You seem to be very earthly for a spirit.
—Mrs. Muir, The Ghost and Mrs. Muir
A primeira imagem
No primeiro segundo de Odete (2005), de João Pedro Rodrigues, o espectador não vê muito mais do que um conjunto de linhas e zonas de luz e sombra, que formam uma imagem quase abstracta. A câmara afasta-se lentamente, revelando primeiro duas bocas unidas, e mostrando depois os dois homens que se beijam, abraçados, junto a um automóvel.
Se o movimento destes quarenta segundos se concretiza na progressiva revelação dos rostos das personagens, oferecendo-lhes assim uma espécie de identidade (estes são os indivíduos cujos destinos o filme acompanhará), há que valorizar aquele primeiríssimo momento em que a quase totalidade do campo está preenchida com pele, que evolui para um segundo momento em que já se consegue descortinar um beijo, sem que se possa ainda, porém, identificar os indivíduos que o protagonizam (o terceiro estágio). Se Odete é necessariamente sobre os destinos de Pedro, Rui e Odete, é também, num entendimento que poderá ser mantido no horizonte, sobre um certo tipo de pulsões – fortes, paroxísticas, vitais – que escapam necessariamente ao discurso (da narrativa, da psicologia). A primeira imagem – que pode efectivamente ser entendida como matricial – concretiza, de alguma forma, o centro deste filme: uma proximidade e uma interdependência tais entre dois seres, que se torna impossível determinar com precisão onde começa e termina cada um deles. Ao escolher iniciar o seu filme no domínio da abstracção, Rodrigues revela compreender perfeitamente que esta força, sensorial e cósmica – e não inteiramente física ou mental –, não tem correspondente na linguagem ou na imagem mimética. A primeira imagem responde assim a uma espécie de catacrese na origem do filme: como conferir inteligibilidade cinematográfica a uma série de forças que escapam ao entendimento e que, contudo, todos nós (ou, pelo menos, aqueles de nós que padecem de romantismo) reconhecemos?
Este problema teórico torna-se, em Odete, também, e necessariamente, um problema de forma. Se estivéssemos no reino da fotografia, a imagem (“mensagem sem código”, disse Barthes) contaria apenas com a sua natureza icónica para veicular quaisquer sentidos. No contínuo metamórfico das imagens de cinema, contudo, torna-se necessário encontrar outro tipo de respostas para este problema. Em Kiss (1963), Andy Warhol propôs uma forma particular para uma hipótese semelhante (a associação a Warhol não é aleatória, já que, para além de ecos de Kiss, encontraremos aqui também a memória de Blowjob). João Pedro Rodrigues encontra o seu meio num género cinematográfico: o melodrama. Como concretizar, num filme narrativo e melodramático, a ideia em que consiste a primeira imagem?
Pedro e Rui
Quando, no primeiro plano, a câmara recua o suficiente para revelar os dois homens, surge em campo um elemento que perturba o equilíbrio da imagem. A área de campo ocupada por esse elemento contém um realce de luz que destoa do resto da imagem, perfeitamente exposta. Falo do anel, que se vê a reflectir uma luz anómala. Num primeiro olhar, pode parecer que o facto de o anel reluzir tão vincadamente, estando enquadrado numa imagem que, de resto, está em geral escurecida, tem origem num pequeno (e certamente perdoável) descuido do director de fotografia, Rui Poças, que não considerara devidamente este pormenor na composição da imagem. Poderia tratar-se, por exemplo, do reflexo inadvertido de um candeeiro de rua.
No entanto, um olhar mais demorado deve levar-nos a intuir que o anel não reflecte a luz de um candeeiro de rua, ou de outra fonte de luz análoga (diegética), mas sim de um foco luminoso artificial localizado algures fora de campo e directamente apontado para o anel. Assim, nesta cena, a iluminação não pretende apenas criar condições de visibilidade para o espectador (na medida em que qualquer cena deve ser iluminada, para que haja uma imagem perceptível – é evidente), mas essencialmente iluminar aquele anel. Em suma, este efeito visual revela-se um efeito de mise en scène, que, como qualquer efeito de mise en scène nos melodramas clássicos cuja influência Rodrigues parece querer vincar em Odete, raras vezes se limita à disposição de elementos em campo com vista à construção de uma imagem bela ou verosímil, mas sim visando a elaboração de uma imagem que signifique por meios inteiramente visuais ou plásticos: os corpos dos actores, a luz, os objectos, a disposição dos elementos no espaço, etc.
Sugeri atrás que Odete se constrói de maneira a dar forma a uma ideia que é veiculada na primeira imagem, e que para tal recorre ao género melodramático. Sendo o melodrama um género particularmente codificado – dir-se-ia mesmo que é o género cinematográfico por excelência da mise en scène em pleno sentido, isto é, da colocação em cena (lembre-se a herança do teatro sensacionalista) –, este momento, em que se chama a atenção do espectador para o anel, é o primeiro momento em que o filme ingressa no domínio da retórica para concretizar a sua ideia. Isto é, da ideia (a união de dois seres destinados um ao outro), passa-se a elementos concretos. Da abstracção, transita-se para a figuração. No entanto, todos os elementos concretos (figurativos) com que o filme trabalhará estarão contaminados por essa ideia que aglutina tudo, ou seja, estarão irremediavelmente agrilhoados ao domínio do simbólico – o que é, já vimos, tão característico do melodrama como do cinema de João Pedro Rodrigues em geral.
O anel apresenta-se como a figura do filme em pelo menos três níveis: narrativo, simbólico e formal. Ao nível da intriga, o anel acompanhará o desenvolvimento do filme, passando – como os brincos da Madame de…, de Ophüls (1953) – de personagem para personagem; ao nível do símbolo (e com algo de mito), ele funcionará sempre como figura da relação entre Pedro e Rui, que encenam um casamento nesta primeira sequência; ao nível da forma, a circularidade do objecto será replicada pelo filme, cuja progressão narrativa visará a repetição da cena inicial no fim.
Com efeito, o filme define-se na primeira sequência, que se prolonga durante cerca de cinco minutos. Pedro e Rui beijam-se junto ao automóvel do primeiro, comemorando o primeiro aniversário da relação. Antes de se separarem, trocam votos matrimoniais: “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida, até que a morte nos separe”. Não obstante a ausência de um padre, e o facto de os votos serem trocados numa cerimónia improvisada numa rua de Lisboa, ao invés de numa igreja, este casamento não é paródico. Ele é real e efectivamente (em sentido etimológico) religioso, na medida em que une de facto estas duas personagens de forma irrevogável. Esta estrutura que problematiza as fronteiras entre o jogo da representação e a realização efectiva desse jogo no plano do real – ou, por outras palavras, mais platónicas, entre o parecer e o ser –, que já estava aliás presente em O Fantasma (2000 – Sérgio a imitar um cão e a animalizar-se efectivamente) e voltaria a aparecer, por exemplo, em China, China (2007, um filho a fingir disparar sobre a mãe, disparando realmente), regressará em Odete como um dos tópicos-chave, nas figuras de uma gravidez histérica e de uma metamorfose física que esconde uma mudança mais profunda.
Depois de trocados os votos, ouve-se a partir de um rádio uma versão contemporânea de Moon River. Trata-se da canção do casal, cuja transformação electrónica eles recusam (“o que é que eles fizeram à nossa música?”), mas que, no efeito de variação instaurado sobre um original de Henry Mancini ao qual remete inevitavelmente, funciona como uma outra figura análoga do próprio filme, entendido enquanto palimpsesto erigido sobre uma memória cinematográfica particular que inclui cineastas como Blake Edwards, Joseph L. Mankiewicz, Alfred Hitchcock, Douglas Sirk ou R. W. Fassbinder. Para além disso, a letra de Johnny Mercer acrescenta dois ingredientes importantes à receita trabalhada por Rodrigues, que desenvolverei adiante: a ideia de travessia (“moon river, I’m crossing you”) e a de duas almas perdidas (“two drifters, off to see the world” – saberemos mais tarde que inscrito no anel está precisamente a expressão “2 drifters”, que se tornou também o título internacional do filme).
Pedro e Rui separam-se. Pedro, ao volante, diz através do vidro: “amo-te”, e Rui responde: “vais ter de me provar isso.” O automóvel parte, e permanecemos com Rui, que momentos depois telefona ao namorado para lhe desejar boa sorte para o exame que terá no dia seguinte. Ouve-se então, ao longe, o ruído de um automóvel a despistar-se e a colidir. Rui corre pelas ruas e encontra o automóvel, com Pedro prostrado sobre o capô, entre os vidros, ensanguentado, mas ainda vivo. Rui toma-o nos braços, e o moribundo abre os olhos, inclina-se ligeiramente para a frente, como se tentasse dizer alguma coisa, mas só o sangue jorra da sua boca. Valorizar este momento como um ponto fulcral da metamorfose pela qual Pedro passa ao longo do filme permite-nos complexificar a sua passagem ritualizada de vivo a morto (ele morre nesta sequência).
Se inicialmente o víramos como um homem ordinário, que dialoga com o seu cônjuge com normalidade, neste momento ele tenta falar, mas já não consegue. Entre a vida e a morte, Pedro experimenta uma vontade de comunicar alguma coisa que já não pode passar pela linguagem (porque ele não consegue articulá-la), sendo transformada em sangue. De certo modo, no momento da morte, ele diz sangue, e, “dizendo sangue”, exprimindo a condição da sua vida que termina, substitui a palavra pela carne, a linguagem pela acção e o narrativo (o realista) pelo mitológico, no cumprimento de uma promessa: a de provar o seu amor. Deste modo, o filme que, no segundo inicial, era só pele, superfície, torna-se, no seu segundo momento paradigmático, um jorro de sangue, um salto para o encoberto. Deve reiterar-se que, em qualquer um destes dois momentos, a linguagem está em falta; mas interessa-me agora sublinhar a ideia de que ambas as figuras apontam para a materialidade do corpo enquanto condição de existência no mundo, o que é essencial no cinema de João Pedro Rodrigues em geral, e, em particular, na ideia que este filme desenvolverá. Esta corporeidade não é, contudo, imóvel ou materialista, como um atestado de fixação à terra; ela é, e é isso que a distingue, imprecisa, volúvel, metamórfica, e leva-nos a questionar lugares-comuns associados ao corpo enquanto categoria estética que se prende com a vinculação a uma esfera matérica e realista.
É importante ressalvar o modo subtil como os primeiros minutos de Odete sublinham elementos do domínio da corporalidade, justamente porque a sequência termina com a falência de um corpo, e o resto do filme visará a sua substituição. O corpo de Pedro não deixará de existir no plano imagético do filme, uma vez que voltará a ser visto no velório, enquanto cadáver. Mas uma vez que o sangue não corra nele, e que a pele comece a perecer, este corpo deixa de ser um lugar habitável por Pedro, o lugar que, na relação com esse outro lugar que é o corpo de Rui, cria condições para a materialização dessa mesma ideia que o filme trabalha, e à qual inicialmente aludi.
Mas há aqui, para além do sangue, outro elemento em que devemos atentar. Trata-se da vontade de Pedro de comunicar com Rui, expressa pela forma como se inclina em direcção ao namorado, quando este o segura nos braços. Num primeiro momento, é inevitável pensar: “o que quis ele dizer?”, numa especulação associável a uma certa fetichização cultural com as últimas palavras do moribundo. Não se ouvindo nada neste passo, somos obrigados a contentarmo-nos com as palavras proferidas minutos antes, dentro no automóvel: “amo-te.” Tanto quanto sabemos (não ouvimos a conversa ao telemóvel), estas são as últimas palavras de Pedro (são certamente as suas últimas palavras no filme), o que por si só já seria significativo. Estas palavras podem adquirir um acréscimo de significado, no entanto, se voltarmos a atentar na resposta de Rui: “vais ter de me provar isso.” Pedro não responde a isto, mas o filme revelará qual é a sua resposta, e esta não passará pela linguagem, mas por algo muito mais contundente. Pedro encontrará uma forma de retornar do mundo dos mortos, de forma a poder voltar a estar junto de Rui. Disto é sinal a sua vontade última de comunicar, num momento em que o seu modo de expressão já não é o da linguagem (já não pode dizer “amo-te”, ou “vou provar-te que te amo regressando de entre os mortos”), e começa a ser outro – do domínio do inefável –, funcionando o sangue como figura dessa mudança, que acompanha – veremos – uma rematerialização absoluta, uma vez que Pedro precisará de um outro corpo com novo sangue.
Pedro morre, e Rui abraça-se com força ao seu corpo. Começa a chover (em jeito melodramático piegas, o céu chora com as personagens e com o espectador), e inicia-se um travelling em direcção às personagens, que replica, em negativo, o travelling inicial. A câmara avança até estar muito próxima dos dois, num momento em que já não se vê nenhum rosto (a heterodoxia figural do plano anuncia um regresso à abstracção do início), e dá-se início a um lento fade to black.
Atentar com cuidado neste fade to black torna evidente um novo trabalho de enfatização do anel. Antes de o campo ficar inteiramente negro, o último elemento visível é o anel. Mais uma vez, este reluz, reluzindo de uma maneira ligeiramente artificial (lembrando as lágrimas ligeiramente oversized de algumas personagens de Fassbinder), o que chama a atenção para a sua ampla importância ao nível da economia narrativa (e figural, já o vimos) do filme, bem como sublinha a função simbólica que Rodrigues tratará de desenvolver. Mas convém ressalvar que, neste filme sobre “dois drifters” (como diz Odete a certa altura), não há apenas um anel, mas dois, cada um deles contendo a mesma inscrição “2 drifters”. No início, víramos o anel de Pedro; agora, vemos o anel de Rui. O trabalho visual sobre eles, no entanto, é, como avancei, semelhante, o que sugere uma sobreposição (eles são iguais, contém a mesma inscrição, reluzem da mesma forma, são trabalhados visualmente da mesma maneira) que denuncia, por meios inteiramente visuais, a confluência entre os amantes Pedro e Rui. A troca de alianças foi acompanhada pelo casamento, que uniu aqueles dois corpos e aquelas duas almas (digamos assim, em termos melodramáticos). Os anéis representam, assim, o contrato que conecta oficialmente Pedro e Rui. E, no entanto, Pedro morre logo depois de assinado este contrato, perdendo uma das coisas necessárias para o cumprimento da ideia que o anel cumpre simbolicamente: um corpo, sem o qual – aliás – se compromete a existência do próprio anel.
Isto permite-me afinar um pouco a ideia avançada antes, de que Pedro precisará de encontrar um outro corpo com novo sangue. Ele precisará de encontrar um outro corpo, com novo sangue, e com um novo dedo onde seja possível usar o anel. A prova de amor que Rui requereu a Pedro no início (“vais ter de me provar isso”) consistirá – em termos imanentes – em encontrar uma forma de voltar a usar aquela aliança.
Odete, Pedro e Rui
O ecrã negro é substituído por um plano fixo do corredor de um supermercado, e ouve-se “Both Sides Now”, de Joni Mitchell, numa versão de Andy Williams. Uma funcionária do supermercado, Odete, entra em campo sobre patins. Ela não é, portanto, desde o primeiro momento, uma personagem inteiramente terrestre. De novo, a música modaliza o filme de forma decisiva. Indiciando noções como divisão, confluência e simultaneidade, o título da música, “Both Sides Now”, revela desde logo um programa que Odete desenvolverá em diversas frentes. Os dois lados que o filme explorará em simultâneo serão múltiplos: a vida e a morte, o corpo e a alma, a sanidade e a loucura, a concretização do amor e a sua impossibilidade, o masculino e o feminino, a verdade e a mentira. Mas é também assinalável que esta canção se oiça no momento em que a personagem de Odete surge pela primeira vez em campo, imediatamente após a conclusão (com cliffhanger) do “filme dentro do filme” dos primeiros minutos.
Anuncia-se aqui a confluência de dois filmes: o de Pedro e Rui, e o de Odete. Na verdade, Odete resulta da convergência destas duas histórias, que, não obstante não possuindo nada em comum à partida (Pedro e Rui nunca ouviram falar de Odete, e vice-versa), não se poderiam completar sem o auxílio uma da outra. Este problema de forma (narrativa) resulta também num problema de interpretação: a compreensão do filme pode privilegiar a história de Odete – e nesse caso estamos perante o relato do enlouquecimento de uma mulher –, ou pode dar prioridade à história de Pedro e Rui, resultando daí uma narrativa de fantasmas, com algo de gótico, sobre um amour fou (com algo de surrealista, também) que termina no regresso de um homem de entre os mortos para se reunir com o amado. De qualquer modo, o filme que resulta deste encontro é radicalmente impuro e instável, o que parece comprometer voluntariamente qualquer interpretação radical, num gesto que resulta, em última análise, no que acaba por ser o triunfo de um regime da fluidez e da porosidade, que aliás se liga directamente com a problematização dos pares dicotómicos que referi acima, e que é o que Rodrigues tem trabalhado na generalidade dos seus filmes (incluindo aqueles realizados com João Rui Guerra da Mata), de maneiras distintas.
No entanto, não obstante a multiplicidade de interpretações possíveis (que permite mesmo chegar ao limite de recusar qualquer elemento sobrenatural do filme – o que me parece um erro [contudo não inteiramente desprovido de interesse]), parece provável que, na sobreposição das duas histórias, a de Pedro e Rui se destaque, uma vez que, como vimos, a forma de Odete parece responder directamente à história deste amor.
O título do filme torna-se, assim, particularmente significativo, ao encerrar ele mesmo um desvio, um diferimento que rompe a referencialidade da nomeação (na discussão da carga simbólica do título, deve notar-se que o O de Odete duplica também, figuralmente, o anel). Em geral, os filmes intitulados a partir de uma personagem têm nela a sua protagonista. E, no entanto, Odete não parece ser a protagonista indiscutível deste filme. Seguindo a linha de leitura que venho desenvolvendo aqui, esse estatuto, pelo contrário, parece pertencer a Pedro. A atribuição do protagonismo a Pedro pode parecer uma excentricidade, uma vez que esta é a única personagem que está morta durante quase todo o filme. Porém, vendo Odete sob a lente que tenho vindo a usar, torna-se evidente que esta é a única personagem que age efectivamente, que tem uma missão, contrastando com Rui e Odete, que se comportam como uma espécie de zombies (outra figura que ressurgiria, de forma mais literal, em Manhã de Santo António [2012]) – ele porque está de luto, ela porque se torna uma espécie de marioneta (ainda que marioneta auto-consciente, que se oferece à instrumentalização), sendo rasurada e possuída por Pedro, o revenant – durante todo o filme. Falamos, assim, de um ménage à trois através do qual o elemento da morte revive, enquanto os elementos vivos fenecem.
E, no entanto, não se deve estranhar demasiado que o protagonista do filme seja uma personagem ausente. Numa revisão rápida da história do cinema, surgem como casos paradigmáticos desse fenómeno alguns filmes que podem ser considerados na perspectivação deste: Rebecca (Alfred Hitchcock, 1940), Laura (Otto Preminger, 1944), ou A Letter to Three Wives (Carta a Três Mulheres, de Joseph L. Mankiewicz, 1949), por exemplo. A adopção do título Odete parece ser assim, por um lado, um gesto irónico, mas também uma maneira de filiar o filme a um certo universo (mais, ou menos, melodramático) em que as obras são intituladas à semelhança das suas personagens femininas: para além dos casos já citados – e sem esquecer as formas particulares através das quais cada um destes filmes trabalha a relação entre o título e a mulher à qual ele se reporta –, refiram-se apenas três exemplos, de entre outros possíveis, que se afiguram particularmente pertinentes neste contexto: Lola Montès (Max Ophüls, 1955), The Ghost and Mrs. Muir (Mrs. Muir e o Fantasma, de Joseph L. Mankiewicz, 1947), ou Martha (R. W. Fassbinder, 1974).
Na verdade, o parentesco com Martha tem um interesse especial, uma vez que já em Fassbinder o título concretizava uma aproximação à tradição melodramática semelhante à que Rodrigues desenvolve aqui. E, tal como Fassbinder destrói a sua heroína nesse filme, Rodrigues fá-lo também – de maneira distinta – em Odete. Se o filme é sobre o regresso de Pedro ao mundo dos vivos, Odete é a heroína da história apenas na medida em que é ela quem possibilita – sendo apagada pelo processo de possessão e substituída na metempsicose – esse regresso e o happy ending que dele resulta, e que exprime a problematização do filme da sua própria conformação narrativa, codificada, melodramática, desconstruída, restaurada.
Desde a sequência no supermercado até à cena final, assistiremos ao processo de possessão de Odete. Nas primeiras sequências, em que este processo ainda não teve início, temos acesso a uma vaga caracterização psicológica da personagem. No supermercado, ela é chamada a uma caixa e é-lhe pedido que verifique o preço de um artigo para bebé. Nesse momento, a cliente sente-se indisposta, e as duas funcionárias oferecem-lhe ajuda, que ela recusa, desvalorizando a tontura enquanto sintoma natural da gravidez. No fim da cena, Odete pede à mulher para a deixar tocar o seu ventre, e a cena termina com um grande plano das suas mãos sobre o ventre da mulher grávida.
Dá-se um corte para o pequeno apartamento de Odete, onde esta se encontra com o namorado Alberto. Ela pede-lhe que tenham um filho juntos e, perante a recusa dele, tem um ataque de histeria, batendo-lhe e expulsando-o de casa, nu, no próprio momento. Mais tarde, arrependida, Odete telefona ao namorado, mas ele não atende. Ela envia-lhe uma mensagem por telemóvel, mas não obtém resposta.
Dir-se-ia que, ao testemunhar o modo como a mulher grávida obtém a atenção de todos à sua volta, Odete decide ter um filho, perspectivando-se enquanto objecto do mesmo tipo de atenção. Face à recusa do namorado de a engravidar, ela – ao invés de iniciar uma conversa, por exemplo, tentando persuadi-lo – reage violenta e irracionalmente, expulsando-o. Em poucas cenas, caracteriza-se, com grande eficácia, Odete como uma personagem com algo de infantil (as pulseiras coloridas, o modo como se agarra ao peluche do Snoopy após expulsar Alberto, etc.), carente, sugestionável e histérica.
Decorreram apenas cerca de dez minutos de filme, e isto é tudo o que saberemos de Odete. Trata-se, no entanto, de uma caracterização perfeitamente suficiente para deixar desde logo claro que esta mulher possui uma espécie de vazio interior que procura preencher com décor (a obsessão por Peanuts) e efabulações (a gravidez). Esta mulher oca é, assim, apresentada como a criatura perfeita para acolher Pedro e a sua história, tomando para si a história dele e, desse modo, concretizando também a sua, aquela com que sonhava caprichosamente. Não podendo ser amada como Odete (como Judy), será amada como Pedro (como Madeleine).
Depois da ruptura, vemos Odete sentada na fila de trás de um autocarro, a deixar uma mensagem de voz a Alberto. Ela olha para o exterior, e a câmara filma-a a partir de fora, dando a ver a paisagem reflectida no vidro e sobreimpressa no rosto dela. Esta é a primeira metáfora visual que sugere um estado de desmaterialização e de perda de inteireza, num recurso característico de Rodrigues, a que já tínhamos assistido em O Fantasma e que voltaríamos a ver em Morrer como um Homem (2009), dois filmes que documentam também a precariedade dos limites (físicos, mas não só) do ser (em Sérgio no primeiro, em Tónia no segundo). Logo de seguida, quando presumidamente o autocarro entra num túnel, a imagem escurece num novo fade to black – ainda com Odete em campo, vista através do vidro –, sugerindo o apagamento iminente desta personagem, que começará, de facto, na sequência seguinte.
Chegada a casa, Odete apercebe-se da morte de um vizinho. Recebe uma mensagem de texto de Alberto a terminar relação e telefona-lhe de volta, mas, quando ele não atende, atira violentamente o telemóvel ao chão, partindo-o. Neste momento paroxístico, surge o primeiro elemento com um tom declaradamente sobrenatural: uma ventania (bem audível na banda de som, lembrando Benilde ou A Virgem Mãe [1975], de Manoel de Oliveira, outro filme sobre uma grávida histérica) irrompe pela janela da qual, momentos antes, Odete espiara a mãe do vizinho falecido (e que saberemos tratar-se de Pedro).
Na cena seguinte, no velório, todos dormem quando Rui se debruça sobre o cadáver de Pedro para o beijar. Nesse preciso momento, Odete – que dormia – abre os olhos, como se tivesse sentido o beijo. Algo, do domínio do sensível, é já partilhado entre Odete e Pedro. Logo depois, sem que alguém veja, Odete rouba do dedo do cadáver o anel. Neste momento da narrativa, tal acto surge aparentemente desprovido de sentido, mas retrospectivamente perceber-se-á que a possessão já teve início, que Pedro precisa de que o anel não seja enterrado com ele para poder regressar, e que instrumentaliza Odete nesse sentido, do mesmo modo que Odete instrumentaliza as coordenadas narrativas, estereotípicas – logo, transmissíveis – da história de amor entre Pedro e Rui para tecer o seu próprio enredo.
Pouco depois, Odete declara-se grávida de Pedro, que, ao que parece, ela nem conhecia pessoalmente. A dado momento, vemos Odete no supermercado a fazer um teste de gravidez, cujo resultado é negativo. Depois, numa noite de tempestade, vemo-la sobre a campa de Pedro, gritando: “fode-me”. Por fim, vemo-la junto da campa, acompanhada pela mãe de Pedro, mostrando o que parece uma barriga de grávida. Neste momento, percebemos que Odete está grávida. A montagem destas cenas não deve levantar dúvidas: num primeiro momento, Odete não está grávida; num segundo momento, ela pede a um homem morto que a engravide; e num terceiro momento, ela está grávida. E, no entanto, sabemos que, em princípio, os mortos não engravidam mulheres. Mais tarde, um médico diagnosticar-lhe-á uma gravidez histérica, o que revelará que a gravidez no filme não é literal, mas sim um elemento que deve ser entendido no seu valor simbólico.
Regressando à cena nocturna no cemitério, ouvimos Odete a chamar Pedro à terra: “vem”. Como numa séance, o espírito do morto é efectivamente invocado por alguém que está vivo e que está disponível para ser possuído – a polissemia do verbo “possuir” deve ser contemplada: ela diz “fode-me”, como poderia dizer “possui-me”. Assim, quando Odete pensa estar a ser sexualmente possuída pelo morto, ela está, na verdade, a ser sobrenaturalmente possuída por ele, que entra nela, não através de penetração, mas por metempsicose, a transmigração da sua alma para o corpo dela, na criação de um cenário de total confusão de identidades. A partir deste momento, a gravidez torna-se uma figura que – não obstante algo irrisória (tocar os limites do ridículo e do inverosímil é um risco que Odete corre desavergonhada e afortunadamente) – funciona como símbolo efectivo da possessão.
Uma mulher grávida tem uma vida a desenvolver-se dentro dela, o que transparece na bem conhecida silhueta em que sobressai um ventre proeminente. No caso de Odete, o esquema de significação é semelhante: ela tem efectivamente uma nova vida a desenvolver-se dentro dela. Porém, não há dentro dela uma forma material e humana, mas outra coisa – literalmente, “a thing from another world”. E assim, quando ela diz “estar grávida de Pedro”, não está a dizer que “está grávida de [um filho de] Pedro”, mas sim que “está grávida de Pedro”, como se este estivesse no lugar do feto. Isto significa que, no cinema de Rodrigues, a relação entre aquilo que vemos e a verdade não é, de todo, evidente, como bem se percebe vendo, por exemplo, Morrer como um Homem, em que a relação de ruptura e continuidade entre essência e aparência é um eixo central de reflexão. Em Rodrigues, as coisas ganham frequentemente sentidos insuspeitos: em Odete, uma gravidez torna-se um estranho índice de possessão.
A partir de então, o filme trabalha a metamorfose física de Odete em Pedro e, ao mesmo tempo, a convergência anímica de ambos. A certa altura, Odete muda-se para o cemitério, deitando-se sobre a campa de Pedro para dormir – isto é, tomando literalmente o lugar do morto (o que é enfatizado por um top shot que os sobrepõe efectivamente) –, sendo acordada na manhã seguinte pela mãe dele, que diz: “minha filha!” Esta sequência marca definitivamente o processo de transformação. Em vez de “minha filha”, a mãe poderia dizer “meu filho”. Ela leva Odete para casa, e põe-na a dormir no quarto de Pedro. Odete olha pela janela e vê um cenário muito semelhante àquele que Pedro pode ver do cemitério: o Tejo e a ponte 25 de Abril, convenientemente trazendo à lembrança a São Francisco de Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, de 1958).
A partilha do ponto de vista a partir do quarto e do cemitério volta a sugerir – desta vez por meios espaciais – uma identificação entre o quarto e o cemitério e, consequentemente, entre Odete (no quarto) e Pedro (no cemitério). Odete telefona a Rui a partir do telefone de Pedro (vemos o nome de Pedro no telemóvel de Rui, como se fosse efectivamente o morto que ligasse), e depois veste as roupas de Pedro (uma camisola semelhante à que ele usara na noite da sua morte), e dirige-se a um cabeleireiro, armada com uma imagem do defunto, e pede à cabeleireira que lhe corte o cabelo à semelhança da fotografia. Nestas cenas, os espelhos em que Odete se olha devolvem-lhe uma imagem já perfeitamente contaminada por Pedro. No universo de Rodrigues, uma possessão não poderia efectivar-se apenas no domínio da metafísica, é preciso trabalhar a superfície da imagem para a tornar, em termos de Fernando Guerreiro que se revelam aqui particularmente adequados, pregnante.
Perto do final, Odete/Pedro entra na discoteca onde Rui trabalha, dirige-se ao balcão, olha para Rui, e desmaia. Sabemos então – porque antes víramos Rui a contar esta história a Odete – estar a assistir à repetição do primeiro encontro entre os dois homens, um ano e meio antes. Rui leva Odete/Pedro para o armazém da discoteca, encaixa a aliança (que Odete/Pedro lhe deixara em casa, após encomendar um reajuste ao seu dedo) no dedo de Odete/Pedro, e beijam-se, iniciando-se uma aproximação aos dois rostos que retoma o movimento de câmara inicial. Pedro e Rui voltam a estar reunidos numa nova cerimónia matrimonial, a prova de amor de Pedro fica dada, e o círculo (em forma de anel) em que consiste Odete termina.
Porém, o filme não termina aqui. Segue-se a esta cena um último plano, em jeito de epílogo, em que Odete/Pedro penetra Rui (e a penetração, tal como o casamento no início, é real). A câmara afasta-se lentamente do casal, revelando o fantasma de Pedro, estático, a assistir à cena. Só então o filme conclui.
Para além da filiação ao melodrama ficar devidamente inscrita através do cartaz que então se vê na parede, de Tarnished Angels (O Meu Maior Pecado, 1957), de Douglas Sirk, há uma outra referência, não evidente, que deve ser tida em conta. A aparição do fantasma de Pedro é figurada exactamente da mesma forma que a da primeira aparição do fantasma do capitão Daniel Gregg em The Ghost and Mrs Muir. Não se deve entender esta alusão apenas como mais uma citação ou um elemento intertextual (tratando as duas histórias de viúvos e de fantasmas), mas sim atender às implicações que ela tem ao nível do entendimento de Odete enquanto filme que, tal como o de Mankiewicz, à sua maneira, põe em evidência diversas questões de índole teórica acerca do cinema enquanto meio espectral de representação.
O estatuto ontológico do fantasma de Gregg é um dos problemas centrais do filme de Mankiewicz. É este um espectro real, ou fruto da imaginação sugestionável de Mrs. Muir? Ainda antes de procurar responder-se a essa pergunta, deve compreender-se que identificar com precisão o estatuto do fantasma não pode tornar-se o aspecto fulcral da análise do filme. O ponto fundamental, creio eu, é que, independentemente de o fantasma ser real ou imaginado, a sua verdade é indubitável, ao nível da experiência, para Mrs. Muir, e, como consequência disso, ele adquire um nível de realidade inequívoco através dos efeitos que provoca nela. Isto é: habitando o mundo (o fantasma existe efectivamente no mundo ficcional), ou habitando os vivos (o fantasma é alucinado por uma personagem), ele habita um espaço que, contaminando-o, tornando-o seu, fantasmagoriza. E este espaço é, tão-só, o do cinema e das suas imagens (de Gene Tierney, da casa junto ao mar, da superfície do nitrato).
O filme de Mankiewicz acaba por sugerir que o fantasma era efectivamente real, na medida em que a experiência da sua alucinação foi partilhada (muitos anos depois de o ter visto pela última vez, e ter-se convencido de que ele era apenas um sonho, Mrs. Muir descobre que a filha também privara com Daniel Gregg), tal como Odete o faz neste final em que se vê Pedro a olhar para Rui e Odete/Pedro. Mas a sugestão subliminar, e mais importante, que os dois filmes partilham é que, em cada um deles, o trabalho do filme resulta da acção do fantasma, isto é, ao nível da intriga, são os fantasmas que fazem os filmes realizarem-se, tornando-os, de alguma forma, obra sua. Numa arte que vive da contaminação do físico pelo espectral, os vivos não podem sair incólumes.