Os modos do gosto pautam-se pela especificidade. De tal forma que se tornam coisas exclusivas: um prazer individual (e quase fetichista) que se satisfaz na realização de uma série de complicados a priori. Uma espécie de regozijo na exigência esdrúxula, ou melhor, na sua concretização por acção de outrem. Parece coisa de imberbe tirano, e é-o. Mas é também coisa de saudável onanista dos pequenos prazeres. O luxo de encontrar cumprido um modesto ditame, daqueles que nada custam a fazer mas que se saboreiam longamente. Descobrir certa peça arrumada daquela maneira, certa comida confeccionada daqueloutro modo, ou certo som a certa hora. Enfim, os prazeres de um quotidiano que se vê cumprido, sem que nele exista o lastro da obrigação. Antes, o carinho da satisfação. É um pouco assim que me sinto quando entro numa sala de cinema e me deparo com uma boa cena no metropolitano. Parece-me sempre que a lá deixaram para que dela desfrutasse particularmente. Como se a mim fosse dedicada.
O metro é, ao meus olhos, espaço puramente cinemático. Lugar onde os conflitos entre som e imagem produzem momentos pré-fílmicos: redescubro, através das janelas das carruagens, um zootrópio possuído por Stan Brakhage [lembro-me agora, quando acabo de escrever esta linha, de The Wonder Ring (1955) – viagem onírica pelos carris e pelas circunvalações de luz e sombra do subway de Nova Iorque]. Se me fosse pedido que destacasse três filmes cujas cenas de metro mais me alegram o espírito diria, sem pensar muito: Le samouraï (O Ofício de Matar, 1967) de Jean-Pierre Melville, Strange Days (Estranhos Prazeres, 1995) de Kathryn Bigelow e Collateral (Colateral, 2004) de Michael Mann. Dito isto, é natural que sinta um fascínio particular por The Commuter (The Commuter — O Passageiro, 2018), o novo filme de Jaume Collet-Serra, que prossegue a frutuosa parceria com Liam Neeson (mais ainda quando o próprio filme reflecte sobre o estilhaçar desses prazeres da rotina – o mesmo pequeno almoço, o mesmo comboio, o mesmo gesto, os mesmos desconhecidos, os mesmos livros entre os dedos).
A investigação a bordo trabalha a ideia de acção-em-comprimento através de uma câmara que umas vezes exacerba a profundidade como logo depois concentra o campo na planura de um rosto.
Aliás, quem vier lendo aquilo que por aqui vou escrevendo saberá que além do metro, outro dos meus prazeres (mais recentes) é o encontro anual de Neeson e Collet-Serra. Não por acaso o nosso livro, O Cinema Não Morreu – Crítica e Cinefilia À pala de Walsh, inclui um texto meu dedicado a Run All Night (Noite em Fuga, 2015). Collet-Serra é capaz de ser um dos mais inteligentes realizadores tarefeiros a trabalhar hoje em dia na máquina hollywoodiana e à medida regular de um filme por ano vem-nos(-me?) oferecendo pequenas pérolas de modernidade e delicadeza sob o manto diáfano da série B. Os seus últimos três filmes [a juntar a Run há The Shallows (Águas Perigosas, 2016) e Non-Stop (2014)] figuraram respectivamente nos meus Melhores do Ano e, mesmo “a solo”, Neeson é figura exemplar do que poderia ser uma política dos actores. Feita a declaração de interesses, falta-me citar João César Monteiro. Aquando da publicação na Cinéfilo de uma peça sobre Sofia e a Educação Sexual (1974) de Eduardo Geada, o então jovem realizador e ácido crítico refere, a páginas tantas, “eu também já fiz uma [Sofia/Sophia], mas a minha era uma senhora educada.” Pois bem, também eu já fiz um [Le métro/The Commute], e também ele era bastante educado.
Esta mais recente iteração da parceria Serra-Neeson é, no entanto, a mais fraca até ao momento, por ser também a mais derivativa. Uma repetição de Non-Stop onde o avião é substituído pelo comboio suburbano. A mesma conspiração, o mesmo homem com um “particular set of skills”, a mesma corrida contra o tempo, o mesmo MacGuffin thrillesco. E não custará muito encontrar nesta operação derivativa vestígios de ovo e glúten, que é como quem diz, Speed (Speed – Perigo a Alta Velocidade, 1994) e The Taking of Pelham One Two Three (Alta tensão em Nova Iorque, 1974) [talvez mais até do remake de Tony Scott]. Ainda assim, a investigação christieana a bordo dos cinco vagões, que fazem paragem em todas as estações e apeadeiros, tem um golpe de extraordinária perícia: trabalhar a ideia de acção-em-comprimento através de uma câmara que umas vezes exacerba a profundidade como logo depois concentra o campo na planura de um rosto. Essa alternância entre o vai e vem de um personagem que percorre longitudinalmente as carruagens, para trás e para diante (ora no sentido da marcha, ora em sentido contrário – literalizando os processos da investigação), e o Dolly zoom, que comprime toda a profundidade de campo no protagonista, revela um olhar que pensa a dramaturgia através das potencialidades plásticas da imagem. Algo que Collet-Serra já trabalhara antes, nomeadamente através da introdução de textualidades electrónicas em Non-Stop e, de forma quase lírica, em The Shallows.
Mas o núcleo dramático de The Commuter está de novo (depois de Run) nas questões da “aritmética da vida”. O argumento centra-se num dilema moral: por quanto dinheiro estás disposto a fazer uma “denúncia” mortal? Dilema moral que reflecte, ponto por ponto (ao longo do filme), a crise financeira norte-americana, os problemas da classe média, o desemprego no final de carreira, o clima de medo anti-terrorista (“see something, say something”) e a corrupção dentro das forças policiais. O filme revolve então em redor de um impulso – “take the money”. E resolve-se pelos mecanismos da culpa sacrificial judaico-cristã, expiando o tal pecaminoso impulso – não será acidente que Neeson acabe perdendo cada uma dos (trinta) dinheiros (de judas) que recebeu. E regresso a Geada, ele que fez Sofia para responder à pergunta “Como é que alguém pode preservar a inocência numa sociedade em que o prazer é um pecado?” Serra-Neeson respondem pela exegese do herói, máximo defensor dos princípios humanistas e onanista dos pequenos prazeres.
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[…] Artista, 2017) de James Franco, 47 Meters Down (O Mundo do Silêncio, 2017) de Johannes Roberts e The Commuter (The Commuter – O Passageiro, 2018) de Jaume Collet-Serra. Continuam The Killing of a […]