E o que farias se o visses?
Uma das últimas perguntas que, no fora-de-campo, Everardo González atira – e não é à toa que escolhemos este verbo – a uma das crianças entrevistadas condensa os dois principais atributos de um filme como La Libertad del Diablo (A Liberdade do Diabo, 2017), exibido na Berlinale deste ano (na qual arrecadou o Prémio da Amnistia Internacional e uma Menção Honrosa do Júri Ecuménico): a previsibilidade, de um lado, o oportunismo/voyeurismo, do outro. E “oportunismo” ainda é um termo simpático para descrever algumas das perguntas – como a acima citada – que González, adulto, lança a uma criança com 9 ou 10 anos de idade, em frente a uma câmara, a braços com um profundo trauma pela morte de um familiar às mãos da máfia do narcotráfico mexicano. Não satisfeito, e depois de a criança lhe responder que gostaria de fazer “sentir medo” ao carrasco, o cineasta atira novamente a matar (como só puxam do gatilho as figuras da televisão mais pobre e obscena em modo detective-justiceiro): “E como é que o farias sentir medo?”.
A distância que vai entre isto e o “Como se sentiu nesse momento?” que se ouve a jornalistas perante pessoas que acabam de perder tudo num incêndio ou nas cheias não é tão grande assim. Nesse momento, é como se a máscara que cobre a criança caísse, pois que aquilo que ela protege – mais do que a identidade, a sua dignidade – acaba de ser despido, desrespeitosamente despido. Le travelling de Kapo; Les questions de La Libertad del Diablo – e o problema é que, aqui, as questions, as perguntas, não são perguntas-de-liberdade (Les questions de La Libertad); pelo contrário, elas restringem, condicionam, impõem (para lá, obviamente, do natural “condicionamento” que qualquer pergunta implica) um rumo moral e emocional ao discurso e às ideias.
Há, desde logo, algo de estranho quando perguntas como as acima referidas são feitas – atiradas, disparadas… – no fora-de-campo, por um realizador que nunca se mostra, a pessoas filmadas em campo, de modo frontal, directo, frio
Num documentário em que o cineasta mexicano (com trabalhos anteriores no mesmo domínio político-antropológico em que La Libertad del Diablo se insere) se propõe a “rastrear” o efeito da violência organizada do narcotráfico sobre a sociedade e as famílias mexicanas, há, desde logo, algo de estranho quando perguntas como as acima referidas são feitas – atiradas, disparadas… – no fora-de-campo, por um realizador que nunca se mostra, a pessoas filmadas em campo, de modo frontal, directo, frio. Ressalta, na verdade, um desequilíbrio essencial que, mesmo se eventualmente não sentido pelos entrevistados (pelo contrário, poderá até ter existido uma maravilhosa sintonia entre realizador e entrevistados, mas essas são circunstâncias que ficam nos bastidores de quem faz o filme, não de quem o vê e discute), é percepcionado pelo espectador, ao menos por um que não faça da exploração das emoções mais básicas o seu principal foco de interesse, e num duplo sentido. Por um lado, a exploração das suas próprias (espectador) emoções (o desejo mórbido de “saber mais”) – e o realizador, no momento em que fez as perguntas, foi, ele mesmo, espectador, o primeiro espectador, pelo que, note-se, o facto de manter audível a formulação de determinadas perguntas na montagem final é uma opção consciente. Por outro lado, dizíamos, a exploração das emoções do entrevistado, i.é, o não menos mórbido desejo do espectador – e, novamente, do realizador – em conhecer com exactidão o grau de sofrimento ou humilhação sentido pela vítima. Estas são questões sensíveis e sobre as quais González, reitere-se, toma uma decisão clara, ponderada que foi na montagem.
Em Notre musique (A Nossa Música, 2004), Godard, referindo-se ao campo e contra-campo dos rostos de Cary Grant e Rosalind Russell em His Girl Friday (O Grande Escândalo, 1940) de Howard Hawks, afirma que essas imagens são, na verdade, uma só, que o que aí se vê é, afinal, uma mera repetição, já que Hawks teria sido incapaz de ver a diferença entre um homem e uma mulher (metáfora, de outro ângulo, para os realizadores-“presidentes” do mundo que não sabem olhar a “mulher” Palestina com as suas particularidades). Também na hipótese de Godard, portanto, avulta um desequilíbrio essencial (de posições, perspectivas, leituras, pesos e medidas). Em La Libertad del Diablo, dir-se-ia que o problema-desequilíbrio não é um de repetição ou sobreposição, mas de outra natureza. Temos um campo e um fora-de-campo (manifestação, no dizer deleuzeano, de “uma presença mais inquietante, da qual já nem se pode dizer que existe mas antes que ‘insiste’ ou ‘subsiste’”), e, nesse vaivém, um cineasta que sabe (ou promove) demasiado a diferença entre a sua posição e a do entrevistado, na medida em que o cariz oportunista das perguntas formuladas também o impedirá (a ele, realizador), então, de ver-ouvir as perspectivas, as sensibilidades, os meios-ditos (e os não-ditos, até) daqueles com quem fala. Um elemento comum – fundamental –, hélas, em ambos os filmes: a incapacidade de, num sistema comunicante dialéctico, saber nivelar os dois “lados”, os dois “campos”, em confronto (“nivelar” que não num sentido hierárquico, evidentemente, mas dialógico, iluminante, enfim, epistemológico).
Depois do oportunismo, a previsibilidade. A estrutura que González aqui adopta é a mais linear e convencional possível, assentando no roteiro próprio dos interrogatórios policiais (ou das bombásticas “reportagens de investigação” televisivas, do BES às Raríssimas). Todas as entrevistas evoluem, praticamente em simultâneo, no mesmíssimo sentido, numa lógica do tipo: 1. “O que estava a fazer naquele dia?”; 2. “Como aconteceu?”; 3. “O que sentiu e o que sente hoje?”; 4. “Como conseguiu viver depois desse dia?”; até chegarmos às derradeiras duas questões acima referidas. O que vai de encontro, justamente, à forma desrespeitosa como o mexicano dialoga com os entrevistados, na medida em que ao polícia não se lhe exige, naturalmente, a delicadeza e o cuidado na sua interacção com o entrevistado, pois que o seu propósito é, unicamente, o de descobrir a verdade dos factos. Mas será esse o mesmo tipo de propósito, a mesma verdade, que um cineasta que se aventura por tão sensíveis terrenos persegue? Certamente que não; certamente que a última coisa que uma câmara que se propõe, dentro da forma-cinema, a percorrer tão violentas (emocionalmente violentas, fisicamente violentas) memórias e vivências é a procura da “objectividade” (?), o rigor dos acontecimentos tais como eles se sucederam.
Não há, neste guião inquisitório, contenção ou subtileza, o que naturalmente se reflectirá, depois, nos próprios testemunhos das vítimas e agressores, prova de como a abordagem primordial, o primeiro gesto de um cineasta bem pode ser determinante para a carne de um filme nascer. Dito de outro modo, e pese embora estas coisas não sejam matemáticas, La Libertad del Diablo é um exemplo de como más perguntas fazem más respostas (e de como ambas fazem, ou podem fazer, um mau filme). O que, ademais, desagua na circunstância de o filme não avançar nem um milímetro para lá das tristemente famosas histórias do narcotráfico (raptos, mortes, ameaças, desaparecimentos) ou do lugar-comum da tentativa em encontrar “humanidade” no mais cruel dos humanos, sem nuances ou percalços de percurso (exceptua-se o episódio do homem que vai até a um manda-chuva em busca do irmão desaparecido). Nem mesmo no diálogo com um carrasco o cineasta consegue retirar algo mais para lá do cliché pecado/redenção (e nem sequer de forma especialmente intensa).
Por isso é que apregoar a “face oculta” do México, como já temos lido a propósito do documentário do mexicano, é deveras estranho: o que há aqui de “oculto” que seja “revelado” (e só esta ideia de um documentário como “revelador” de “verdades” já é incómoda…)? O que é que o espectador exactamente não sabe já destas trágicas narrativas – todos os dias banalizadas na e pela televisão – que González dá a mostrar? A curta galeria de entrevistados não serve de defesa: é o cineasta que, perante o material recolhido (e conseguir reunir muitos ou poucos testemunhos é algo que corre pela sua responsabilidade), decide se tem um filme (o seu filme) ou não. Retomando, perante perguntas assim colocadas, como pode daí nascer lugar para a reflexão, para a deriva emocional, enfim, para a subjectividade íntima e total daqueles a quem é dada a palavra? Neste sentido, o filme de Everardo González está nos antípodas dos filmes de cineastas como Rithy Panh ou Joshua Oppenheimer, os quais, lidando com assuntos tão ou mais trágicos dentro do mesmo espectro (o olhar antropológico sobre os traumas de uma sociedade em ferida aberta), sabem enunciar, colocar as perguntas – ou, no limite, sabem que, por vezes, não colocar perguntas é a melhor forma de as fazer. E daí a força e a eternidade das palavras dos homens e mulheres nos seus filmes. Para não nos ficarmos apenas pela hipótese teórica: por vezes, as melhores “perguntas” nem sequer carregam um sentido interrogativo, podendo consistir apenas numa simples afirmação, numa reflexão que, depois, é rebatida, apreciada, comentada pelo entrevistado, dessa dialéctica nascendo um campo/contra-campo – ou um campo/fora-de-campo – equilibrado, enfim, justo.
A esta banalidade o filme tenta contrapor com a solenidade visual dos planos fixos (que alternam com as entrevistas), normalmente de paisagens rurais, espécie de “naturezas mortas” que – de modo muito pouco original – joga com a “mortandade” de todo um país às mãos dos barões da droga. Há toda uma intenção de gravitas que, novamente ao contrário do que vemos nos filmes de Panh e Oppenheimer, é traída quer pelo que se ouve, quer pela composição altamente sofisticada e artificial do dispositivo visual [planos sempre fixos e austeros; enquadramentos milimétricos, “perfeitos”; apuramento de cores simultaneamente mortas e clínicas; sinistros décors das entrevistas que parecem retirados da saga Saw (Saw – Enigma Mortal, 2004)]. A este respeito, porém, há um plano, logo nos primeiros minutos do filme, deveras inusitado: com um monte em profundidade, vê-se um corpo humano estendido no chão, de barriga para baixo e com a cabeça garroteada. É, salvo erro, o único plano deste género – sugestivo da violência que os relatos insinuam – em todo o filme, o que levanta, desde logo, uma questão: é um plano captado a partir de uma situação real ou, como tudo indica (e torna tudo ainda mais estranho), encenado? Em qualquer dos casos – e a despeito do seu valor pictórico autonomamente considerado –, é difícil compreender o que González pretendeu com tal imagem, com tal – pois é disso que se trata – cadáver.
Numa outra perspectiva, é notória a utilização, numa grande parte dos planos fixos, de uma objectiva cujo efeito é o desfoque das linhas frontais inferiores da imagem e a focagem das linhas superiores mais recuadas, promovendo, assim, a profundidade de campo. Se, plasticamente, tal recurso poderia constituir uma inteligente metáfora para o rumo do discurso oral, a verdade é que essa solução se contrapõe, justamente, à referida discursividade, porquanto as entrevistas, como atrás referido, só se ficam, justamente, pelo “primeiro plano”, pelo superficial e mais imediato. Desta forma, é como se o cineasta impedisse que os ouvidos do espectador – que não deixam de ser olhos, ou, dito de outro modo, um modo de olhar complementar ao visual, e por vezes mesmo autónomo – acompanhem a profundidade de campo referida. O som (as palavras, as ideias, o discurso) fica curto para a imagem; os ouvidos não vêem o que os olhos podem ver (mais longinquamente).
Todos os intervenientes ouvidos em La Libertad del Diablo partilham o mesmo tipo de máscara (uma carapuça elástica apenas com abertura para os olhos, boca e orelhas), algo que, na sua aproximação às ligas que se utilizam na cicatrização dos feridos, desde logo sugere um estado de dor e trauma (e, em alguns casos, fica a ideia de que esse trauma pode ser também físico). Se, em termos práticos, tal recurso serve o propósito de proteger a identidade dos entrevistados, é também uma forma de, numa atitude – aqui, sim – eticamente balanceada, González os respeitar, não estabelecendo, a priori, uma fronteira – e um julgamento – moralmente condenável entre vítimas e carrascos (“bons” e “maus”). Um nivelamento que, reduzindo as representações simbólicas a um grau zero (porquanto as máscaras ocultam, por exemplo, sinais exteriores/físicos que podem “normalizar”/”des-normalizar” os entrevistados), força o espectador a concentrar-se no que realmente importa: as suas palavras (ou no que realmente importaria se as perguntas fossem outras). Esticando a reflexão, tal opção acaba também por chocar com aquela conhecida ideia, que Zizek teceu a propósito de Kieslowski (e da sua mudança do documentário para a ficção), segundo a qual, quando se filmam “cenas da ‘vida real’ num documentário, temos pessoas a representar o seu próprio papel (…), pelo que o único modo de descrever as pessoas debaixo da sua máscara protectora é, paradoxalmente, fazê-las desempenhar directamente um papel, ou seja, passar à ficção. A ficção é mais real do que a realidade social de representar papéis”. Ora, quando temos pessoas, num documentário, a falar de “cenas da vida real”, mas agora efectivamente ocultos por uma máscara protectora, estarão ainda elas a desempenhar o seu próprio papel ou o uso dessa máscara anula esse ímpeto teatral ou de representação inicial?
Depois das ominosas perguntas com que demos início a estas linhas, o filme termina com uma das vítimas, mãe de um rapaz assassinado, a retirar a sua máscara, aparentemente de modo espontâneo – tal como o enfermo que retira a liga quando a ferida já cicatrizou por inteiro, a mulher diz que, hoje, se encontra pacificada com a morte do filho e mesmo com o hipotético homicida. O sorriso que faz nesse momento tem um nome: perdão. É, infelizmente, um dos poucos momentos de delicadeza e, afinal, de liberdade do filme – condicionados que estão os entrevistados ao rumo moral e emocional do discurso imposto pelo cineasta –, e que lhe empresta, finalmente, alguma força (uma força delicada, em todo o caso, essa que faz falta ao filme na sua restante duração).