Para quem estudou jornalismo, e se interroga dia sim, dia não sobre as linhas com que a verdade se cose, filmes que lidam com a relação entre a imprensa e o poder político servem sempre de alimento a um desejado debate. Escrevia recentemente sobre The Post (2017), a última – e muito aclamada – obra de Steven Spielberg, produzida dentro da tradição do chamado cinema liberal americano. É interessante ver como, nestes tempos em que se discute a virtude do denunciador, Spielberg se concentra maioritariamente numa decisão administrativa de publicar ou não informação confidencial de interesse público, os chamados Pentagon Papers, que comprometeram a imagem dos vários governos americanos que sancionaram a guerra no Vietname. O denunciador Daniel Ellsberg aparece no início do filme, mas o palco que se monta não lhe é destinado. Spielberg canta a coragem dos jornalistas e da directora do The Washington Post, um jornal que ganhou com este caso o estatuto de publicação de referência no campo do jornalismo de investigação. Ainda com o filme de Spielberg a ocupar-me o espírito, dei de caras nestes dias com dois filmes nos Canais TVCine que colocam o foco sobre outros momentos no processo de produção da verdade jornalística: Snowden (2016) de Oliver Stone e Truth (Verdade, 2015) de James Vanderblit, conhecido argumentista de filmes como Basic (Básico, 2003) e, ainda a maior obra-prima sobre jornalismo a sair do cinema americano em décadas, Zodiac (2007).

É curioso ver como nestes filmes não interessa tanto a decisão sobre o valor dos factos descobertos, mas mais o modo como eles foram comunicados. É de comunicação como produção que falamos, já que, nestas histórias, é sempre indissociável a convicção política da facticidade publicada. Snowden opera como uma toupeira ao serviço de um ideal sobre o que deve ser o Estado de Direito e uma América verdadeiramente democrática. A jornalista do programa 60 Minutes Mary Mapes, interpretada por Cate Blanchett, “atira-se” para a história da suposta fuga de George W. Bush ao exército durante a guerra no Vietname movida por uma vontade de descoberta à qual não terá sido alheia (ou foi?) a sua desconfiança endémica em relação ao governo. O que se passa é que fazer política e fazer jornalismo podem ser a mesma coisa. Contudo, importa muito a maneira de se chegar a uma verdade que mais convém. E é aqui que Snowden foi cauteloso e fez a papinha toda aos jornalistas do The Guardian e The Washington Post. Talvez se tenha inspirado no exemplo de Ellsberg. Pelo contrário, Mapes não soube fundamentar a sua convicção, apresentando provas documentais pouco fiáveis, que comprometeram a imagem da estação, a CBS News, e de toda uma vasta equipa de jornalistas, começando pelo veterano pivô Dan Rather (interpretado por Robert Redford). Mapes é um curioso exemplo de anti-heroísmo tal como nos é mostrado no filme, sendo que este se deixa animar, por vezes demasiado, pela vontade de redimir a falta de profissionalismo que terá estado na origem de uma (suposta) fake news.
É importante perceber que o jornalismo só se salva quando entendermos que ele está cheio de muito afiados ângulos em bico que, por vezes, nos magoam. São os ossos do ofício, um que é condição das nossas liberdades em democracia.
Quando dissemos “produção de verdade”, estávamos mesmo a falar de produção. Como se percebe a certa altura no processo do 60 Minutes, já não interessa propriamente onde está a verdade, mas como se produziu aquela verdade, a mesma que se transmitiu para todo o país com garantias de irrefutabilidade. Nesta economia da confiança, do público nos seus jornalistas, dos jornalistas nas suas fontes, jogam-se interesses múltiplos, mas da sua convicção política o jornalista nunca se conseguirá desembaraçar por completo. No filme de Spielberg, à consciência da directora interpretada por Meryl Streep fala mais alto a importância dos factos contidos no dossier classificado. Não se falava, à época, pelo menos com tanta premência, na hipótese de manipulação ou de falsificação de documentos. Em Snowden, o nosso herói dá o rosto precisamente porque sabe que só assim poderá proteger as costas dos jornalistas, autenticando, desse modo, num acto sacrificial verdadeiramente heróico (com o seu quê de inconsciente), a informação que estava a libertar. O “Garganta Funda” ou Ellsberg saiu da sombra e passou a estar não atrás, mas ao lado de quem reporta. O jornalista já não é suficiente, ninguém é suficiente ao jornalista se não estiver pronto a dar a cara por aquilo que denuncia. A lição talvez tenha chegado bastante tarde à repórter do 60 Minutes, que confiou numa fonte pouco credível – mas foi chamada à responsabilidade por isso – e, com isso, feriu temporariamente a credibilidade de toda uma estação.

O anti-heroísmo de Mapes merece um filme, porque precisamente Truth relembra como uma notícia mal dada hipoteca o valor de verdade do que é reportado. Portanto, o jornalismo também é uma questão de forma: não tanto o que é a verdade, mas como é a verdade. O “como” é determinante, baluarte da exigência e responsabilidade adstritas ao acto de dar notícias. Mas não haja dúvidas também de que a convicção é o que embala. O jornalista não é acrítico. Não o pode ser sob pena de ser um mau jornalista. É aqui que Truth também marca pontos na sua “pedagogia invertida”. Pena que o filme não esteja, na sua forma, isto é, no seu “como”, à altura do caso singular que relata. As situações colam-se umas às outras num modelo de “sociodrama” próprio da mais normal e anónima linguagem televisiva, ao arrepio, portanto, da melhor escola do cinema liberal americano (em que Alan J. Pakula é o grande catedrático) ou do grande cinema clássico com o mesmo pendor [à cabeça, Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941), Ace in the Hole (O Grande Carnaval, 1951) e Park Row (A Dama de Preto, 1952)]. O filme de Stone, por sua vez, é uma obra que não foge à marca, bem histriónica, do seu realizador: uma espécie de Discovery Channel on acids (sempre o lado “stoner” de Stone…) que nos debita a história de Snowden, transformando-o no primeiro dos messias da guerra cibernética em curso (a que se faz, sem mediações, nos bastidores do warfare mais tradicional, de hackers para hackers).
O papel-caricatura de Joseph Goron-Levitt é tão pálido quanto o tom de pele do próprio Snowden – o seu tom de pele é, aliás, alvo de umas quantas private jokes ao longo deste filme epidérmico, cheio de borbulhas estilísticas. Por excesso (Stone) ou por defeito (Vanderblit), o “como” jornalístico é encarado de frente nestes tempos de grande fluidez dos modos de construção da verdade jornalística. Na “realidade alt“ é verdade aquilo que é dito mais alto e mais forte. Nesse sentido, Stone funciona como o esteta contrariado desta nova ideologia: ele grita a transparência e puras convicções por trás das acções do seu herói. O filme de Vanderblit deixa-se anular por um registo low, de “televisão normal”, que acaba por aniquilar o valor dramático do caso exposto. Já o filme de Spielberg faz um elogio, com câmara e cores elegantes, ao jornalismo, mas não sabe substantivar, e, a meu ver, faz mal em negligenciar a história de Ellsberg. Talvez por isso a The New Yorker se sentiu na obrigação de contar a sua história num artigo publicado ontem. The Post, precipitado que foi pela vontade política de Spielberg em enaltecer os jornalistas – ou, mais genericamente, o jornalismo -, acaba por não saber como dar corpo ao heroísmo dos seus homens. Eles, ao contrário dos “do presidente”, não têm nuances, arestas por limar. Aparecem prontos a consumir, pedindo o nosso aplauso acrítico. É importante perceber que o jornalismo só se salva quando entendermos que ele está cheio de muito afiados ângulos em bico que, por vezes, nos magoam. São os ossos do ofício, um que é condição das nossas liberdades em democracia.