Foi uma das minhas resoluções para o novo ano: fazer algo que, lamentavelmente, faço pouco ou menos do que a minha natureza, de devorador de filmes, me deveria obrigar. Falo daquilo que para Serge Daney era a arte mais fundamental da crítica: não tanto a de ver, mas a de rever filmes (daí, como avisava o crítico francês, o termo “re-vista” e, acrescento eu, “re-view”). Os sinais estavam em todo o lado, mas começavam com as minhas graves “perdas de memória”. Filmes que considerava estruturantes da minha relação com o cinema – e com o mundo – começavam a existir em mim sob a forma de recordações vagas. Lembrava-me mais do momento da minha vida em que vi os filmes, e o entusiasmo que eles geraram em mim, do que da história, das interpretações ou das próprias imagens. Além da resolução para 2018, que lentamente procuro cumprir, outro sinal importante veio de uma conversa que tive na esplanada da Cinemateca Portuguesa. Numa conversa entre amigos, percebia que os lapsos de memória não eram um exclusivo meu. Contava o camarada Luís Miguel Oliveira, parafraseando Louis Skorecki – crítico francês que, nem de propósito, foi um dos melhores amigos de Daney -, que nós só podemos dizer que vimos algum filme se o tivermos (re)visto nos últimos cinco anos. O cérebro médio não dá para mais. O meu cérebro, medium size como as minhas camisas, também não.
Portanto, não podendo mais aguentar no meu disco rígido tudo o que o cinema me ofereceu – mesmo o que me ofereceu de melhor -, cá ando no encalço da minha resolução, procurando pretextos para revisitar os filmes que, por esta altura, me conhecem melhor a mim do que eu a eles. E foi na televisão, pois claro, que dei azo a este meu “ponto de encontro” pessoal. Foi no canal Hollywood que dei de caras com uma das obras-primas maiores de Clint Eastwood, Unforgiven (Imperdoável, 1992) – calhou bem porque ainda tinha bem fresco no “olho da mente” o seu imperfeito último filme. Encontrei também a dar nesse canal de televisão um dos mais influentes filmes de terror do século XXI, de um realizador cujo nome corre o risco de se eclipsar – como um dia caiu no esquecimento o nome de Herk Harvey, o homem que imaginou Carnival of Souls (O Circo das Almas, 1962). Falo de Bryan Bertino e da sua entrada de leão no cinema, o de terror, com The Strangers (Os Estranhos, 2008), uma espécie de Halloween (O Regresso do Mal, 1978) à huis clos cruzado com… está claro, o circo de invasoras (des)aparições de Carnival of Souls. A minha consideração por estes dois filmes, de Eastwood e Bertino, não foi suficiente para evitar que, nalguns instantes, sentisse que estava a assistir “àquela cena” pela primeira vez. Será que “aquela cena” também se esqueceu de mim? Não, os filmes não esquecem, não nos esquecem. Por isso, é importante deixá-los voltar até nós, para nos revermos e actualizarmos de quando em vez, deixando-nos ajudar muito filmicamente na resposta à pergunta sacramental: quem somos?
O filme de Eastwood vi-o há mais de dez anos, creio que numa versão em VHS gravada da televisão. Reencontro-o numa cópia intocável, que atesta a magnificência do trabalho de luz da parte de Jack N. Green. Esta será, muito provavelmente, a obra mais bem iluminada de Eastwood – só talvez as suas duas obras-primas do século XXI, Million Dollar Baby (Million Dollar Baby – Sonhos Vencidos, 2004) e Letters from Iwo Jima (Cartas de Iwo Jima, 2006) podem contestar esta ideia. Posto isto, por entre sombras, entre o céu e a terra, este western crepuscular é tanto a consagração de Eastwood como grande autor do cinema americano, como a verificação de que o seu cinema é, era e continuaria a ser, um esplendoroso “canto do cisne” nesse país-mito chamado Estados Desunidos da América. A força de Eastwood estava na maneira como chorava o heroísmo ferido, inquietado, das suas personagens. Como diz o protagonista que interpreta em Unforgiven, Bill Munny, um antigo caçador de prémios regenerado pelo amor da sua mulher entretanto falecida, ele agora é “um tipo como os outros”. Este cowboy, celebrado em lendas que circulavam pela história oral do faroeste, surge-nos assim, de corpo e espírito amarfanhados. Munny actualiza o seu heroísmo no estado mais mundano de ser um homem como os outros. Como observa Luís Miguel Oliveira na sua folha da Cinemateca, Eastwood encarna “um pistoleiro envelhecido, que passa o filme a cair do cavalo, a errar tiros, a ser espancado, e a apanhar gripes”. O humanismo heróico de/em Clint Eastwood é feito desta mundanidade, desta telúrica humildade. Humildade, aliás, vem etimologicamente do termo latino humus, isto é, aquilo que está perto do solo. Ora, em Eastwood a terra suja e a terra lava. Como escrevi aqui, parece-me que o seu mais recente filme atesta de novo, e com alguma eloquência, esta ideia que Unforgiven semeia na “terra queimada” que já era então, no início dos anos 1990, o western americano.
O filme de Martin McDonagh é, ao contrário do de Eastwood, uma ficção não sobre o perdão, mas sobre um desejo justicialista por um ajuste de contas.
Bill Munny tem um último trabalho antes de se libertar dos seus próprios fantasmas: vingar os abusos cometidos contra uma prostituta. A missão adivinha-se purificadora, mas, apesar disso ou por isso mesmo, o caminho não será fácil. A provação é quase inteiramente física, um teste à resistência desta velha raposa do oeste que já não quer ser a lenda que se conta e que se canta de boca em boca, mas o homem que vive em paz com a sua consciência, no mais silencioso esquecimento alheio. Que a lenda do assassino imisericordioso seja vencida pela história de um homem que soube enterrar a lenda que foi. Unforgiven é a história de uma “desmitologização”, de um homem que volta a ser por momentos o que já foi – um assassino destemido – para, de uma vez por todas, se tornar “um tipo como os outros”. Trata-se, portanto, ao contrário do que o título porventura indica, de uma história sobre a procura do perdão como uma retirada de cena. Mas como pode Bill Munny alcançar o perdão se o que fez em tempos é imperdoável? Desde logo, sublevando-se contra si mesmo como um homem finalmente desembaraçado da “sua história” ou, dito de outro modo, assassinando de vez a sua infame, mas lendária, reputação. Por exemplo, sempre que vemos Eastwood empunhando a sua espingarda, sabemos que no contra-campo está, antes de mais, a sua própria culpa. Portanto, todas as personagens, sem ser ele, são como que fantasmas dessa culpa.
Na sua crítica do Público a Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (Três Cartazes à Beira da Estrada, 2017), Luís Miguel Oliveira cita este magnífico filme de Eastwood, obra que no seu tempo mereceu importantes distinções nos Óscares (Melhor Filme e Melhor Realizador para Eastwood, Melhor Montagem para Joel Cox e Melhor Actor Secundário para Gene Hackman). Parece-me que, apesar de Oscar friendly, os dois filmes partilham visões do mundo, se não contrárias, pelo menos muito diferentes. O filme de Martin McDonagh é, ao contrário do de Eastwood, uma ficção não sobre o perdão, mas sobre um desejo justicialista por um ajuste de contas. Isto é de todo diferente de um filme sobre a justiça, já que a protagonista interpretada por Frances McDormand não procura, como a certa altura percebemos, o verdadeiro culpado da morte bárbara da sua filha, mas alguém – ou algo – em quem depositar a sua raiva provocada, entre outras coisas não despiciendas, tais como uma broken home sem reparação à vista, pela falta de efectividade da acção policial.
Unforgiven é um filme sobre a regeneração, a expiação ou a possibilidade de redenção, ao passo que este filme, que parece ter sido definitivamente adoptado como bandeira do ódio por movimentos como #metoo ou Time’s Up, é uma desesperada alegoria sobre estes tempos em que vivemos, em que urge fazer justiça custe o que custar – meio caminho para a injustiça. Ao cobarde e odioso xerife brilhantemente interpretado por Gene Hackman em Unforgiven as prostitutas dizem-se inocentes, ao que aquele responde cinicamente: “inocentes de quê?” É esta a atitude – desconfiança fascizante – que enforma, corpo e esqueleto, Three Billboards…. Veja-se o seu vergonhoso desenlace, em que o detestável detective (Sam Rockwell) e a mãe em fúria (a em breve oscarizada McDormand) se unem numa celebração da “vingança pela vingança” ou, enfim, numa degustação salutar, sem culpa, da arbitrariedade do ódio. Uma atitude que arruina qualquer ideia de justiça e de redenção. Uma atitude anti-humanista, logo, um Eastwood treslido até à última linha. Enfim, e daqui enviando um abraço ao Luís, parece-me que esta é uma perigosa incursão no reinante moralismo dos nossos dias, que sei que ele também combate.
Como se habita o campo cego do outro? Desde logo, mediante um exercício de subtracção do corpo no espaço, dentro do que é – ou pode ser – o campo de visão alheio. Como reduzir a perspectiva de um filme à pura “perspectiva de ninguém” do mal? The Strangers produz todas estas questões, mas antes de mais pergunta-nos, em jeito de jogo perverso com o lado de cá do espectador, “onde está o mal?” como quem se interroga sobre “o que é o mal?” Ele está aqui, algures no espaço, entre a câmara e os protagonistas, entre quem caça e quem é caçado. Bryan Bertino entrou assim, atacando as grandes questões do cinema – de horror e não só. A entrada foi destemida, pela porta da frente e sem pedir licença. Baseou-se nas lições dos grandes mestres: Jacques Tourneur, o mais incontornável entre os clássicos, e Herk Harvey e John Carpenter, entre os mais brilhantes discípulos do classicismo. O que Fernando Guerreiro disse a mim e ao meu colega José Bértolo em entrevista, a propósito dessa monumental alegoria sobre o cinema que é Halloween, adequa-se perfeitamente a este exercício de Bertino. Passo a citar: “O Michael Myers, ‘the thing’, é uma máquina-cinema, uma ideia de cinema, uma teoria de cinema em funcionamento.” É isso que são “os estranhos” de Bertino, na medida em que a sua perspectiva – como em Myers/Carpenter – se confunde muitas vezes com a perspectiva da câmara, fazendo dessa relação tortuosa com a máquina-cinema princípio de indistinção entre o real e a alucinação. Mãos sem corpos, amputadas pela montagem, ou aparições “impossíveis” apanhadas pela câmara, com um misto de excessivo rigor e completa imprevidência, multiplicam-se no espaço do filme. The Strangers é uma teoria fenomenológica em acção sobre os limites do corpo no espaço e o modo como esses limites se mexem, estranhando, desnorteando, as nossas coordenadas mentais ou perceptivas.
Lembrava-me da sensação de estranheza e desnorte. Ela voltou a ser sentida agora que revi o filme, mas já com uma outra distância. O filme de Bertino, como muitos que arriscam e levam mais longe um certo esforço de teorização ou abstracção, foi assimilado mil vezes por filmes que lhe sucederam. The Strangers não será estranho a filmes entretanto realizados por James Wan, David F. Sandberg e James DeMonaco. Com isso, a distância crítica permitiu uma verificação mais nítida da dimensão conceptual que é jogada por Bertino nesta sua obra de estreia – o realizador só assinou, entretanto, mais duas longas, sendo que a mais recente, o filme inédito em Portugal The Monster (2016), é uma conjugação interessante de melodrama com terror, alegoria sobre a maternidade que sai das entranhas da sua actriz, a excelente Zoe Kazan (neta de Elia Kazan). Aquando dessa estreia, Bertino aparecia como um cineasta à descoberta, mas também encontramos já em The Strangers um pensamento firmado, que trabalha magistralmente por subtracção, até que não se ofereça mais nada ao espectador senão “pontos no espaço” desenhando planos sucessivos – o plano diabólico no filme é o movimento (um movimento sempre perto da extinção) do filme ele mesmo. Ao mesmo tempo, não é só “o que não vemos” que assusta mais aqui, é também o que o filme não nos oferece dramaticamente – quem são estes “estranhos” que atacam os protagonistas? Mas, esperem lá, quem são, antes de mais, estes protagonistas que são atacados? Frustrando muitas das nossas expectativas, Bertino faz do terror questão de som e imagem e faz do mal um puro corpo fílmico (produzido pela câmara e pela montagem). Mesmo sem a força terrífica que já teve, The Strangers continua a ser um exercício notável de geometrização do mal.