De 7 de Janeiro a 26 de Fevereiro o Museu do Oriente e a Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, acolhem um ciclo dedicado a Macau. ‘Cinema Macau. Passado e Presente’, comissariado por Maria do Carmo Piçarra, inclui um conjunto heterogéneo de propostas, desde curtas de propaganda do Estado Novo a obras de cineastas chineses de Macau, passando por documentários de jornalistas portugueses, Macao (1952) de Sternberg e Ray, e uma conferência do investigador Rui Lopes sobre representações de Macau no cinema de Hollywood nos anos 50, entre outros. No dia 21 de Janeiro, o ciclo mostra, pela primeira vez, obras de ficção: o filme que talvez melhor soube explorar a aura de mistério associada a Macau, A Última Vez que Vi Macau (2012), de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, precedido do atmosférico O Estrangeiro (2010), de Ivo M. Ferreira.
Ao longo dos 18 minutos de O Estrangeiro, acompanhamos uma indistinguível figura masculina em busca de um “estrangeiro”, um português que vivera em Macau há vários anos. Munido de um conjunto de postais, pistas elusivas que não parecem ser grande guia, e entabulando curtas conversas com pessoas que agora habitam os locais por onde o “estrangeiro” um dia passou – mas que também não são grande ajuda para o encontrar – o narrador percorre, na sua jornada, a península de Macau e a ilha de Coloane. A câmara vagueia com ele ou detêm-se brevemente em pequenos gestos e pormenores da paisagem urbana: lojas contíguas às casas que abrem para a rua, barcos no ancoradouro, o exterior, o topo e os corredores de prédios. A arquitectura vai fornecendo enquadramentos para movimentos que podem ser lidos de formas variadas. Actos de fechar, de entrar, de esperar marcam o compasso da viagem. A narração em voz-off, com as suas divagações de memória e de espanto (“a estranheza que a cidade provocava nele”), tem um certo tom intimista, mas nunca pretende intrometer-se demasiado nos lugares por onde se detém. Há uma certa sensação de impossibilidade: a de encontrar o “estrangeiro”, e a de deixar de ser estrangeiro ali. Embora inteiramente falado em cantonense e realizado por alguém que vive em Macau, O Estrangeiro não deixa de ser também sobre um certo assombramento de não pertença. Curiosamente, o título em chinês nos créditos iniciais (陌鄉人, moxiangren em mandarim) não é igual ao dos créditos finais (外國人 waiguoren). O primeiro está mais próximo da ideia de “pessoa estranha” e o último é o termo usual para “estrangeiro”.
Embora inteiramente falado em cantonense e realizado por alguém que vive em Macau, O Estrangeiro não deixa de ser também sobre um certo assombramento de não pertença.
Se há momentos que nos recordam alguns filmes de Hou Hsiao-hsien ou de Wong Kai-Wai, O Estrangeiro, é acima de tudo, uma obra de autor, representativa de preocupações temáticas e estilísticas do cinema de Ivo M. Ferreira. A ideia de busca e de viagem, é algo central em boa parte da filmografia deste realizador, desde a sua primeira longa de ficção, Em Volta (2002), até ao mais recente Cartas de Guerra (2016). O Estrangeiro não é excepção. Há uns anos, a sua exibição comercial em Portugal foi em combinação com o documentário Vai com o Vento (2009), em que o cineasta também explorava movimentos e partidas, acompanhando um grupo de imigrantes chineses a caminho da Europa. Segundo notícias sobre o projecto, tudo indica que transitoriedade e procura irão marcar, mais uma vez, o próximo filme do realizador – Hotel Império –, que contará no elenco com uma estrela do cinema taiwanês Rhydian Vaughan.
No final de O Estrangeiro, enquanto rolam os créditos finais, ouve-se Zhou Xuan (Chow Hsuan) entoar “Bu yao chang ba” (Don’t sing), um tema de 1947. Zhou Xuan ganhou fama como cantora e actriz do cinema chinês de Xangai e Hong Kong nos anos 1930 e 1940, entrando no icónico Malu tianshi (Street Angel, 1937), de Yuan Muzhi. A sua, foi uma vida de tragédias, que poderia inspirar um filme, antes de morrer num asilo, com apenas 39 anos. Na curta de Ivo M. Ferreira, sobre desaparecimentos e evocações, não haveria melhor maneira de concluir do que com este som de um tempo perdido.
O Estrangeiro e A Última Vez que Vi Macau passam no Museu do Oriente dia 21, às 17h00. A entrada é gratuita mediante levantamento prévio do bilhete no próprio dia.