José Adolfo Coelho (1899-1953) foi o mais importante e mais prolixo realizador de documentários de temática agrícola em Portugal. Funcionário da Direção Geral dos Serviços Agrícolas, fundou e dirigiu a partir de 1929 os serviços cinematográficos do Ministério da Agricultura (MA), para os quais realizou mais de 50 documentários entre as décadas de 1930 e 1950. Muito bem recebidos à época e mostrados em festivais europeus nos anos 1940, estes filmes têm uma importância central não só na história do cinema agrícola e, de modo mais alargado, do cinema científico português, mas também no processo que consagrou definitivamente o potencial educativo e cultural do cinema. Para além destes filmes, Coelho foi um conhecido autor de policiais e livros de espionagem, tema sobre o qual realizaria a sua única longa-metragem de ficção, Porto de Abrigo (1940).
Fundados por ocasião da Campanha do Trigo (iniciativa do ministro Henrique Linhares de Lima inspirada na “Bataglia del Grano” do fascismo italiano), os serviços cinematográficos agrícolas inspiraram-se no modelo francês e, tal como naquele país, juntaram a uma estrutura de produção uma filmoteca responsável pela distribuição nacional de uma importante coleção de filmes de temática agrícola, portugueses e estrangeiros.
Os filmes de Adolfo Coelho seguem o exemplo dos Kulturfilme da célebre produtora alemã UFA, combinando também uma forte componente pedagógica com o emprego de técnicas cinematográficas sofisticadas, tais como micro e macro-fotografia, câmara lenta, animações e reconstituições em estúdio de variados habitats (muitas destas técnicas foram usadas pela primeira vez em Portugal).
Os Kulturfilme estrearam em Portugal desde finais dos anos vinte, distribuídos através de H. da Costa (em Paris) e Raul Lopes Freire (em Lisboa). A imprensa especializada garantiu-lhes uma excelente receção, apontando-os sistematicamente como exemplo para todos os filmes culturais e educativos (nomeadamente de produção portuguesa), encorajando exibidores e distribuidores a reincidirem na divulgação comercial daqueles filmes, insistindo para que o Estado comprasse e/ou produzisse filmes daquele género e os divulgasse nas escolas e congratulando-se pelo modo como estes filmes tinham contribuído para o processo de legitimação cultural do cinema em Portugal.
Os documentários de Adolfo Coelho concentravam-se na exemplificação de técnicas de cultivo, na demonstração de novas culturas, na mecanização e no combate a pragas e doenças; em suma, na transmissão de técnicas específicas para aumentar a produtividade agrícola do país. No entanto, muito poucos destes filmes eram verdadeiramente instrutivos, isto é, tomavam uma forma didática apresentando os vários passos necessários à aprendizagem e aplicação de uma determinada técnica. Alguns dos filmes eram muito generalistas repetindo truísmos ideológicos sobre a vida no campo, o carácter e a psicologia das populações rurais ou a beleza das paisagens do interior do país. Ao fazê-lo, denunciavam não apenas o seu principal destino (as salas de cinema comerciais e os públicos urbanos), mas também o objetivo profundo de todas as campanhas estatais destinadas a melhorar a produtividade agrícola e as condições de vida nos campos: evitar a todo o custo os movimentos de êxodo rural e prevenir a eventual proletarização dessas populações.
No filme Apicultura (1938), primeiro documentário sonoro do ministério, aquela orientação conduz mesmo a uma subversão total do género no que diz respeito à utilização do som. Em vez de ser usado como complemento de informação (pela narração em off) ou até como instrumento amenizador do didatismo (como música orquestral que ajudasse o espectador a assimilar mais facilmente as informações agrícolas), a novidade técnica que era o som esgota-se numa retórica bucólico-ideológica: a narração, repetindo elogios à rígida organização social da colmeia (qual sociedade corporativa onde todos conhecem o seu lugar “natural”); e a música, concentrando-se em canções populares sobre as abelhas (incorporando alguma “sabedoria popular” neste processo de transmissão de conhecimentos).
Mas para lá das técnicas para aumentar a produtividade agrícola que aproximam estes filmes da tradição do documentário agrícola francês, outros filmes do MA mostram também um mundo natural desconhecido, recorrendo para isso a técnicas cinematográficas específicas, a reconstituições em estúdio e à colaboração de técnicos especializados (alguns deles, os mais reputados engenheiros agrónomos do seu tempo – uma classe profissional emergente no Estado Novo até à viragem industrialista do regime nos anos cinquenta), no que se aproximam da tradição dos documentários alemães sobre o mundo natural e sobre a ciência. É preciso dizer, aliás, que tanto Adolfo Coelho como F.A. Quintela (responsável pelo som de muitos dos filmes de Coelho), vinham trabalhado juntos na Lisboa Filme desde o final da década de 1920 nas versões (i.e., nas dobragens) portuguesas dos filmes culturais da UFA (para citar apenas alguns exemplos, Coelho trabalhou nas versões portuguesas de Völkerwanderungen der Fische (Migrações dos Peixes,1932), Der König des Waldes, Der Rothirsch (O rei da Floresta [o veado], 1934), Können Tiere Denken? (Os animais pensam?, 1938), Wertvolles Wasser (Aplicações da Água, 1942)). E que diferença entre os planos macro-fotográficos de Apicultura (1938), sistematicamente desfocados, às recriações laboratoriais do ciclo de vida do mosquito (em O Mosquito: Inimigo do Homem, de 1940), ou às recriações em estúdio do habitat e do ciclo de vida do escaravelho da batateira! O Escaravelho da Batateira (1943) é provavelmente melhor exemplo dos aperfeiçoamentos fotográficos que Adolfo Coelho conseguiu mobilizar e melhor ao longo de vinte anos, bem como uma das suas maiores tangentes aos documentários alemães da UFA sobre o mundo animal.
Depois da morte de Adolfo Coelho, a produção foi assegurada fundamentalmente pelo engenheiro agrónomo António Félix da Cruz (mais de 20 filmes entre 1952 e 1980) e, já nos anos 1970, pela também engenheira agrónoma Alice Gabriela Gamito (pelo menos 3 filmes entre 1971 e 1976). No final dos anos 1960, a filmoteca agrícola do ministério contava ainda com várias cópias em 16mm de filmes cedidos por embaixadas estrangeiras, bem como obras oferecidas por empresas de maquinaria agrícola e de fertilizantes.
O ritmo de produção abrandou consideravelmente nos anos 1950 e 1960, o que se explicará certamente não apenas pela morte de Adolfo Coelho e pela resistência à transição para os mais económicos pequenos formatos, mas também pelas várias experiências televisivas do ministério: desde 1958, com o magazine de informação agrícola TV-Rural (apresentados pelo engenheiro Sousa Veloso), o programa de maior longevidade nas grelhas na história da televisão portuguesa; e entre 1971-1974, com os programas de Tele-Promoção Rural (dirigidos por Alice Gamito), uma colaboração entre o MA, a RTP e o IMAVE, em articulação com a reorganização administrativa do MA que criou as extensões rurais. Estes programas consistiam na emissão televisiva de documentários agrícolas destinados a centros de recepção específicos onde se reuniam agricultores e técnicos de formação média que animavam depois um debate sobre a emissão e se encarregavam de comunicar telefonicamente ao centro emissor as principais dúvidas levantadas. As dúvidas eram tratadas e sistematizadas num novo programa emitido em forma de debate entre alguns agricultores e engenheiros agrónomos, mimetizando os debates dos centros recetores e que procurava dessa forma didática responder às questões previamente levantadas. Esta experiência assinalou o fim das iniciativas ministeriais de receção descentralizada em meio rural das suas produções cinematográficas. Data igualmente do início da década de setenta o nascimento do Festival de Cinema de Santarém, que contou pelo menos uma dezena de edições anuais, muitas das quais dedicadas ao cinema de temática agrícola e onde tiveram lugar as primeiras retrospetivas da obra de Adolfo Coelho (bem como dos seus continuadores, A. Félix da Cruz e Alice Gabriela Gamito).
(c) Arquivo RTP
A partir de 1985 iniciou-se o processo de transferência e depósito dos materiais fílmicos constantes da filmoteca do MA para os arquivos da Cinemateca Portuguesa, processo esse que decorreu até 2002, envolvendo mais de 100 títulos (portugueses e estrangeiros), que têm vindo a ser preservados desde então.
Todas as imagens (exceto indicação em contrário): col. da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema