Os Comprimidos Cinéfilos servem para isto: dar visibilidade a outros olhares sobre obras estreadas no mês que passou. Mas também têm como propósito revelar novos olhares sobre obras que, apesar da sua estreia, passaram despercebidas à nossa escrita. Assim, sobre o mês de Janeiro de 2018 recolhemos três comprimidos: Mudbound (2017), candidato aos Oscar, que não havia antes chamado a atenção dos walshianos, assim como The Disaster Artist (Um Desastre de Artista, 2017) – também candidato ao Oscar de Melhor Argumento Adaptado – e, depois, Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (Três Cartazes à Beira da estrada, 2017), que já havia recebido uma crítica de Ricardo Vieira Lisboa, mas que é agora visto por Francisco Noronha.
Mudbound (2017) de Dee Rees
Este é um filme que existe numa espécie de limbo entre dois planos dissonantes: se visualmente, Mudbound (2017) impressiona pela elegância das suas imagens, plenas de sensibilidade poética, por outro lado, a nível de argumento e arco narrativo é algo cinzento, pouco imaginativo. O filme acompanha a história de duas famílias no interior rural do Mississippi, uma branca (os McAllan) e uma negra (os Jackson), em momentos cruciais e definidores, quer do destino destas famílias, quer da sociedade americana, durante a década de 1940, imediatamente antes e depois da participação americana na Segunda Guerra Mundial. O cuidado extremo na composição detalhada de imagens de enorme beleza – não surpreende que a fotografia de Rachel Morrison tenha sido nomeada para os Óscares, a primeira vez para uma mulher em 90 anos – acaba por perder-se na previsibilidade de uma história difusa, particularmente no triângulo entre os dois irmãos da família branca e a esposa de um deles, e a relação destes com o seu pai.
Se esta dinâmica intra-família é o aspecto menos conseguido de Mudbound, a coabitação entre as duas famílias consegue retratar de forma empática as complexidades das relações de poder e dos diferentes graus de racismo enraizados naquela comunidade-sinédoque. O irmão mais novo dos McAllan e o filho mais velho dos Jackson regressam da guerra (da qual vemos apenas breves instantes, e nunca o inimigo, mas apenas salpicos de sangue dos companheiros perdidos, num dos exemplos do tal cuidado estético) e acabam por formar uma relação de amizade, marginalizados depois de tudo que viram e repelidos por uma sociedade parada no tempo – é o desalento da ideia de regressar a casa e não encontrar lar. Nada de muito novo mesmo assim, mas é neste encontro entre perspectivas diferentes, forçadas assim a habitar o mesmo espaço físico e emocional, tal como acontece também com as figuras maternas de cada família, que o filme encontra alguma esperança. O recurso ocasional a voice-overs introspectivos de diferentes personagens dão um toque malickiano ao filme, e este parece por momentos aproximar-se de um tragédia faulkneriana , antes de desvanecer-se noutro rumo mais previsível e menos ressonante. Fica no entanto a promessa de uma realizadora, que depois de um pequeno filme de estreia [Pariah (2011)], mostra aqui suficiente ambição para reclamar atenção no futuro.
João Araújo
Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (Três Cartazes à Beira da estrada, 2017) de Martin McDonagh
Poucos minutos depois de Mildred (Frances McDormand) tomar a resolução mental que dá título e mote ao filme de Martin McDonagh, e já no escritório da agência publicitária, dá-se um momento de enorme simbolismo. Enquanto Mildred e o publicitário afinam, com humor, a “legalidade” das palavras a projectar nos cartazes, um grande plano (subjectivo, de Mildred) abate-se sobre um insecto que, no parapeito da janela, esperneando, se tenta desesperadamente virar ao contrário e retomar o seu caminho. A sua pequenez e fragilidade, de um lado; o olhar do gigante humano, do outro. Assim que fica definido o conteúdo e o pagamento dos cartazes, Mildred aproxima-se da janela e dá uma pequena ajuda ao insecto, virando-o. Nesse preciso momento, o publicitário diz-lhe que o dia combinado para a afixação dos cartazes corresponde ao Domingo de Páscoa. “Melhor ainda”, responde Mildred. Num filme que se inicia in medias res, depois de um assassinato do qual nunca temos, inteligentemente, vislumbre algum (resistindo a essa tentação de construir flashbacks detectivescos) – e o filme só ficaria a ganhar ainda mais em tensão se ao espectador não fosse dado nunca a ver o rosto da vítima –, a cena acima descrita, uma das primeiras, estabelece, desde logo, um jogo entre vida e morte, entre fortes e fracos, abusadores e abusados. Entre passividade e solidariedade. Mildred não mata o insecto, tão-pouco – note-se – o ignora: ajuda-o a sobreviver, ao mesmo tempo que rejubila por ser no dia da ressurreição de Cristo que verá o caso da sua filha, bem assim, ressuscitado (e a partir do momento em que decide afixar os cartazes, ela própria, Mildred, também “ressuscita”, emocional e civicamente). Ela sabe que, só com aquela “acção directa” (a afixação dos cartazes), poderá, se não trazer efectivamente a sua filha do mundo dos mortos para o dos vivos, reavivar a investigação do seu homicídio, dar vida a um assunto esquecido, morto.
É esse o acto que espoletará a convulsão total desta vilória de uma América só pretensamente “rural” e “interior”, pois que os problemas (racismo, misoginia, homofobia, abuso policial, violência doméstica) que nela persistem são, afinal, os mesmíssimos da América urbana e sofisticada. A imagem perfeitamente anódina e a banda-sonora perfeitamente tenebrosa (tanto na sua omnipresença como na escolha das composições propriamente ditas) não chegam, felizmente, a ter força suficiente para apagar o que de melhor Three Billboards Outside Ebbing, Missouri carrega – desde logo, um genuíno e impressionante cuidado com a elaboração das personagens, homens e mulheres de carne e osso, cheios de cinzentos e cruzes, capazes de nos arrancarem uma gargalhada para, logo a seguir, nos fazerem sentir o maior desprezo. Ainda: não deixa de ser irónico que o padre – a Igreja Católica – seja liminarmente posto fora de cena (literalmente, não mais o vemos) num filme que lida, do princípio ao fim, com um topos vincadamente cristão: o perdão. Não tanto a redenção, porquanto esta envolve, sobretudo, uma busca interior, eu-comigo-mesmo. Antes o perdão, relação hetero-subjectiva, de alteridade, eu-e-o-outro – a mãe da vítima que perdoa o chefe da polícia incompetente; a mulher que perdoa o marido violento; o publicitário que perdoa o polícia abusador; o polícia que perdoa a mulher que quase o matou (ainda que involuntariamente) no fogo posto na esquadra. Muitos foram os que se lembraram de Unforgiven (Imperdoável, 1992), de Clint Eastwood, a propósito deste filme, mas é precisamente o oposto aquilo de que ele trata… Forgiveness.
Francisco Noronha
The Disaster Artist (Um Desastre de Artista, 2017) de James Franco
O pretensiosismo de James Franco é característica que o acompanha desde há vários anos, é já uma piada (re)corrente [running joke] sobre a sua personalidade. Coisa que, aliás, o actor cultiva para si – leia-se o texto do João Lameira sobre This Is the End (Isto é o Fim!, 2013), com Franco a fazer de si mesmo – e que deu aso a uma divertida sessão de galhardetes na Comedy Central – The Roast of James Franco. Franco é uma “grande estrela”, actor aclamado pelo mundo fora, presença em filmes de grande orçamento, senhor de papéis icónicos. Pois bem, algumas estrelas de Hollywood gostam de se aventurar pelos países mais pobres do mundo para ajudar crianças refugiadas, ou visitar zonas conflituosas para trazer sobre aquela gente a iluminação pacificadora que há muito ansiavam, outras há que pretendem afirmar pela via académica aquilo que o seu sucesso nem sempre consegue fazer: a confirmação do seu talento. Franco é da última espécie. A carreira do actor-realizador é no mínimo bipolar, ora envereda pelos grandes blockbusters de Sam Raimi ora vira para as art houses em projectos de temática invariavelmente queer [no sentido abrangente da palavra, mas também no sentido restrito da palavra]. Dos seus trabalhos como realizador destaca-se um gosto particular pelas representações da homossexualidade na história do cinema, de onde saltam à vista My Own Private River (2012) sobre River Phoenix no filme de Gus Van Sant (uma co-realização com o próprio Van Sant), Sal (2011) sobre as últimas horas do actor Sal Mineo, Rebel (2011) sobre James Dean em Rebel Without a Cause (Fúria de Viver, 1955) e, o único a estrear comercialmente em Portugal, Interior. Leather Bar. (2013), uma espécie de remake reflexivo sobre os supostos 40 minutos cortados de Cruising (A Caça, 1980) de William Friedkin (aqueles que se passavam numa discoteca gay e que contariam com cenas de sexo explícito).
Portanto, The Disaster Artist não é uma incursão em terreno desconhecido para o actor-realizador. Pelo contrário. Não só é mais um filme sobre um processo de rodagem, como é mais um retrato de uma personagem estranha [verdadeiramente queer]. Onde Interior. se vertia de laivos professorais sobre a representação do sexo gay no cinema, e se pejava de milhentas referências dos gender studies, este Disaster tem outras pretensões: uma longa caricatura, mal amanhada, feita com a intenção de chegar ao grande público, enquanto capitaliza no valor cultual do filme original de Tommy Wiseau. Enquanto comédia o filme funciona, e é suficientemente criativa na construção dos personagens e das situações para despertar a ocasional gargalhada (humor fundado no desconforto, como aliás todo o humor da pandilha a que Franco pertence, a saber, Seth Rogen, Evan Goldberg, Paul Feig, Judd Apatow, Jay Baruchel, Michael Cera e Jonah Hill). O problema fundamental está no próprio Franco. Aquilo que se apresenta como uma “decalque extraordinário” de Wiseau transforma-se numa pastosa sucessão de tiques cartoonescos que pendem, quase sempre, para um gozo maldoso sobre a figura mitológica que Wiseau construiu (talvez de forma acidental). Há um acentuar de inclinações de voz, o sublinhado do sotaque, a postura física marcada, o excesso dos olhos frisados, enfim; Franco não faz de Wiseau, Franco faz de Herman José a imitar Wiseau num sketch mal escrito dos tempos da Pomba Gira. E aquilo que poderia ser uma comédia sobre um caso improvável [queer] da história do cinema de culto [vide, Ed Wood (1994)], transforma-se numa perversa paródia oportunista que se diverte no escarnecer de um personagem tão complexo quanto frágil – personagem esse que Franco despreza e desaproveita.
Ricardo Vieira Lisboa
The Post (2017) de Steven Spielberg
“Mantenham-se fiéis à história” deve ser um dos conselhos mais repetidos nos cursos de jornalismo, e imagino, um mantra também em certas escolas de pensamento no cinema americano. Esta dedicação aos factos e a ligação entre o jornalismo e o cinema é evidente de várias formas em The Post, onde a narrativa ocupa o lugar central, no que é talvez o melhor filme de Spielberg desde Munich (Munique, 2005). Desde logo porque afasta-se de um certo academismo convencional e desinspirado que marcara algumas das suas mais recentes obras, como Bridge of Spies (A Ponte dos Espiões, 2015), Lincoln (2012) e War Horse (Cavalo de Guerra, 2011). Aqui o típico sentimentalismo cénico de Spielberg dá lugar a uma urgência e a composição das personagens ganha espaço para complexidade até nas personagens secundárias. Este pode ser considerado uma prequela a All the President’s Men (Os Homens do Presidente, 1976) de Alan J. Pakula, mas apenas no contexto histórico, já que os dois filmes têm objectivos e interesses diferentes: se o filme de Pakula é um brilhante exercício sobre o trabalho de investigação jornalística, tratado como um filme de suspense, no filme de Spielberg o propósito é diferente, já que não é realmente sobre os Pentagon Papers ou a fonte dessa histórica “fuga”, Daniel Elsberg – sobre essa história recomendo o documentário The Most Dangerous Man in America: Daniel Ellsberg and the Pentagon Papers (2009) – mas sim sobre a decisão em publicar ou não essa história, a necessidade de o fazer e todas as consequências à volta dessa decisão.
Aqui o trabalho de pesquisa fica relegado para segundo plano, apenas aparece a espaços na personagem interpretada por Bob Odenkirk na procura pela fonte da história, ou quando o estagiário é enviado para Nova Iorque apenas com o dinheiro para comboio, ou seja o filme não é sobre juntar as peças de um puzzle, como por exemplo em Spotlight (2015). Esta é aliás a história não do jornal que deu a notícia em primeira mão, mas sim do jornal que foi mais uma vez ultrapassado – e o desafio é precisamente tornar essa história cativante. The Post é assim um filme sobre relações, de poder (intimidação de um mais forte, o Estado, sobre um mais fraco, a imprensa), lealdade (perante colegas e princípios), e sobre o tratamento da informação (o compromisso de publicar uma história e as implicações negativas de o fazer). Ao colocar o foco nas personagens do editor (Tom Hanks) e da proprietária do jornal (Meryl Streep), Spielberg procura humanizar a hierarquia pela qual a informação e as decisões passam, numa situação histórica de definição de fronteiras de liberdade de imprensa e interferência estatal, sem deixar os toques spielberguianos de lado (os planos da entrada de Streep em cena na sequência do pequeno-almoço e da primeira reunião; a repetição da entrada de Hanks na casa de Streep; a secretária do repórter a tremer com o inicio das máquinas), mesmo que caia por vezes na tentação de beatificação das personagens. Spielberg dá algum relevo também à condição feminina na década de 70, em particular à forma como as mulheres eram desconsideradas na altura de tomar decisões, nunca ouvidas, com os planos fechados sobre Streep sozinha numa sala rodeada de homens. A personagem de Streep, tal como o seu jornal, passam o filme à procura de uma voz própria, do seu lugar na história. A verdade é que este é um filme eminentemente político, não só pelos paralelos com a situação presente na América, mas mais importante, porque retrata um período conturbado mas no qual a imprensa era capaz de fazer a diferença, de abalar a sociedade de forma a que as pessoas saíssem à rua, e Spielberg parece apelar a esse espírito, na esperança de alguém poder fazer a diferença.
João Araújo