Matar a imagem (Daydreams)
Est-ce qu’elle n’avait pas hanté ses jours et ses nuits? Est-ce que son image n’avait pas été perpétuellement dressée en lui, comme une icône?
Boileau-Narcejac, Sueurs froides (d’entre les morts)
No plano inaugural de Daydreams (Gryozy, 1915), de Yevgeni Bauer, vê-se em campo o par romântico em torno do qual o filme se desenvolverá. O homem debruça-se sobre a mulher, que está deposta sobre uma cama repleta de flores, morta, e chora o desaparecimento desta. Mas dizer “desaparecimento” como quem diz “morte” pode ser falacioso quando nos reportamos a determinados universos romanescos em que a sobrevivência à morte é efectivamente uma possibilidade, por vezes a única possibilidade. O filme de Bauer inscreve-se nessa linhagem. Assim, embora Daydreams comece com um plano da mulher morta, o que se procura nesse gesto inaugural é, justamente, a presentificação de um ser que, em princípio, está desaparecido, atingindo-se desse modo o propósito muito consequente de, pelo contrário, sublinhar a sua presença.
Estamos, então, desde a abertura, no domínio da duplicidade, da transitoriedade, da mobilidade (dos conceitos e das formas). Adoptando a morte como um dos seus tópicos predominantes, o cinema de Bauer é, na verdade, e de maneira aparentemente paradoxal, também sobre o movimento. De certa forma, a sua poética é a do cinema como uma espécie de morte em movimento, prenunciando o título do célebre ensaio que Laura Mulvey publicaria cerca de noventa anos depois. Neste início, a imobilidade do cadáver parece prolongar-se na fixidez do plano, gerando um cenário de contaminação da forma pelo tema. Numa primeira análise, dir-se-ia que estamos no reino da morte como imutabilidade, confortavelmente dissociada da vida e de tudo o que se associa a esta. Contudo, atentar no uso das flores pode revelar uma noção de morte perfeitamente oposta, uma vez que este elemento cenográfico convoca para o interior do plano uma ideia de complementaridade (e reversibilidade) entre clímax e decomposição, isto é, de continuidade/contiguidade orgânica. Impossibilitando ao espectador destrinçar perfeitamente entre as formas da mulher e das flores, sugere-se um efeito de coalescência que poderia resumir-se da seguinte forma: ambas apodrecem. Com grande economia, e por meios inteiramente visuais, trabalha-se uma poética da morte como metamorfose, como algo que não é inteiramente opaco e estanque, mas aberto e poroso.
Impossibilitando ao espectador destrinçar perfeitamente entre as formas da mulher e das flores, sugere-se um efeito de coalescência que poderia resumir-se da seguinte forma: ambas apodrecem.
Estamos no domínio do fluxo, da mudança, da impermanência, da fragilidade. Situamo-nos, em suma, e num prolongamento teórico que deve ser levado a cabo na discussão da obra de Bauer, no reino do cinema e das suas imagens.
No centro de Daydreams encontra-se um homem que, de certa forma, se afirma contra o cinema ao recusar a dimensão metamórfica da vida. E esta dimensão é – não sem um certo paradoxo, aliás, explorado por Mulvey no livro a que aludi (i.e., no cinema, são as imagens fixas [mortas] que potenciam o movimento [a vida]) – aquilo que anima o cinema. No primeiro plano, perante o cenário composto pelas flores e pelo corpo putrefacto da sua esposa, o viúvo corta da cabeleira dela uma trança. Desta espécie de natureza morta, aquilo que mais eficazmente resistirá ao apetite voraz da decomposição é o cabelo, que o homem guarda numa caixa de vidro. A trança torna-se, assim, um elemento com uma importância simbólica crucial no desenvolvimento da intriga do filme, que começa e termina também com ela.
Ao nível da economia narrativa, o cabelo desempenhará o papel de primeiro substituto, metonímico, da mulher morta. Ao guardar uma parte da sua mulher – sintomaticamente, a parte menos susceptível ao desaparecimento, e aquela que continua a crescer, a desenvolver-se após a morte -, o protagonista ambiciona mantê-la junto dele. A primeira coisa que ele faz após cortar o cabelo é levá-lo à cara, beijando-o, renovando o beijo que dera, momentos antes, ao cadáver. A trança torna-se, assim, um substituto material da mulher, contrariamente a outro substituto que o filme apresentará – uma outra mulher, fisicamente semelhante à primeira -, que por sua vez não manterá uma relação directa, física e indicial, com a morta. Em suma, o cabelo alimentará o sonho deste homem de que – como em Vera, de Villiers de l’Isle-Adam (um universo literário não muito distante do mundo de Georges Rodenbach, que Bauer adapta aqui) – nada mudou, isto é, de que a realidade não foi, como é o cinema, sujeita ao princípio da metamorfose.
No segundo plano do filme, vemos uma divisão da casa em cujas paredes e em cujos móveis figuram retratos da falecida. Prefigurando a chambre verte de Julien Davenne, no filme homónimo de Truffaut, esta divisão é, na verdade, no seu carácter de câmara-ardente, uma reconfiguração daquele quarto em que tivera lugar a acção do plano anterior. O corpo da mulher morta desapareceu (ela foi sepultada), mas a sua imagem subsiste cristalizada na fotografia, numa época em que não era necessariamente despropositado acreditar-se que, no processo de captação da imagem, uma parte da alma (e do ser) do retratado migrava para a fotografia, ficando nela enclausurado.
Neste segundo plano, o homem volta a pegar na trança e a levá-la ao rosto, e assistimos então à convocação de diferentes materialidades associadas a um mesmo corpo perdido: as fotografias rematerializam a figura da mulher em imagem, contendo ainda, mantendo no horizonte a crença que acabo de referir, algo dela; e, no seu carácter abstracto, a trança cumpre uma relação metonímica, não meramente icónica, com a desaparecida. Em qualquer um dos casos, porém, assistimos ao triunfo do simbólico, que, evidentemente, é o único domínio no qual um homem que, tendo sido vitimado pela realidade ao perder aquilo que mais ama e sem o que sente não poder viver, pode encontrar uma forma de vida (sempre deficitária, a menos que – e ainda que – a amada regresse efectivamente). O que está a ter lugar já no segundo plano do filme é, muito simplesmente, a ingressão deste homem nos domínios do simbólico e da representação, a sua entrada num mundo em que as coordenadas da realidade não são inteiramente as que regem a vida comum e ordinária, um mundo em que um conjunto de fotografias e uma trança podem, de alguma forma, significar uma mulher. Em suma, o mundo de Bauer.
O homem sai e passeia pelas ruas. A câmara segue-o num travelling para a direita, até ele se cruzar com uma mulher cuja visão o petrifica. A câmara pára com ele. Um intertítulo dá-lhe voz: “Elena!” O nome da falecida, à qual a transeunte se assemelha perturbadoramente. A câmara reinicia um movimento de travelling, desta vez para a esquerda, acompanhando-o à medida que este volta para trás para perseguir a desconhecida. Numa de várias associações possíveis, este movimento de câmara evoca o mesmo tipo de jogo em torno do travelling realizado em Odete (João Pedro Rodrigues, 2005), que analisei antes, quando a câmara percorre o mesmo percurso, em sentidos opostos. Em Bauer, este efeito formal parece articular-se com a noção de reversibilidade, com a ideia – que se instaura no filme justamente neste momento, com a aparição da segunda mulher – da possibilidade de um retorno efectivo.
Ele segue-a até um teatro, onde ela interpreta o pequeno papel de uma das freiras fantasmas em Robert le diable, de Giacomo Meyerbeer. Neste passo da ópera, o pai de Robert invoca os espectros de um grupo de freiras que quebraram os seus votos em vida, e impele-as a seduzirem o seu filho. No contexto da vida deste espectador em particular que assiste ao espectáculo, tal passo sofre uma ressignificação, que novamente sublinha a ideia de que a realidade deste homem foi infectada pelo simbólico: na intriga da ópera, a aparição dos fantasmas assinala o regresso das freiras do mundo dos mortos para seduzirem Robert; na intriga do filme, a actriz-bailarina Tina é vista a sair de dentro de um túmulo, como se saísse também do mundo dos mortos (o único que o protagonista actualmente valoriza) para seduzir o viúvo; num terceiro nível, a mulher morta, Elena, está também a regressar dos mortos, uma vez que, devido à semelhança, o homem vê na actriz a sua esposa.
Esta curta cena serve ainda para definir, desde logo, a complexa condição de Tina, entre quem ela é realmente, os papéis que interpreta em palco, e aquela outra – para si, desconhecida – que o protagonista masculino projecta em si. Ao nível do trabalho sobre problemas identitários, estamos indubitavelmente perante uma espécie de proto-Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958) de Alfred Hitchcock.
A associação com Vertigo tornar-se-á, aliás, ainda mais evidente numa sequência posterior, em que o viúvo pede a Tina que vista as roupas e use as jóias da falecida, como preparação para uma sessão em que a substituta será pintada como se fosse Elena. No entanto, quando ela toca nas jóias, ele incomoda-se inexplicavelmente e ordena-lhe que não lhes toque mais. Neste momento em que ela está vestida como a outra, a perturbação dele exprime a inquietante estranheza provocada pela familiaridade falsa daquela visão: ela é igual a Elena, mas não é Elena. A semelhança quase total evidencia nela a diferença. Em Bauer, um efeito cosmético não é o suficiente para que um final feliz se cumpra. Falta-lhe, em suma, e em termos benjaminianos, a aura. Porque, não obstante o facto de o filme se situar no domínio da representação e do onírico, privilegia-se nele uma valorização da essência que o afasta definitivamente de Vertigo ou de Odete. Embora Tina seja em tudo igual a Elena, ela nunca será realmente a outra.
A cisão entre as duas mulheres atinge um momento paroxístico no final, quando a substituta, que até então fora votada a frequentar o piso térreo da casa da personagem masculina, ousa ascender, subindo as escadas. Ao longo do filme, são vários os travellings sobre estas escadas, que evidenciam a ideia, de óbvio valor simbólico, de que o lugar de Elena é em cima, onde está o altar com os retratos e a trança, e o de Tina é em baixo. Subindo ao segundo piso, Tina ultrapassa o espaço que lhe está reservado, incorrendo numa transgressão que a condena fatalmente. Ela encontra-o no quarto dedicado à morta, e, frustrada por ser constantemente vista em função da outra, como num efeito de sobreimpressão, faz troça da morta, tocando (e conspurcando, aos olhos dele) os retratos e, finalmente, pegando na trança e brincando com esta pela sala. Ultrajado, ele asfixia-a com a trança da morta.
A morte em movimento (After Death)
He had given himself to his Dead, and it was good; this time his Dead would keep him.
Henry James, The Altar of the Dead
Em Daydreams, logo após a cena em que Tina enverga as roupas da defunta, o homem refugia-se novamente no quarto dos retratos, sendo aí visitado, durante alguns segundos, pelo fantasma da esposa. Tendo este plano lugar já nos minutos finais do filme, trata-se do primeiro momento em que a presença espectral da morta obtém uma figuração clara. Ao desaparecimento do espectro seguem-se dois flashbacks, aparentemente activados por um dispositivo de rememoração da personagem masculina. No primeiro, o casal passeia na natureza (um elemento, de resto, ausente do filme – a sua aparição neste flashback associa-o a um estado de coisas harmonioso que já não existe no tempo presente), e o segundo retoma o momento inicial em que o viúvo corta a trança do cadáver da esposa. Em apenas três minutos, primeiro tornando visível o fantasma, e depois apresentando imagens activadas pela memória, ou seja, filtradas pela (in)consciência da sua personagem daydreamer, Bauer mina o regime naturalista da imagem sobre o qual o filme se vinha construindo. Na cena final, imediatamente antes de o homem matar a substituta, e no preciso momento em que esta brinca com a trança, uma imagem da morta volta a aparecer sobreimpressa, desta vez directamente sobre o corpo da segunda mulher.
A figuração do fantasma cumpre, assim, diversas funções. A sua primeira aparição não pode senão levantar a dúvida, que acompanha geralmente este género de fenómenos, sobre se se trata de uma aparição real ou alucinada pelo homem. Ao nível da interpretação, esta indecisão tem certamente alguma pertinência para a compreensão do filme (estamos perante um homem de tal forma louco, que alucina o fantasma da mulher, ou, pelo contrário, o fantasma é real e visita o marido com algum objectivo em particular [ordenar a destruição da cópia?]?). Porém, ao nível do regime da imagem – que é o que aqui nos interessa focar -, este plano não deixa dúvidas: trata-se de um filme, como Odete, por exemplo, em que o regime da imagem não acolhe unicamente o material e o imanente. A aparição final, por seu turno, serve essencialmente para sublinhar por meios visuais a questão central do doppelgänger e da coalescência (não ontológica, atenção. Este problema – a não identificação – é, afinal, o que potencia o desfecho) entre as duas figuras, a morta e a viva. De certa forma, uma das questões fulcrais de todo o filme é a sobreimpressão virtual destas duas mulheres no plano da percepção do protagonista, que aqui se concretiza no plano de percepção do espectador.
Num filme sobre a impossibilidade de uma mulher ser aceite como quem é realmente (a certa altura, Tina diz ao pintor: “draw my picture”), é interessante verificar que a sua figuração não é, no entanto, inteiramente problemática. Tina recusa totalmente Elena, e nunca permite que o seu corpo seja outra coisa que não o seu próprio corpo (isto verifica-se apenas ao nível da intriga, uma vez que a retórica visual do filme complexifica esta questão, evidentemente, e a sobreimpressão final é o exemplo perfeito disso). Ao nível estrito da figuração, na verdade, é a personagem de Elena que sofre um tratamento complexo, sendo mostrada em diversos estados: começamos por ver o seu cadáver, mais tarde vemo-la como uma aparição (que o homem também vê), depois no plano da imaginação (daydreamed), e finalmente como uma aparição que, em princípio, as personagens em campo não vêem, e que é acessível unicamente ao espectador do filme. Se Tina é uma unknown woman ao nível mais elementar da intriga, Elena é a imagem em fuga do filme.
Em After Death (Posle smerti, 1915), essas duas condições coincidem na mesma personagem. O filme narra a história de um académico que vive em reclusão, e que é persuadido por um colega a deslocar-se a uma festa, onde é avistado por uma actriz que se apaixona por ele de imediato, sem os dois terem trocado uma palavra. Pouco depois, o mesmo amigo volta a convidar o académico para um recital da actriz. Esta avista-o durante a representação mas, quando regressa ao palco para os agradecimentos finais, não o vê. Ele, que o espectador sente não ser inteiramente indiferente àquela mulher, retira-se, recusando a proposta do amigo de lha apresentar. Em termos simples, o filme cria um cenário em que o protagonista pode escolher entre o romance ou a reclusão do trabalho, e ele opta pelo último.
O momento em que ela, Zoia, se apercebe de que o desconhecido não está na sala coincide com um grande plano do seu rosto, com um travelling frontal que é acompanhado de um lento fade to black. Noutro texto sugeri que, perto do início de Odete, um fade to black sobre o grande plano do rosto da protagonista anunciava o início de um processo de desagregação da identidade – literalmente, de perda de si – que o filme trataria de desenvolver. No filme de Bauer, este passo representa o primeiro indício de um processo análogo: quando se dá a rejeição (em Odete testemunhamos, lembremo-nos, um momento semelhante, em que Odete é abandonada pelo namorado), a protagonista apaga-se.
Pouco depois, numa tentativa desesperada de estabelecer contacto, Zoia envia um bilhete ao académico. No bilhete, ele lê: “if you can guess who is writing to you… come to petrovskii park tomorrow at around five o’clock”. Na primeira instância em que ela se dirige a ele, ao não assinar em nome próprio e colocando a sua identidade à adivinhação, ela já se apresenta como uma mulher desconhecida. O encontro tem lugar, mas ele rejeita-a. Três meses depois, lê no jornal a notícia do suicídio da actriz.
Tal como o protagonista de Daydreams (que, a certa altura, exclamara: “I’m going mad!”), e como o do filme seguinte, The Dying Swan (Umirayushchii lebed, 1917), o académico enlouquece. Depois de ler a notícia do jornal, e sentindo-se responsável por aquela morte, desenvolve uma obsessão com a mulher que, por sua vez obcecada por si, antes rejeitara. E que ele desenvolva uma obsessão com a morta não será inteiramente estranho para o espectador atento, que valorizou um momento no início do filme em que se mostrara o homem junto a um retrato, acompanhado do intertítulo: “Pure in soul and body… the image of his dead mother ruled his imagination”, sugerindo estarmos, como em Daydreams e em The Dying Swan, em pleno reino da frigidez e da necrofilia.
A partir de então, a mulher desconhecida tornar-se-á revenante, e a obsessão que o homem desenvolve por ela contaminará o próprio regime de imagem do filme. De certa forma, e à semelhança de Daydreams, se, ao nível da intriga, After Death é sobre a obsessão com a morta, ao nível da imagem ele é sobre o cinema como meio de representação ideal para a figuração dos mortos e a invocação dos fantasmas, antecipando assim, em vários anos, as experiências – efectuadas noutros termos, mais próximos do fantástico – levadas a cabo no âmbito do expressionismo alemão com estas mesmas questões [sem esquecer, é evidente, que uma fatia substancial do cinema primitivo é também, justamente, sobre estas questões, e que existem filmes contemporâneos de Bauer que mantêm algumas afinidades temáticas e teóricas com este, como por exemplo Der Student von Prag (O Estudante de Praga, 1913) de Paul Wegener e Stellan Rye].
Logo depois de tomar conhecimento do falecimento da actriz, o académico deita-se num sofá e, por detrás dele, o espectador pode ver a morta, vestida tal como na noite do recital. O homem pressente algo, mas não chega a ver falecida, pois a imagem desaparece, à maneira mélièsiana, antes que ele possa testemunhar a sua presença – o assombrado em primeiro instância é, então, o espectador. Alguns minutos mais tarde, vemos novamente Zoia num sonho, no qual ela se afasta para longe, perseguida pelo académico, sinalizando-se assim a receptividade dele em seguir o fantasma.
Quando finalmente vê a mulher, depois de ela se debruçar sobre ele, como um súcubo, durante a noite, ele tenta tocar-lhe, mas ela escapa-lhe, desaparecendo. Finalmente, noutra ocasião, ela acaricia-lhe o cabelo, e ele pede-lhe uma prova da sua existência, um índice de realidade, no que se subentende uma desconfiança dos sentidos e da sua própria percepção, que é, também, necessariamente, uma desconfiança em relação à imagem virtual e, por consequência, porque falamos de uma arte feita de luz, do cinema. Isto é, se considerarmos estas mulheres de Bauer figuras do cinema, imagens em movimento (i.e., fantasmas) que são perseguidas por figuras masculinas que se recusam a ser somente assombradas, desejando participar, de alguma forma, do nível de realidade das mulheres quiméricas, então estamos a falar também da ontologia do cinema (entre o material e o imaterial, o fixo e o móvel, o morto e o animado) e dos seus efeitos sobre o espectador.
Ao pedir-lhe uma prova da sua realidade, o protagonista posiciona-se num ponto próximo do estado de Górki perante as imagens cinematográficas, que, céptico, apreende como meras sombras de realidade. O que leva o académico – contrariamente ao que sucede com Górki, que, afinal, era um realista – a desconfiar que esta imagem pode ser real são os efeitos que ela desencadeia em si, de tal maneira concretos que conduzem de facto a uma reestruturação do seu mundo e da sua existência.
Perto do final do filme, numa nova aparição, eles abraçam-se, e, após o desaparecimento dela, ele é encontrado desmaiado e a segurar na mão uma mecha de cabelos longos. Ao nível da função na intriga, a mecha de cabelo consiste na prova definitiva de que o fantasma era real, e não fora somente alucinação – um passo que, como vimos, não é dado em Daydreams. Mas trata-se também, num prolongamento teórico que é necessário levar a cabo, do elemento que mistura definitivamente natural e sobrenatural, vida e morte, visível e matérico, literalizando a ideia de que o cinema é o lugar onde estas noções confluem, anunciando o 3.º ontológico incerto que Edgar Morin e Fernando Guerreiro viriam a conceptualizar nas suas obras, ou de que o cinema é, como escreveu Clément Rosset, uma “realidade que se situa num lugar indeciso, nos confins do imaginário e do real” (Propos sur le cinéma, 2011: 79).
No final, e antecipando O Estranho Caso de Angélica (2010) de Manoel de Oliveira, o homem morre após um último encontro, presumidamente reunindo-se à amada noutro plano da existência.
Coda: Fixar a morte (The Dying Swan)
It was indeed death itself!
Edgar Allan Poe, The Oval Portrait
Se os dois filmes anteriores (e também este) respondem de formas diferentes à questão de como pode o cinema representar a morte, The Dying Swan (de 1917, e, portanto, um dos últimos filmes realizados por Bauer, que morreu precisa e significativamente nesta data) apresenta um protagonista que é, também ele, um artista obcecado com este problema. Na primeira cena, vemo-lo entre desenhos de esqueletos, quando, desesperado, se agarra a um esqueleto aparentemente real, perguntando-lhe (com um certo efeito de irrisório): “where can I find death? Real death…” O filme será sobre esta busca. No entanto, para ser mais preciso, o filme de Bauer parece formar-se a partir da confluência de dois filmes – o do pintor e o de uma bailarina. Na verdade, a cena que acabo de descrever tem lugar cerca de quinze minutos após o início do filme.
Antes de o homem entrar no filme, é-nos apresentada Gizella, uma jovem muda, então aspirante a bailarina, que enceta um relacionamento amoroso com um vizinho. A dado momento, ela descobre estar a ser vítima de uma traição, e decide, com a ajuda do pai, fugir para longe e dedicar-se inteiramente à dança, exprimindo votos semelhantes aos de uma freira que abandona o mundo para ingressar num convento. Numa cena posterior, ela sonhará justamente com o que parecem ser freiras mortas que a tentam angariar para o seu reino, no que constitui uma alusão à cena da ópera em Daydreams.
Uma primeira resposta à pergunta do pintor (“where can I find death?”) chega pouco mais tarde, quando ele assiste à interpretação que Gizella, então uma bailarina célebre que viaja numa tour por toda a Rússia, faz da coreografia que Mikhail Fokine concebeu para o cisne moribundo de Le Carnaval des animaux, de Camille Saint-Saëns. Depois da actuação, ele envia à bailarina um bilhete a agradecer-lhe: “If only you knew how grateful I am to you. I have found what I have been searching for in all my life. All my life I have been searching for death and I have found it in your dance.” Como natural consequência desta epifania, o pintor convida-a para posar para ele enquanto cisne moribundo, acreditando que, ao capturar o momento em que o cisne morre, conseguirá resolver o problema de representação que o anima: pintar a morte.
Ele pinta-a finalmente e considera-se satisfeito com a sua empresa. No entanto, quando mostra a pintura a um amigo, este diz-lhe tratar-se de uma pintura sem génio. O pintor percebe então que esta aproximação à morte foi, à semelhança de todas as anteriores, gorada, e convida a bailarina a posar novamente para si. Ao passo que a primeira tentativa consistira em apenas uma sessão, a segunda consistirá em várias, de forma a poder trabalhar com mais vagar na figura.
No intervalo entre a penúltima sessão e a última, o amante do passado de Gizella regressa, confessa-se arrependido de a ter traído, e pede a mão dela em casamento ao pai. Este consente e o casamento é agendado. Quando Gizella regressa ao atelier, o pintor fica transtornado com a felicidade que encontra no rosto e no corpo da modelo. “Can this be the same Gizella? Where are those joyless, sad, exhausted eyes? Now her eyes blaze with a different flame. No, no, it is not the same Gizella.”
Depois de vestir-se, a modelo entra finalmente na sala vestida com o tutu, e coloca-se na posição do cisne morto. Contudo, parece não conseguir manter essa posição com a eficácia anterior. Se antes ela estivera tomada de uma letargia depressiva (fora a associação ente esse estado e o motivo da morte na dança aquilo que suscitara o interesse do pintor), sente-se agora extasiada com o casamento e a promessa de uma vida de romance. Há agora vida pulsante nela, e a imobilidade (a morte) já não é algo que o seu corpo possa expressar. “Gizella, are you alive? That won’t do at all!” Ele dirige-se a ela e asfixia-a, e um corte na montagem dá a ver a imagem final do pesadelo de Gizella, com as mãos das freiras a atacarem-na. Tal como o protagonista de Daydreams, este homem anseia pela fixidez, pela cessação do movimento, isto é, pela morte. Ele existe, assim, contra o cinema do qual a mulher, metamórfica, elusiva, dançante (mencione-se os diversos filmes sobre a dança de Loïe Fuller, que os minutos do filme em que vemos a actuação da actriz Vera Karalli trazem à memória), é uma figura paradigmática. “Be still, Gizella, do not move. This is where beauty and peace lie”. O homem pinta finalmente a sua obra e, no fim, aproxima-se de Gizella, aparentemente ignorando que a assassinou.
Muito perto do início da instauração do modelo narrativo, o cinema de Bauer concretiza já, num prolongamento das ideias esboçadas por Górki no seu célebre texto escrito à saída de um programa de curtas dos Lumière, todo um programa teórico sobre o cinema enquanto arte fundamentalmente espectral. Os melhores dos seus filmes devem ser lidos em pelo menos dois níveis do entendimento – um primeiro, que privilegia a intriga, e um segundo, que valoriza a pulsão simbólica, por vezes alegorizante, destas narrativas. O cinema deste cineasta russo não deve, então, de modo algum, ser considerado o mero sintoma do decadentismo burguês que os cineastas da pós-revolução viram nele.