quando os gritos, o fogo e a turba eclodem just on the other side of the street, quando uma não menor monstruosidade se vê mesmo ali da janela, Gardner pede, nervoso, ao agente de seguros: “Espere, espere, deixe-me fechar só a cortina, não é preciso que a vizinhança saiba”.
É, provavelmente, na sua subtileza, na sua imensa inteligência, o melhor momento de todo este coeniano filme (escrito pelos ditos cujos, aliás) no modo como sintetiza a dualidade indivíduo/colectivo, individualismo e sentido de comunidade, essa que o filme vai desenvolvendo desde o início – de modo explícito, até (através da montagem paralela) –, só em pontuais momentos fazendo sobrepor os dois lados da moeda (aliás, uma vez que o filme se inicia in medias res, chega a haver a insinuação, também muito inteligente, de que o homicídio é consequência para o facto de a mãe de Nicky ter deixado os dois miúdos, um branco e outro negro, brincarem juntos). E é aqui que bate o ponto: um e outro são lados da mesmíssima moeda – só vivemos felizes se o formos connosco próprios e com-os-outros –, mas isso é coisa que a América nunca interiorizará, assente que está num mito fundador egoístico e solipsista. Esse momento em Suburbicon (2017) – em si mesmo um avatar do mito bíblico, com não menos fundas raízes no viver e no sentir americanos, da City upon a Hill – dá a mortífera bicada: até num momento apocalíptico, quando a civilização está prestes a ruir, até quando os seus concidadãos (brancos, negros, isso agora nem interessa, o egoísmo é tanto!) podem estar na iminência de serem mortos ou brutalizados, o americano fecha a janela, não quer saber dos “problemas da sociedade” (i.é, do colectivo); o que o preocupa é a sua casa e os seus assuntos (dinheiro, sucesso, bem-estar). Family First – Mo Money Mo Problems (como rappou um dia o americano Notorious B.I.G.) – Make America Great Again – PIM!
Francisco Noronha
It Comes At Night (Ele Vem à Noite, 2017) de Trey Edward Shults
Há aqui curiosos cruzamentos com Suburbicon: a mesma observação sobre os grandes mitos e ideais americanos, desde logo o “Family First” que explicitamente se ouve ao pai do miúdo mesmo numa altura em que a relação entre as duas famílias até está no ponto mais amistoso (!); mas também a desconfiança e a incapacidade dos “americanos comuns” para cooperar, obcecados que estão em fazer as coisas “à sua maneira”, em defender o seu quintal (o seu front yard, a sua property). Quando duas famílias coexistem mas ambas se norteiam por esse esquizofrénico e autofágico princípio do “Family First”, como poderão elas sobreviver? Ampliando a questão para uma escala populacional mais vasta, logo se vê as leituras que se podem retirar do filme de Shults, pese embora vão sendo introduzidas, é certo, pistas narrativas que nos afastam dessa leitura mais política e que “justificam”, de alguma forma, o permanente “olhar para trás do ombro” de Paul (Joel Edgerton): quem é, afinal, o homem que ele mata na viagem de carro? Será o irmão de Will (que, num primeiro momento, afirma ter um irmão para, já depois dessa morte, se descuidar e se dizer filho único…)?
Paradoxalmente ou não, um dos grandes atributos do filme de Shults é a sua completa falta de pretensiosismo, uma “falta de ambição” que até poderia ser tomada – como equivocadamente foi por alguns – por inconclusividade ou exiguidade de ideias. O filme brilha, justamente, por deixar tudo incompleto, indefinido, tudo à imaginação do espectador. O que é o “It”? Não é o mal, não é o “monstro” (muito menos o “sobrenatural”, como equivocadamente se lê na sinopse oficial portuguesa, termo que não tem correspondência no original “unnatural”)… O “It” que vem à noite são os sonhos, ou seja, o próprio medo em si [há aqui uma certa ligação com o onirismo, igualmente aterrorizante e abismal, do também protagonista negro de Get Out (Foge, 2017)…]. Temos medo de sonhar (então e o american dream?)? Bem pode acontecer… Se calhar, tudo aquilo é – pode ser – só uma paranóia (muito americana, por sinal). O medo do medo, então, esse estado psicológico permanentemente latente na última década e com causa de nome bem conhecido (terrorismo). E o medo, também, afinal, do estranho, da diferença, ou melhor, daquele-que-é-diferente, possível metáfora para tanta segregação e estigma [o índio, o negro, o transexual, o doente, o HIV como em The Thing (A Coisa, 1982)]. Não digo que It Comes At Night (Ele Vem à Noite, 2017) seja um filme declaradamente político, mas partilha, sem dúvida, desse subtexto oculto à primeira leitura que insufla os grandes clássicos do terror americano (Romero, Carpenter, Hooper), o qual tem justamente faltado aos filmes de género nos últimos anos.
Francisco Noronha
Last Flag Flying (Derradeira Viagem, 2017) de Richard Linklater
Começo com um pormenor: esta imagem corresponde a um breve plano de passagem no qual o corpo do jovem soldado Larry, morto no Iraque, é colocado a bordo de um comboio a caminho de Portsmouth para ser enterrado junto da mãe. Esse é o desejo do pai, o ex-marine Larry Shepard (Steve Carell), contrariando os protocolos militares que preparavam um funeral com honras de estado no solo sagrado de Arlington, em cemitério destinado aos grandes heróis da nação. No plano, o caixão está dentro do comboio – não o vemos, ainda – e apenas assistimos aos gestos muito lentos e coreografados dos oficiais fazendo continência ao corpo (despedindo-se). Ao mesmo tempo que as mãos sobem mecânicamente até aos sobrolhos ouvimos os resfolegares próprios dos comboios parados nas estações. Nesse instante, Linklater aprofunda uma ideia que já tinha deixado entrevista: a instituição militar norte-americana como uma espécie de impotente animal mecanizado, cansado, lento, torpe pelo peso das suas convenções. Ou por aquilo que Linklater chama de “lubrificante social”, ou “little white lies”, que fazem a sociedade girar.
Last Flag Flying (Derradeira Viagem, 2017) tem essa roupagem de comentário social – fala-se das mentiras militares, da hipocrisia dos políticos, do desespero movido a álcool, sexo e drogas dos soldados de um Iraque como repetição de um Vietname. Tem aliás a dada altura, um esqueleto simbólico que coloca em cada um dos ombros da personagem de Carrel os seus amigos e companheiros de travessia, um diabinho e um anjinho ex-militares a sugerirem-lhe o que há-de fazer. O primeiro nunca casou, tem um bar onde se embebeda diariamente e quer viver o presente a toda a velocidade, pisando tudo o que o afaste da dureza da verdade. O segundo é um ex-drogado-alcoólico-agora-padre, preferindo os confortos da espiritualidade. Linklater vai filmar a viagem dos três amigos, com o caixão do filho do primeiro – uma espécie de inverso de 3 Godfathers (Os 3 padrinhos, 1948) de John Ford – e aproximar-se daquilo que faz de Linklater um bom cineasta. O interesse por filmar encontros de pessoas que viveram algo em comum no passado, encontros nos quais a passagem do tempo se funde num misto de nostalgia e até anacronismo. Boyhood (Boyhood: Momentos de Uma Vida, 2014) e a passagem do tempo, a sua before trilogy, falam disso, mas também o último dia de escola de Dazed and Confused (Juventude Inconsciente, 1993) , ou o retorno aos anos 80 e à entrada na idade adulta de Everybody Wants Some!! (Todos Querem o Mesmo, 2016). Talvez por isso, agora, a personagem do anjinho (Laurence Fishburne), que quer constantemente partir mas que vai sempre acabando por ficar, se torne tão exemplificativa do sentimento do universo linklateriano. Uma lucidez que quer fazer avançar, mas uma nostalgia que vai permanecendo… Como esta viagem dos três amigos que, apesar de derradeira, se vai saboreando aos poucos, como se fosse interminável. Não por acaso os langorosos planos de comboio, não por acaso as peripécias que vão adiando o fim, a meta, desta travessia de amizade e da memória. E quando lá chegamos é como se nunca tivéssemos partido. São essas as alegrias (mas também as penas) da memória.
Carlos Natálio
120 battements par minute (120 Batimentos por Minuto, 2017) de Robin Campillo
Uma das caras do cinema: coragem. Coragem de mostrar o que não foi mostrado. 120 battements par minute (120 Batimentos por Minuto, 2017) faz isso e por isso merece atenção. E que mais, além do estandarte histórico que carrega? O título dá-me uma pista. Os 120 batimentos são os do pulso acelerado, não necessariamente os da montagem frenética ou das cores fulgurante ao beat, mas também os da angústia pré-morte, os da indecisão de ver o corpo de um amigo/amante que acabou de falecer, os minutos em que se gastam a gritar mas ninguém parece ouvir, os batimentos da indecisão: “o que fazer?”. Campillo filma sobre esse pulsar acelerado e muitas vezes até erra: há momentos em que não acreditamos naqueles jovens belos a padecer, naquela raiva política ritmada, nos slow motions das gay parades ou das cores da noite nas discotecas.
Mas Campillo, quando acerta, mostra esses altos e baixos de um coração individual, mas também social, que se manifesta, que solta corações de sangue improvisados no peito da indústria farmacêutica; acerta quando filma as bolachas que há para comer após a morte de mais um membro do grupo, ou o raio do sofá-cama que, logo naquele dia, tem as suas molas que se põem a gemer e não encolhe, sabe-se lá deus porquê; acerta ainda quando nos mostra os clik, claks dos estalinhos dos membros das reuniões da Act Up e com eles uma pincelada histórico-social, uma forma gaulesa – ordenada, esclarecida, engajada e contida – de viver o Público. Um Público, conquistado à civilidade e elevação, que a morte e o desespero, mesmo esses, nunca põem em risco. Campillo acerta ainda onde Entre les Murs (A Turma, 2008), que co-escreveu com Cantet, tinha acertado, na dinâmica do diálogo, de uma conversação que esgrime e faz nascer as ideias. Como se assistíssemos à paciente colocação de uma câmara colectiva que vai filmar o impossível de ver: o nascimento de uma ideia. Conversa-se e filma-se (enfim, vive-se) entre a doença e a alegria, entre a morte como momento para sentir, e a morte como momento para reorganizar o pensamento, cerrar fileiras, pois era o tempo – início dos noventas – da sida como guerra. Uma guerra em que não se morria em privado, em que as cinzas dos mortos manchavam os cocktails dos vivos. Toda esta agitação subtil passa sob a forma de filme histórico que nos vem morder os calcanhares de tão próximos ainda que estamos, um filme em que o cinema é esse monitor amargo, a retardar tudo, a medir tudo. Cardíaco e bélico.
Carlos Natálio
Un beau soleil interieur (Um Belo Sol Interior, 2017) de Claire Denis
Un beau soleil interieur (Um Belo Sol Interior, 2017) é, logo a começar pelo título, uma estranha paródia. Donde poderá vir tal expressão? Sol interior?Belo? De algum livro de auto-ajuda? Nem mais. Na sequência que tudo clarifica e tudo literaliza, a cena final, a protagonista Isabelle (Juliette Binoche a fingir que é Isabelle Huppert) encontra-se com um vidente/coacher emocional (Gérard Depardieu) que na vagueza das suas palavras desencanta a expressão que intitula o filme. Uma conversa que tudo diz para quem nela quer ouvir o que deseja – e que se prolonga infinitamente, ainda que nada de interesse se oiça (não por acaso correm os créditos sobre essas palavras). Denis parece querer fazer com Un beau soleil interieur uma espécie de comédia romântica como mandam as regras da fórmula, mas sendo Claire Denis falha redondamente. E é nessa falha, nesse intervalo estreito entre o formulaico do rom-com e o cinema de autor do controlo sóbrio, que surge um filme estranhíssimo. Um melodrama que nunca chega a sê-lo, uma comédia que nunca dá exactamente para rir, uma paródia que se leva a sério, uma astúcia inconsciente, enfim, um desfile de personagens que sofrem de uma infantilidade emocional exasperante. E que por causa disso se magoam, mutuamente, em batalhas campais de sentimentos nefastos. Coisa diabólica na inconsequência da dor que causa – e só faz faz rir porque chorar é demasiado cliché.
Um filme que retrata esse desespero que corre no vazio, o desamor sem fundo, as expectativas construídas no ar. Mas donde vem tudo isso, todo esse desalento emotivo? Das comédias românticas, lá está. Lato sensu… Das efabulações poéticas do amor. E se o filme adapta livremente os Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes, apetece dizer que na verdade Denis é mais crente no Lacan, “o amor está já desde há algum tempo separado da beleza”. Daí a acidez irónica do título. Porque segundo Denis (e Lacan e demais carpideiras das possibilidades transfiguradoras do amor, da alegria e da felicidade) “o amor ter-se-á transformado numa banalidade sórdida, num lamentável fiasco entre corpos”. Un beau soleil interieur será portanto a afirmação triste (e até nostálgica) disso mesmo: de que as projecções imaginárias no amante conduzem a um confronto violento com a dura realidade. Confronto esse que é tanto mais doloroso quando se esperaria que a meia-idade dos vários personagens, a classe, os conhecimentos e as sensibilidades (artísticas) trariam consigo uma maturidade qualquer. Longe disso. A adolescência vigora, ad aeternum, como espécie de condenação perversa dos românticos.
Ricardo Vieira Lisboa
D’après une histoire vraie (A Partir de Uma História Verdadeira, 2017) de Roman Polanski
Um dos artifícios preferidos de Polanski nos seus filmes é a repetição da cena ou mesmo plano inicial no final do filme, como por exemplo em Death and the Maiden (A Noite da Vingança, 1994), Carnage (O Deus da Carnificina, 2011) e até The Ghost Writer (O Escritor Fantasma, 2010), mesmo que aí a repetição aconteça antes do final. Se nesses filmes a cena inicial, quando surge repetida mais tarde, ganha todo um novo significado perante tudo o que se passou entretanto, em D’après une histoire vraie (A Partir de Uma História Verdadeira, 2017), o mais recente filme de Roman Polanski, ficamos com a sensação que não saímos realmente do sítio onde começamos. Isto é, no campo dos jogos psicológicos e mistérios opacos da mente – temas que são também recorrentes noutros filmes de Polanski, e basta pensar em Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968) – desta vez estamos perante um filme que pouco acrescenta à filmografia do autor, já que o filme parece ele próprio a espaços indeciso sobre qual o rumo a tomar.
O filme acompanha a história de uma escritora de sucesso à medida que esta sofre de uma apatia crescente e cansaço em relação ao mundo à sua volta, em paralelo com um bloqueio na escrita. No meio de cartas anónimas ameaçadoras e roubo de materiais de escrita, surge no filme uma misteriosa mulher, que progressivamente introduz-se na vida e afazeres da escritora. A ideia desta segunda mulher aparecer como a materialização de uma nova personalidade da escritora, a par de um jogo curioso com a duplicidade física da mesma personagem, são as melhores ideias do filme, sem negligenciar as hipnóticas interpretações de Eva Green e Emmanuelle Seigner. No entanto, quando as duas mulheres deslocam-se para um cabana isolada para trabalhar num novo livro, a inversão que aí acontece parece abandonar as possibilidades dessas ideias e a hipótese de um mistério maior – será a segunda mulher um produto da imaginação da escritora, uma reacção ao seu bloqueio ou até parte de um esquema de extorsão? – parece dissipar-se, e os resultados são inconsequentes. Nem mesmo o obstinado “mergulho” num delírio progressivamente exagerado – um verdadeiro mergulho na lama aqui – como significante de uma perda de controlo e isolamento é suficiente para ignorar que Polanski já fez parecido e melhor [pensamos, além dos títulos referidos no início, em Le locataire (O Inquilino, 1976)], e surge aqui numa espécie de piloto automático, incapaz de surpreender.
João Araújo
Wonder Wheel (Roda Gigante, 2017) de Woody Allen
O meu cansaço com Woody Allen não é de agora. Talvez a paga ao conceder-lhe somente uma estrela não seja a mais justa, mas feito o mea culpa, a tristeza que sinto sempre que me presto, anualmente, a mais um filme deste, sei que dali não sairá nada de bom e regresso a casa, mais uma vez, equacionando o seu lugar, por entre os filmes distantes que amo e o caldo insípido de 20 anos que este tem vindo a servir. Teria de regressar à década de 90 e partir dela retrospectivamente, para pensar nesse Allen, esse realizador de que tanto amo e que me deu Alice (1990), Purple Rose of Cairo (Rosa Púrpura do Cairo, 1985), Interiors (Intimidade, 1978), Hannah and Her Sisters (Ana e as Suas Irmãs, 1986) , Zelig (1983), September (Setembro, 1987), Manhattan (1979) ou Love and Death (Nem Guerra Nem Paz, 1975). São inúmeros os exemplos, como podemos confirmar, de um cineasta maior e com uma década de 80 absolutamente brilhante. É sobretudo essa década que coloca a ridículo este realizador conformado e preso a fórmulas gastas, incapaz de abandonar a cena, sempre disposto a mais uma variação do mesmo, sem brio ou que possamos sentir ali qualquer devoção.
Porque foi Allen um dos primeiros realizadores a quem chamei “meus” e a quem lhe devo, nessa devoção que tenho ao cinema, a bela homenagem ao meu lugar, o lugar do espectador (refiro-me evidentemente a Purple Rose of Cairo). Por isso sou incapaz, incapaz de julgar a obra autonomamente deste e não retaliar, quando o cansaço se acumula, dos múltiplos exercícios onde tudo falha, onde tudo soa a falso e a maneirismo. Porque é de maneirismos que este filme vive e tenta sobreviver. A cor inegável, o melodrama bem tecido, todos os elementos para mais um hit do “aclamado realizador”. Enfim, é com lamento que penso e escrevo sobre este Allen e mais lamentável é pensar, que nos próprios raros rasgos, quer cómicos, quer dramáticos, estes sejam a pálida forma daquilo que houvera sido enorme em qualquer um dos géneros. Resta esperar que a roda, quiçá, dê a volta e possamos ver de novo esse esplendor. Por enquanto resta apenas o cansaço, o cansaço da imutabilidade da vida dos seus personagens e do seu cinema.
Bernardo Vaz de Castro
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