Despojado dos acessórios que intimidam um civil e dos que pertencem ao género que os marinheiros utilizam para ganhar coragem, o Tapageuse transformava-se num animal tímido. Numa briga tinham-lhe partido o nariz com um garrafão. Um nariz direito talvez o tornasse insonso. O garrafão dera o último retoque à obra-prima. Este rapaz, que para mim representava a sorte, no torso tinha um SEM SORTE tatuado com maiúsculas azuis. Contou-me a sua história. Era curta. Aquela aborrecida tatuagem resumia-a. (…) E a seguir, com uma caneta de tinta permanente risquei a tatuagem funesta. Por baixo tracei uma estrela e um coração. Ele sorria. Mais a pele do que o resto do corpo lhe dizia que se encontrava em segurança, o nosso encontro não era como os outros a que estava habituado, encontros rápidos onde o egoísmo mata a fome.
O Livro Branco, Jean Cocteau
Naquele que é o seu mais pessoal e confessional escrito, O Livro Branco, Jean Cocteau elenca os vários amores que foi tendo ao longo da vida. Sucessão de encontros, cruzamentos sensíveis, momentos onde o espaço da intimidade se abre ao outro. Das poucas páginas que compõem esse livro, deixei em epígrafe uma das minhas passagens favoritas, por nela se encontrar o símbolo e o sintoma daquilo que pode ser a natureza háptica da obra do artista francês. Qualidade que o seu cinema literaliza uma e outra vez (as mãos que saem das paredes para segurar os candelabros, os dedos que investigam o espelho, as luvas que permitem atravessar para o mundo dos sonhos, a pintura que se anima do pincel ou a casa que se anima com a pintura), mas que a escrita já anunciava de forma indelével. O que é, a meu ver, marcante neste pequeno excerto é o modo como a escrita é já coisa corpórea, ou melhor, o corpo como meio da escrita. Esta tentação de riscar a tatuagem e de desenhar no corpo do amante materializa a escrita como gesto de devoção e a relação analógica com o traço (a caligrafia) como acto simultaneamente sensual e público: o corpo feito cartaz, anunciando o desejo que nele (literalmente) alguém projectou. É aqui que encontro o paralelo – se calhar demasiadamente intrincado – com Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (Três Cartazes à Beira da estrada, 2017) de Martin McDonagh, filme onde a materialidade da escrita é mote narrativo e tema central.
A começar pelo comprimento do título que de certo modo anuncia, logo no genérico, a preponderância da palavra escrita, passando obviamente pelos cartazes propriamente ditos (nos quais se lê, em maiúsculas sem serifa, “RAPED WHILE DYING”, “AND STILL NO ARRESTS?”, e “HOW COME, CHIEF WILLOUGHBY?” – como também em maiúsculas era a tatuagem do marinheiro de Cocteau…), mas também pelos três sobrescritos entregues ao longo do filme, da mensagem que o chefe da polícia enverga no capuz ou num referido marcador de livro com uma frase motivadora. Esta materialidade da palavra escrita – não é por acaso que no filme, que não sendo de época, não se vê nunca uma imagem num ecrã (a não ser um televisor velhinho), não há um sms, um email ou qualquer outro formato de escrita em ambiente digital – vem acompanhada da materialidade da palavra falada, que se faz evidente no colorido do vocabulário sulista norte-americano.
É um colorido que se evidencia quando do contrato dos referidos cartazes publicitários: “I assume you can’t say nothing defamatory and you can’t say ‘fuck’, ‘piss’ or ‘cunt’. That right?” ao que o publicitário responde “Or ‘anus’”. A linguagem do filme é portanto recheada de palavrões que expressam, quase sempre, a mais profunda e sincera compaixão. O filho que chama a mãe de cunt, a mãe que chama à jornalista bitch, ao polícia shithead e a lista continuaria. E assim a materialidade da palavra escrita e da palavra falada desembocam em consequência físicas, isto é, em violência (a linguagem como prenúncio do acto). Não fosse este um filme do realizador das comédias negras salpicadas de violência, In Bruges (Em Bruges, 2008) e Seven Psychopaths (Sete Psicopatas, 2012).
A procissão de diatribes espirituosas e de esmerados desempenhos dão ao filme uma estrutura episódica, de sucessivos quadros onde se exibem os dotes do texto e de quem o declama.
Esta construção que encontra na palavra o gérmen da acção é própria – como seria de esperar – de um realizador que é originalmente dramaturgo. McDonagh tem origens no teatro e isso sente-se em Three Billboards (cujo argumento também assina), principalmente no modo como cada personagem conversa em monólogos, e cada linha de diálogo parece ser sempre aquela que podia terminar o filme. Isto dá aso a uma procissão de diatribes espirituosas sobre os mais variados temas (a violência doméstica, o racismo, o alcoolismo, a integração das pessoas com deficiência, a pedofilia no seio da igreja católica, a violência policial, etc.) que em associação com o desempenho esmerado de cada um dos excelentes actores (Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell e Peter Dinklage) dá ao filme uma estrutura episódica, de sucessivos quadros onde se exibem os dotes do texto e de quem o declama. É um estilo que David Mamet e Quentin Tarantino popularizaram no cinema mainstream americano. E se as comparações com o cinema dos manos Coen se faz pela área geográfica da acção, pela actriz protagonista e pelos contornos de violência vingativa, na verdade recordou-me muito mais o filme dentro do filme, The Old Mill em State and Main (State & Main, 2000) de Mamet: o mesmo desejo de retratar, de forma mais ou menos idílica, uma certa ideia de mundo rural do interior da América e um mesmo argumentista com origem no teatro procurando preservar o seu texto.
A qualidade teatral é, portanto, simultaneamente a maior força e a maior fraqueza do filme (a juntar a uma realização a cair no anonimato). Mas é também ela que nos oferece pérolas como: “That was a real nice day. That was a real nice fuck. You got a real nice cock, Mr. Willoughby.”/”Is that from a play? ‘You got a real nice cock, Mr. Willoughby.’ I think I heard that in a Shakespeare one time.”/”You dummy. It’s Oscar Wilde.” Quando na verdade não só o escritor irlandês nunca escreveu tal coisa, como aqui se revela uma muito obscura referência ao actor e dramaturgo Guy Willoughby (que naturalmente dá o nome ao personagem do chefe da polícia local), autor de uma das mais marcantes obras sobre Oscar Wilde. Graçola que se manifesta na homossexualidade de ambos (e na homossexualidade secreta do chefe da polícia?), imaginando que afinal o académico/crítico quando escreve sobre a obra de outrem partilha com ele o lençol. De novo a materialidade da palavra escrita, de novo a projecção material do desejo. De novo um acto simultaneamente sensual e público, este de escrever sobre (acerca e em cima d)o outro.