Soul radiation in the dead of night
Love in the middle of a fire fight
Honey gotta strike me blind
Somebody gotta save my soul
Baby penerate my mind
And I’m the world’s forgotten boy
The one who’s searchin’, searchin’ to destroy
The Stooges, Search and Destroy
No meio de uma luta de fogo, de si consigo mesmo, na escrita como no pensamento, Fernando Guerreiro aparece nesta conversa muito digno do epíteto que lhe tentámos colar a certa altura: o de “académico punk“. Guerreiro é poeta, ensaísta e professor, mas o desdobramento vai muito mais longe. Por isso, e reescrevendo, diríamos que Guerreiro é Epstein, é Boileau, é Eastwood, é Rimbaud, é Tobe Hooper, é Baudelaire, é Yimou. É, acima de tudo, os três Cês: Corman, Carpenter e Cronenberg. Na sua escrita vertem-se as imagens e o seu movimento (o cinema de Rimbaud, a poesia de Carpenter, etc.). Nelas, trabalham-se – e dão-nos trabalho – os corpos e os fantasmas de uma cinefilia sincrética, indisciplinada, punk. Apetece citar o conde de Buffon e dizer que o estilo é o homem. Guerreiro transporta a energia das suas ideias na maneira como fala, gesticula e nos devolve as suas questões. O campo é aberto, electrizante, mas é preciso nós, leitores, espectadores e… bons maus alunos que queremos ser, estarmos preparados para a aventura desta proposta de abraçarmos – e de nos deixarmos abraçar – pelo luxo e pelo lixo. A obra poética e ensaística é vasta, mas a desculpa para este encontro foi, antes de mais, o seu mais recente livro, Imagens Roubadas (edição Enfermaria 6), reunião de textos que espelha muito daquilo que Guerreiro é e pode fazer de nós: antes de tudo, e para estarmos à sua altura, leitores punk. A entrevista foi conduzida pelos walshianos Luís Mendonça e José Bértolo (aqui também na qualidade de ex-aluno de Fernando Guerreiro), com fotografia de Mariana Castro, e no “local de sempre”: a Livraria Linha de Sombra, da Cinemateca Portuguesa.
Luís Mendonça (LM) – Imagens Roubadas é o título do seu mais recente livro. Escrever sobre cinema é uma forma de roubar, pilhar, apropriar?
O título não tem um grande conteúdo teórico. Funciona mais como slogan do que como conceito. É um jogo de palavras com o título do filme de Truffaut, Baisers volés (Beijos Roubados, 1968). Em vez dos baisers estão as imagens. Tem que ver com o filme em si, o sempre ter gostado dele, e com a canção de [Charles] Trenet. Em boa verdade, era um título que eu tinha na cabeça para usar. Na altura que eu fazia dossiers para a [revista] Vértice, tinha pensado fazer um com o título Imagens Roubadas. Era para ser um dossier sobre moda. Como vêem, aquele título tinha de ser usado. Inclusivamente, aquela sequência de textos [que abre o livro Imagens Roubadas] começou por ter uma primeira versão com esse título, que era para fazer parte do Cinema El Dorado. Depois tirei-a, porque o livro já estava enorme e não fazia sentido. Era uma frase que eu já tinha na cabeça, com associações que terão que ver com escolhas afectivas e electivas. Ou a usava agora ou corria o risco de não a usar…
LM – Imagens roubadas. Aos filmes ou a si mesmo?
São imagens como beijos. Um tipo de relação afectiva com o cinema, uma visão do cinema, a própria situação de ver os filmes. Nessa medida, pode ter que ver com uma espécie de história afectiva do cinema.
Aquilo de que gosto muito nesse filme de Hooper é que, digamos, é exterior. Não nos atira com toda uma psicologia, das razões para isto e para aquilo. Em certa medida, os corpos estão lá para arder. E as imagens também. O cinema pode ter que ver com isso, com essa espécie de incineração pública do real.
LM – Escreveu em Imagens Roubadas: “O verdadeiro cinema é o que (se) passa na nossa cabeça”. Associada a esta ideia, gostei da metáfora que usou aquando da apresentação do seu livro na Livraria Linha de Sombra: o cinema como câmara de incineração. Fez-me regressar a uma definição de crítica que li em Filomena Molder: a crítica como a arte de ver a luz – o fogo – nas cinzas. É preciso reatar, através da escrita, esse fogo interior que não se vê e que devemos à obra?
Para mim o cinema tem mais que ver com uma oportunidade de desapropriação do que de apropriação. Não falo de um cinema mental no sentido de “o meu filme, a minha história”. A passagem ao mental é um pouco a passagem ao inconsciente. O inconsciente não é de ninguém. Nós, quanto muito, caímos nele. Lido com o cinema como ocasião de desapropriação, de despersonalização, de desumanização. Nessa medida, como diria a Filomena Molder, é um pouco “search and destroy”. O “destroy” é importante, porque, de modo geral, na maneira como gostamos de filmes e escrevemos como eles, podemos usar esse tipo de prática para “desminar-nos”, destruirmos os pequenos diques em nós próprios. Não se trata tanto de captar um “fogo interior”, mas de arder num fogo exterior na medida do possível. É um pouco isso para mim aquela imagem de Tobe Hooper [sequência de Spontaneous Combustion (Combustão Espontânea, 1990) projectada durante a apresentação do livro]. Aquilo de que gosto muito nesse filme de Hooper é que, digamos, é exterior. Não nos atira com toda uma psicologia, das razões para isto e para aquilo. Em certa medida, os corpos estão lá para arder. E as imagens também. O cinema pode ter que ver com isso, com essa espécie de incineração pública do real. Esta é, aliás, uma ideia muito antiga. Nas décadas de 1910 e 1920, vários autores, homens e mulheres, defenderam isso. Canudo, naqueles textos da década de 1910, dizia que o cinema era uma espécie de ritual/cerimónia pânica. Artaud, de outra maneira, dizia isso. Tal como Epstein. O cinema pode permitir formas de reatar com o real. Não tanto para o possuir, ainda que, quer dizer, também se possa fazer isso e não há maneira de escapar a isso. Mas mesmo aí, quando se joga com as representações e a dimensão de figuração, é, em certa medida, “achas para a fogueira”. É um pouco como o cinema de Bauer: são histórias e personagens que estão sempre a desaparecer.
O cinema também é uma casca de banana para a arte no ponto em que ela está a correr o risco de se tomar excessivamente a sério.
LM – Parece-me muito interessante que fale em “desapropriação”, porque de maneira alguma penso que se propõe neste livro uma forma de auto-psicanálise através do cinema ou de memória pessoal filtrada pelos filmes.
É um pouco como a experiência amorosa de Antoine Doinel em Baisers volés. O José [Bértolo] trabalhou isso bem [referência ao livro Imagens em Fuga: Os Fantasmas de François Truffaut, objecto principal desta entrevista]. Aquela personagem [Fabienne Tabard, interpretada por Delphine Seyrig] está lá precisamente para tirar Doinel da sua história pessoal.
LM – É isso que pede ao cinema: que o faça sair de si, para aceder a esse “alguém de ninguém”?
Sim, daí eu gostar de certos tipos de cinemas. Porque é que eu gosto muito do burlesco? É por causa disso.
José Bértolo (JB) – Por causa disso em que medida?
O burlesco do Jerry Lewis é uma via para a destruição através do corpo, da acção, da gesticulação permanentes. O terror, em certa medida, também é isso.
LM – O burlesco e o terror são géneros que têm isso em comum: trabalham o desastre, o acidente.
Sim, são ficções ou situações que nos colocam o risco da desorganização, da desfiguração. São situações próximas do real. Porque, quer dizer, o real é um risco.
LM – O cinema como a casca de banana que nos faz escorregar?
Sim, por isso é que se cai tanto no burlesco. Jean-Louis Schefer escreveu magnificamente sobre isso: [o burlesco] está ali para cair e fazer-nos cair com ele. Quando estamos muito bem, sérios e em pé, está ali a casca de banana. O cinema também é uma casca de banana para a arte no ponto em que ela está a correr o risco de se tomar excessivamente a sério. Na medida do possível, esta é uma lógica da exterioridade, que consiste em procurar definir o dentro sempre a partir do exterior.
JB – Na escrita como no pensamento, o Fernando privilegia frequentemente movimentos de fuga, de transbordamento, de mutação. Interessa-lhe menos a figura, e mais o figural. Menos a imagem e mais o “entre-imagens”, para citar Raymond Bellour. Menos encontrar o sentido e mais sabotar o sentido. Interessa-lhe aquilo que escapa à capacidade humana, digamos assim, de fixar o mundo em código (em imagens, em linguagem, etc.). No cinema, interessa-lhe menos o intelectual ou o cerebral, creio eu, do que o sensorial ou o sensual.
O cerebral não é bem o intelectual. O cerebral é um pouco da ordem do sensual.
JB – É justamente isso que me interessa discutir. O Fernando é um intelectual, é alguém muito ligado ao discurso. Não vejo em si uma criatura romântica que quer estar apenas a contemplar o mundo. Como é que lida com a coexistência desse apelo do sensual e da constante intelectualização de tudo?
As sensações e os sentidos são da ordem do intelecto. As sensações têm o seu pensamento, têm ideias. E vice-versa. O cerebral é, digamos, a dimensão sensível do pensamento. O primeiro Epstein é muito isto. Nomeadamente o texto que ele escreve, no mesmo ano de Bonjour Cinéma, sobre a poesia, «La Poésie D’aujourd’hui : Un Nouvel État D’intelligence». Ele defende, nesse texto, um novo estado da inteligência que seria, digamos, um estado vegetativo. Essa vida vegetativa – conceito da época, das ciências da natureza e do homem – é essa espécie de registo de vida em que o cerebral e o sensitivo se misturam e se imiscuem, produzindo formações anómalas. Atinge uma espécie de estado de germinação originário, não no sentido em que vem do primeiro dos tempos, mas no sentido em que é a origem das coisas. Por exemplo, o Hitchcock. Ele é hiper-intelectual e hiper-sensitivo. Ele faz-nos sentir as ideias. O Clint Eastwood está um pouco a fazer isto também. Sobre este último filme [The 15:17 to Paris (15:17 Destino Paris, 2018)], pode dizer-se: “ele filma muito bem”. Mas não é só isso: os planos dele – neste filme, não tudo, mas, pelo menos, toda a primeira parte – são planos que têm uma inteligência que é sensível. Aquilo que dizia Walsh: “há apenas uma maneira de filmar”.
LM – Como dizia o Manoel de Oliveira também.
Sim, o Oliveira também. É atingir esse ponto de mistura das coisas.
LM – Por falar em “pontos de fusão”, o Fernando é professor, escritor, poeta. Parece-me que navega muito entre o registo denso da academia e os vôos livres, sem freios, da poesia. Ao mesmo tempo, saltamos na sua escrita do cinema para a filosofia (Platão), para as letras (“o cinema de Rimbaud”), para a música (Sex Pistols), para as imagens da fotografia (“a fotografia cinematográfica” de Gregory Crewdson), para as séries de televisão [The Americans (2013)]… O que lhe oferece este espaço intermedial, aparentemente sem absolutos?
Não sou daqueles que acham que há uma especificidade da imagem cinematográfica; que há uma coisa que é o cinema e que há outra coisa que são as várias modalidades das imagens em movimento ou seja o que for. Para mim, que sou bastante mais sincrético, confuso também, acho que há um fenómeno que é o das imagens em movimento e a forma como elas nos afectam… Nós, em certa medida, somos uma imagem. Em termos filosóficos, tenho uma visão lucreciana do mundo – é quase ofensivo para o Lucrécio usar estes termos. Há esse fenómeno da matéria que é a imagem em movimento – Bergson e Deleuze – e depois há várias modalidades dentro disso, e o cinema é uma delas. Mesmo quando era miúdo, nos anos 1960, eu e o Mário Jorge Torres [antigo crítico do jornal Público, Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa] víamos tudo, para todo o lado. Era uma concepção impura e aberta do cinema. É algo que o Daney dizia a propósito do Godard: o cinema é um dispositivo de imagens que não foram feitas para ele. Acho que é uma óptima definição para esse carácter impuro, sempre em movimento e em metamorfose, do que se pode dar o nome de cinema.
LM – No seu livro fala do digital como instância produtiva que vem relançar possibilidades. Imagens Roubadas é, por isso, um elogio optimista ao futuro ou estamos sempre condenados aos nossos preconceitos ou aos preconceitos dos outros?
Temos sempre alguns, temos todos naturezas nem puras nem inteiramente selvagens. Portanto, isso existe sempre. Mas acho que sim. Por exemplo, gostava de ter havido a possibilidade de Robert Bresson ter usado o 3D. Para já, ninguém diria que ele fez com a cor o que fez. Tinha-se uma ideia a preto-e-branco do Bresson e quando ele apareceu com aqueles filmes a cores a recepção não foi assim tão famosa como isso logo no início. O 3D pode ser usado no cinema de acção espectacular. Mas pode ser usado de uma forma quase miniatural. Pode ser um dispositivo de exploração como cinema científico à maneira de Painlevé; como dispositivo de exploração e abertura da imagem, do real, das coisas… De revelação do carácter multipolar da dimensão sensível das coisas. Que tenha havido várias razões industriais para o desenvolvimento das técnicas num sentido não quer dizer nada que essas técnicas não possam ser usadas de outro modo. Para já, mesmo usadas como são colocam todas as outras formas do cinema num novo contexto. Hoje o fazer-se um filme a preto-e-branco, mudo, um parti pris deliberadamente retro, já é contaminado por um novo estado tecnológico das imagens. Portanto, não é o mesmo. Veja-se o último Garrel, de que eu gosto muito. Acho que é um autor que tem uma certa continuidade, mas o cinema dele mudou muito. Mudou muito… sei lá se mudou muito! Há que ver os primeiros filmes dele. Não só o novo contexto muda o cinema em todas as suas formas, como há possibilidades que ainda não foram exploradas. Por exemplo, o novo filme de Wim Wenders, Les beaux jours d’Aranjuez (Os Belos Dias de Aranjuez, 2016). Não sei se viu.
LM – Não vi, não.
Ah, mas devia ter visto. Quer dizer, é o Wenders… Os seus últimos filmes podem ser muito pouco interessantes, mas este é interessante. Não interessa se é sempre magnífico durante uma hora e meia, mas tem coisas muito interessantes ali, nomeadamente ele recria ou reproduz quase uma sensação pura de cinema. Estão a ver aquele filme dos Lumière, Repas de bébé (1895)? Aquele efeito absolutamente magnífico do vento? O Wenders faz isso. Há lá momentos em que ele filma o efeito do vento nas árvores, em 3D e com som. As possibilidades são imensas e as coisas vão mudar.
LM – Cita no seu livro Cave of Forgotten Dreams (A Gruta dos Sonhos Perdidos, 2010), documentário de Werner Herzog sobre as pinturas rupestres das cavernas de Chauvet que foi, precisamente, filmado em 3D.
Sim, pode haver uma história evolutiva dos processos e das formas da arte, nomeadamente do cinema. Mas pode haver uma história dos efeitos sensíveis do cinema. Não ver o processo, mas ver como um determinado tipo de efeitos pode ser produzido, modelado ou variado através de processos diferentes. Por exemplo, em vez de nos centrarmos na evolução das formas, centrarmo-nos na evolução das sensações fílmicas.
Mas os filmes são situações, são experiências. Um filme médio ou mau mesmo pode ter um flash que nos atira para o infinito.
JB – O Fernando costuma dizer que um filme pode não ser muito interessante, mas se uma só imagem lhe interessar, ela já será o suficiente para alimentar uma longa conversa ou para escrever um artigo.
Acho que sim, que é isso.
JB – Isso faz-me pensar que ao Fernando interessam menos os filmes que o cinema, ou que entende cada filme como um sintoma de algo maior. Os filmes são coisas localizadas que lhe interessam apenas parcialmente.
Gosto de filmes, interessam-me. Mas os filmes são situações, são experiências. Um filme médio ou mau mesmo pode ter um flash que nos atira para o infinito. E outro ser muito bom e manter-nos sempre num horizonte. Na medida do possível, devemos tentar estar abertos a tudo.
LM – Quem escreve, como é o meu caso em particular, entre a academia e a crítica depara-se sempre com o “grande elefante na sala” que é o gosto. Nesse sentido, é muito surpreendente encontrar nas páginas de Imagens Roubadas uma filmografia tão rica, tão sincrética, que inclui vários objectos improváveis, tais como Mission to Mars (Missão a Marte, 2000) de Brian De Palma, Psycho (Psico, 1998) de Gus Van Sant, Vampires (Vampiros, 1998) de John Carpenter, Spider-Man (Homem-Aranha, 2002) de Sam Raimi, os Batman de Tim Burton e de Christopher Nolan. Parece-me que tem gosto em desafiar o cânone, em driblar as escolhas mais óbvias, celebrando uma espécie de “cinema menor”, voltando um pouco ao Deleuze. Podemos descrevê-lo assim: Fernando Guerreiro, o académico punk?
Eu gosto muito das coisas académicas. A minha tese de doutoramento foi sobre um poeta francês ultra-clássico: Nicolas Boileau, autor da arte poética do século XVII e do classicismo francês. Aquilo interessou-me imenso. Acho que os clássicos são grandes punks, se nós aceitarmos o desafio deles. A história é recontada pelos vencedores, mas aquilo tudo foi muito sujo, cheio de ódios e histórias… Procuro, na medida do possível, trabalhar da mesma maneira um autor do século XVII ou de há quinze dias. Não há razão nenhuma para não trabalhar da mesma perspectiva. O real é punk.
LM – Mas diverte-se, claramente.
Gosto, sim. Não sou um melancólico da cultura. Consigo interessar-me por tudo. O Jorge Silva Melo dizia isto de outra maneira: “Eu sou uma Maria-vai-com-as-outras”. O pensamento é um pouco isso: é ser uma Maria-vai-com-as-outras. Não faço um grande esforço para abolir as fronteiras. Os Cahiers du cinéma dos anos 1950 e 1960 tinham aquela regra: “quem gostar mais do filme, deve escrever”. Eu acho muito bem! Não quer dizer que não haja uma inteligência no ódio. Deve ser: “o que gosta mais e o que detesta mais”.
LM – Falou do último filme de Eastwood, provavelmente o mais pisado pela crítica dos seus títulos recentes. Pode dizer-se que acalenta um sentimento maternal de protecção das obras órfãs?
Nada, nada. Eu gosto muito da fase final dos autores, nomeadamente os clássicos americanos. São carreiras de trinta ou quarenta anos, há sempre coisas magníficas em todas as décadas, mas, de um modo geral, os últimos filmes são sempre espantosos: os últimos Ford, os últimos Hawks, os últimos Walsh. O Oliveira… nos últimos filmes abriu-se. Já não precisava de demonstrar nada ou de trabalhar para a galeria. Eventualmente o Clint Eastwood já deve ter mais de 80 anos… Mas não é para salvar o Eastwood, ele é que nos pode salvar em certa medida. É polémico, do ponto de vista político e ideológico, mas faz sentido ele pegar em personagens da América profunda que têm alguma forma de singularidade ou marginalidade. A questão da religião, das armas… faz todo o sentido pegar-se nisso, criar-se os heróis nisso. Depois, discute-se. Compreendo, mesmo que se possa não concordar, mas acho que está a trabalhar para nós, a confrontar-nos com outras situações.
LM – Diz também que a teoria vem de onde menos se espera. Assume, a certa altura, a vontade de transferir para a sua própria arte poética as transformações que John Carpenter e David Cronenberg produzem nos seus filmes. Que inspiração é esta que encontra, enquanto escritor, nestes cineastas mais obscuros?
JB – Acrescento também o Roger Corman, que não obtém um grande destaque no Imagens Roubadas, mas que é uma referência frequente na sua obra, e que pertence à mesma constelação destes dois.
Ele entra no último livro numa breve referência a propósito do House of Usher (A Queda da Casa Usher, 1960), salvo erro. O que é que se pode dizer sobre o Corman? O Luís entrevistou-o… Primeiro, no que diz respeito à escrita, talvez se possa dizer que há uma certa constância da problemática da imagem na minha escrita. E é por aí, por essa importância que dei sempre à questão da imagem, que, em certa medida, a relação com o cinema se instaurou. Para mim é uma relação simultânea. Na minha formação, não consigo distinguir uma coisa da outra. De alguma forma, venho mais do cinema para a literatura do que o contrário. Embora, na verdade, também seja enganador dizer isto, porque as duas coisas dão-se em simultâneo, mas digamos que em certo momento aquilo que me interessava mesmo era fazer cinema. E é o não tê-lo feito, não ter conseguido fazê-lo, não ter feito o esforço suficiente para o fazer, que me fez deslocar para uma forma menor de cinema, que é a literatura. Em boa verdade, as coisas sempre estiveram muito ligadas na minha formação: o cinema e um certo tipo de literatura. E depois, se houve alguma deslocação, tem mais que ver com o facto de não ter podido investir tanto no cinema…
LM – Podemos dizer, pegando nestes três autores – e gostava de o ouvir um pouco sobre o que é que eles significam, genericamente, para si, a seus olhos -, que estes cineastas ensinaram-no, e ensinam-no, a escrever?
Sim, sem dúvida. A escrita também ajuda a ver. Sem dúvida que sim. Estes cineastas ajudaram-me a libertar-me de um certo tipo de literatura. Eles contribuíram para que eu me direccionasse para aquilo de que gostava. O que, na verdade, não começou com eles. Em miúdo, adolescente, de que é que eu gostava? Dos surrealistas, de alguns românticos, daquelas figuras bizarras do século XIX, o Baudelaire, o Rimbaud, toda essa gente. Em boa verdade, o meu gosto e a minha formação no campo da literatura e da poesia já tinha muito que ver com aquilo que depois corresponde a um certo tipo de cinema. É como se se ajudassem todos uns aos outros, explorando essa questão da imagem, nomeadamente na escrita. E isto tudo tem que ver com o que, para mim, aproxima esses três autores: o Corman, o Carpenter e o Cronenberg.
O Corman é o que surge primeiro. E para mim apareceu muito cedo, na minha adolescência, nomeadamente com a “série Poe”. No caso de Corman, interessa-me o modelo de produção, que é um tipo de produção que eu coloco na linha da geração que vem depois da Nouvelle Vague, na segunda metade dos anos 1960 e nos anos 1970, que volta a um tipo de cinema muito elementar do ponto de vista da produção, do ponto de vista técnico – a geração de Jean Eustache, de Philippe Garrel, daqueles italianos desvairados que andavam por lá nesses anos… Por um lado, vejo muito um determinado tipo de produção, que tem que ver com a caméra-stylo, e, portanto, que corresponde a um modelo de produção leve, ligeiro. Em certa medida, se quisermos carregar de literatura esta referência, corresponde a um tipo de modelo romântico da própria literatura, o romantismo de Stendhal, que na década de 1820 dizia que, contra as grandes máquinas da literatura que eram os tratados de poética em vários volumes, aquilo de que precisamos – o exemplo dele era militar, talvez porque ele tinha sido militar nos exércitos napoleónicos, e portanto o modelo do militar era o modelo do artista romântico – é uma táctica de guerrilha. Precisamos de uma literatura de manifestos contra uma literatura de artes poéticas, e no cinema dos anos 1960 e 1970 é um pouco isso que acontece: a guerrilha contra os Panzers do grande cinema, seja em França ou noutros lugares. Na América, o Corman é um pouco isso, é o cinema de guerrilha, do ponto de vista da produção, e por isso o meu respeito e a minha admiração por ele, nesses anos, são imensos. Depois, do ponto de vista do cinema produzido, os filmes que vi primeiro, que foram primeiro os filmes do ciclo Poe e depois aqueles ainda ligados ao registo do terror e do horror, correspondem a esse tipo de cinema de imagens-sensações e de sensações-imagens. E, bom, o Corman é um realizador magnífico. No “ciclo Poe”, há uma espécie de poética da câmara, dos movimentos da câmara, do plano-sequência. É essa sensualidade, densidade material da imagem de cinema, que, para mim, foi muito importante nessa altura. Mais tarde, vi outras coisas dele, nomeadamente os filmes negros, os policiais, Machine-Gun Kelly (1958), I Mobster (A Vida de um Gangster, 1959), que é um Corman bressoniano, um Pickpocket (1959) feito na América, ou uma espécie de cinema como o de Budd Boetticher, um cinema quase jansenista. Gosto disso. Só descobri este primeiro Corman mais tarde, mas gosto de que não haja nada entre essas duas primeiras fases. O meio, digamos assim, foi produzido mais tarde, já na década de 1970. Mas que não houvesse nada no meio, e que ele passasse de uma espécie de secura da forma, do estilo, para o carácter luxuriante do cinema de terror dos anos 1960…
Não sei se o Corman fez experiências 3D com o cinema, mas em certa medida o Carpenter está a dar a dimensão 3D ao cinema do Corman.
O Carpenter surgiu mais tarde. E antes de mais, para mim, o Carpenter começa por ser o Halloween (O Regresso do Mal, 1978). A haver filmes produzidos do lado do inconsciente, o Halloween é um deles. Portanto, tudo aquilo que eu disse sobre a despersonalização, a exteriorização, tem que ver com isto. O Michael Myers, “the thing”, é uma máquina-cinema, uma ideia de cinema, uma teoria de cinema em funcionamento. E isto vai do Halloween até à versão terminal do Halloween, que é o Cigarette Burns (2005). Acho que o Carpenter é um pouco o novo Hitchcock. Faz um cinema da mesma ordem da conceptualização. O Hitchcock foi menorizado até aos anos 1960, mas já tinha mais de trinta anos para trás, e eventualmente o Carpenter está muito perto de nós, e serão precisos mais vinte anos para, com distância, se ver o que ali está. Porque não são só esses dois. Todo o resto é importante. No arco entre Halloween e Cigarette Burns, há muitos filmes… Não sei se o Corman fez experiências 3D com o cinema, mas em certa medida o Carpenter está a dar a dimensão 3D ao cinema do Corman. Filmes como Vampires, Ghosts of Mars (Fantasmas de Marte, 2001), The Ward (O Hospício, 2010), são formações anómalas, saturadas, tridimensionais, da ideia de cinema que também encontramos no “ciclo Poe” do Corman.
Se o cinema de Carpenter está do lado do inconsciente, o de Cronenberg está do lado do fantasma. Ou seja, o Cronenberg não estabelece essa ligação directa com o inconsciente que o Carpenter procura e muitas vezes consegue. O seu cinema é mais de elaboração figural, em quadros de figuração – e, portanto, a questão da narrativa, da ficção, é aqui mais importante. Portanto, é um cinema do fantasma, e para mim elabora, de uma forma mais discursiva, aquilo que o Carpenter dá mais em bruto, de forma mais directa. Para mim, continua a ser uma das cinematografias fundamentais. Deste ponto de vista, há um filme que foi relativamente mal recebido, e que eu considero exactamente isto, A Dangerous Method (Um Método Perigoso, 2011), e que para mim é um filme importante. Através da história da psicanálise, o filme trabalha sobre a história do cinema, ou sobre várias histórias e impressões do cinema. De certa forma, fá-lo à maneira de [Pierre] Klossowski na literatura (mas também na pintura e mesmo no cinema) algo presente em Roberte (1979) de Pierre Zucca, que foi feito com a sua colaboração e com a presença da esposa como actriz. É espantoso, um cinema da articulação em quadros, de imagens cinematográficas do fantasma, tal como os desenhos e as pinturas do Klossowski o são em relação à pintura. Para mim, o A Dangerous Method é desta ordem. Aquelas cenas de sadomasoquismo à volta do Jung são polaroids do fantasma, por assim dizer. Ele é um grande realizador do trabalho do fantasma enquanto quadro, de acordo com a definição canónica de fantasma, que vem no vocabulário da psicanálise de Laplanche e Pontalis.
Desse ponto de vista, para mim, são três realizadores essenciais. E falamos destes, mas, se eu trabalhasse sobre o Dreyer, talvez chegasse lá da mesma maneira. E no meio disto tudo não devemos esquecer a importância do Hitchcock…
JB – Já que acabámos por discutir a sua cinefilia a propósito de influências na sua escrita, gostaríamos de que falasse um pouco sobre um cinema à partida muito diferente daquele que tem estado aqui em foco: o asiático, e em particular o chinês, o de Taiwan, e o de Hong Kong, que à partida têm pouco que ver com os universos sobre os quais temos estado a conversar, e que no entanto estão também no centro da sua mundividência cinéfila. Inclusivamente, o Fernando criou há alguns anos uma cadeira na Faculdade de Letras dedicada em exclusivo ao cinema asiático. No âmbito das questões que temos vindo aqui a discutir, onde se situa este cinema? É um satélite ou pertence ao mesmo corpo? Talvez possamos centrar-nos no exemplo do Zhang Yimou, que, no seu estilo limpo, decorativo, bidimensional, é à partida um cineasta muito diferente de tudo o que tem vindo a ser aqui referido. E, no entanto, sei que o Fernando é um defensor do seu cinema, tendo inclusivamente escrito sobre os seus filmes.
São cinemas diferentes. Há uma dimensão sensualista no cinema asiático que é evidente. No cinema de Taiwan isso é muito claro, e mesmo em certos realizadores mais realistas de Hong Kong isso também acaba por ser evidente. Depois, há um determinado tipo de cinema exorbitante que trabalha explicitamente no desfuncionamento dos géneros. É o caso do Takashi Miike e de todos aqueles cineastas que realizaram filmes de terror e de gangsters, muitos deles absolutamente espantosos. Mesmo muito do cinema japonês dos anos 1950 e 1960 trabalha na construção e na desconstrução dos géneros, das tradições da cultura, e isso prolonga-se depois no cinema violento – do gangster ao horror – das décadas seguintes. Portanto, há esse lado de violência e de exorbitação dos géneros no cinema japonês que me interessa.
E depois, o cinema chinês interessa-me por muitas vias. Gosto muito do cinema clássico dos anos 1920, 1930, 1940, na China, por causa de uma certa concepção onírica que existe nele, que tem muito que ver com a própria tradição da pintura chinesa, do tipo de ficções na sua literatura. Tanto a pintura chinesa como a literatura japonesa não se fundam em estéticas da continuidade, como as ocidentais…
JB – Mas fala no carácter onírico do cinema clássico chinês, e, no entanto, o cinema dos anos 1930 é fundamentalmente realista, com uma intensa dimensão política.
Não é tão realista assim. É um cinema cheio de buracos. São quadros mais ou menos realistas, simulacros do real, quadros compostos quase fotograficamente, mas com grandes buracos no meio. Aquelas narrativas estão todas esburacadas, tal como a pintura de paisagem chinesa, aliás. Esses buracos dão, de facto, uma dimensão onírica a esses filmes, próxima até do cinema das atracções. Mesmo o aspecto melodramático, com uma certa continuidade narrativa, funciona por grandes blocos sensacionalistas, construídos em função de clos dramáticos. Os próprios pensadores chineses do cinema diziam isso, que o cinema tem mais a ver com o discurso do sonho e o modelo da pintura do que com o teatro. O cinema dessa época tem uma dimensão lírica espantosa. Quando passa ao sonoro, mesmo os filmes realistas de esquerda, são líricos, cheios de canções. Há uma dimensão lírica pujante. Portanto, o clássico interessa-me muito por aí. Aquela geração que faz a passagem do cinema clássico chinês até ao fim da guerra, e a primeira geração dos primeiros dez anos do estado comunista, é muito interessante, e o Xie Jin, em particular, tem coisas absolutamente espantosas. Se aqueles filmes tivessem sido feitos em Taiwan já estavam por aí nos tops.
Mas passando à quinta geração, daquilo que conheço, o Zhang Yimou é efectivamente aquele que me interessa mais. O que é que eu gosto nele? É um tipo de cinema que procura – e o Zhang Yimou tem vindo progressivamente a afirmar isso – uma espécie de sobrecarga formal, uma elaboração da dimensão plástica e sensacionalista da imagem. Essa dimensão imagética, o uso exuberante da cor, já existia no início, no Hong Gao Liang (Milho Vermelho, 1988), no Ju Dou (Judou, 1990), etc., e desde então o seu cinema tem continuado a fazer isso. Há um filme que aqui passou sem lhe prestarem atenção – e, se calhar, ainda bem que assim foi – que é uma versão de Blood Simple (Sangue por Sangue, 1984), chama-se San qiang pai an jing qi (Uma Mulher, Uma Arma e Uma Loja de Massas, 2009). É um filme espantoso. Por um lado, reconhece uma afinidade com alguma coisa no registo do grotesco, que se fazia na América e que estava nos primeiros Coen. Por outro lado, a versão que o Zhang Yimou faz desse filme de 1984 é muito ornamental, mesmo no sentido do simbolismo chinês, nos termos em que a forma mais elaborada e depurada é figura do real. Não se trata de uma figura do real no sentido mimético, representativo, mas aqui a forma é uma espécie de atalho para o real, um abrégé do real, uma versão simplificada, não realista e não mimética, do real enquanto situação, matéria, substância. É um filme ultra-decorativo do ponto de vista formal, mais ainda do que outro filme espantoso dele, Man cheng jin dai huang jin jia (A Maldição da Flor Dourada, 2006).
JB – Esse talvez seja o filme mais decorativo que vi na vida.
Sim, é isso. Na pintura, lembra aqueles pintores que, depois do impressionismo, voltaram a uma espécie de pós-impressionismo de cores puras e de umas formas muito desenhadas, muito coloridas. O Gauguin, os Nabis, até, em certa medida, aqueles que vêm depois dos impressionistas, e ainda antes do cubismo. É um filme que trata a forma como sinalefa, como hieróglifo. E é por aí, em certa medida, que vem a sua dimensão de real. Por exemplo, achei muito interessante o último filme que passou cá, The Great Wall (A Grande Muralha, 2016).
JB – Pois, eu ia pedir-lhe que falasse um pouco desse filme, que de certa forma já está mais próximo do cinema que discutimos antes. Fui vê-lo em sala por sua recomendação…
É um filme muito interessante. Não interessa se o Zhang Yimou consegue resolver a multiplicidade de coisas que inclui no filme. Não interessa. Ou melhor, a mim não me interessa muito… Mas interessa o trabalho que ele faz no sentido de se ligar a um certo tipo de narrativa heróica. Tem algo que ver com Silence (Silêncio, 2016), do Scorsese, que estreou na mesma altura. São dois filmes diferentes, mas que considero muito curiosos vistos em aproximação. Talvez vocês, que têm tempo e cabeça, pudessem pensar nisso, ler desse ponto de vista o filme do Scorsese, e ver ou rever The Great Wall. O chinês vai buscar elementos à estética ocidental, e o americano faz o oposto. E os resultados são interessantes.
JB – Depois de conversar sobre a sua obra e a sua cinefilia, debrucemo-nos por fim sobre a academia. Diversos professores na área dos estudos de cinema estão na recta final das suas carreiras, tornando inevitável um processo de renovação. Num momento em que a nossa geração é obrigada a lidar com a saída de cena da vossa, torna-se impossível deixar de pensar que, de alguma forma, estamos em desvantagem. Apesar de algumas qualidades, parecemos ter perdido uma espécie de aura que a sua geração tem, e que a nossa não parece poder algum dia vir a ter. Isto talvez se articule com a profissionalização a que hoje temos de nos submeter, e que, de certa forma, domestica a nossa cinefilia e uma certa paixão febril que a sua geração – e em particular o Fernando – em larga medida consegue manter. E, não obstante tudo isso, julgo que o Fernando, mais do que qualquer outro, crê muito nesta geração. Por exemplo, o Luís fazia notar há pouco que convidou dois ex-alunos, bastante jovens, para apresentarem o seu último livro. É um cenário inaudito.
De facto, o problema é essa anunciada mudança não se poder efectuar. Portanto, haver dificuldades institucionais e administrativas que impedem que isso se processe. Porque eu acho que é lógico e orgânico que essa mudança de que fala se processe. E eu creio que uma nova geração, vendo e fazendo as coisas de outras maneiras, deve continuar o nosso trabalho. A mim não me faz impressão nenhuma, acho inclusivamente que deve mesmo ser assim. As diferenças são bem-vindas. É um pouco como o cinema mudo, que teve de mudar para o sonoro. Mas em relação a esta mudança, o que era bom era que ela acontecesse mesmo, que houvesse a possibilidade de se usar as novas tecnologias mentais, conceptuais, também. Para mim, o problema não é a nova geração, o novo gosto e as novas maneiras de fazer as coisas. O problema são as dificuldades que esse novo cenário está a ter em afirmar-se.
JB – Tive a oportunidade de dizer várias vezes, até publicamente, que o Fernando, no seu estilo de escrita difícil, na sua discursividade muitas vezes digressiva, no seu uso por vezes voluntariamente impreciso da linguagem, me parece constituir, na verdade, um exemplo de resistência a uma série de mudanças que se querem instituir na prática do discurso académico. Contrariamente ao que hoje se espera, o seu estilo não é sedutor, a sua linguagem não é limpa, e as suas ideias muitas vezes não são claras. Num cenário em que a tendência é simplificar o pensamento, economizando em palavras e ideias, o Fernando procura sempre almejar à complexidade e até, em certos momentos, ao que eu gosto de chamar um obscurecimento produtivo. Tem consciência de que, para alguns de nós – os tais da nova geração que não podem, por uma série de razões, dar continuidade ao seu modelo –, o facto de continuar a fazer as coisas deste modo representa uma forma de resistência?
Não vejo como resistência. É mais teimosia. É mais persistência do que resistência.
JB – Mas tem consciência de que não faz as coisas da maneira mais protocolar…
Sim, enfim, as coisas são o que são. Cada um tem uma maneira própria de fazer as coisas. Há uma frase do Lacan sobre a paixão. Era qualquer coisa do género: “a paixão – ou o amor, já não sei – é dar o que não se tem a quem não quer receber”. E eu acho que a função pedagógica é da mesma ordem. É dar o que não se tem, porque ninguém sabe tudo… sabe-se umas coisas, tem-se umas ideias, umas impressões, melhor ou pior organizadas. Portanto, dá-se o que não se tem a pessoas que não querem totalmente receber o que se está a dar. E têm toda a razão, porque têm mais que fazer na vida, têm outras ideias, etc. Ponhamos as coisas assim: dentro daquilo que eu posso fazer, o mais que posso é manter esta forma de fazer as coisas, trabalhar o melhor possível dentro desta forma, e não procurar fazer doutra maneira, encontrar outro estilo que eventualmente não teria tanto que ver comigo. Ou seja, isto não é resistência, mas mais persistência. Enquanto me deixarem e tiver condições para o fazer, irei fazendo, da melhor forma possível, nestes moldes. Mas tenho ideia de que tudo isto é muito relativo, que a minha maneira não é necessariamente melhor ou pior do que outras formas de fazer a mesma função. Acima de tudo, acho que devem vir outras pessoas que consigam fazer isto de uma forma mais orgânica e equilibrada.
LM – E não acha que, na sua escrita e na sua pedagogia, também não enforma uma espécie de generoso inconformismo? Nós falámos aqui de várias ideias que bloqueiam por vezes a nossa relação com o mundo e com as imagens, em particular com as imagens do cinema. A questão do gosto, a ideia do bom gosto, aquilo que fica bem gostar, etc. E a própria ideia do belo, porque da mesma maneira que acha que o não gostar de um filme não deve anular a experiência do filme, a ideia baudelairiana de encontrar o belo no horrível é qualquer coisa que também o move, e também me comove como leitor, porque me parece que é uma relação inconformada mas generosa, porque nos permite pensar dessa maneira, e institui modos de relacionamento com o mundo e com as imagens que são mais expansivos. Isto parece quase o contrário da pedagogia mais tradicional. Em certo sentido, o Fernando é anti-didáctico.
No meu trabalho, a sacrificar alguma coisa, sacrifico tendencialmente os bons alunos em relação aos outros. Como não tenho um modelo de filme, também não tenho um modelo de aluno.
Não vejo isso como uma grande qualidade minha, antes pelo contrário. Tenho alguma noção de que, muitas vezes, não faço as coisas da melhor maneira. Por vezes, perco-me na organização do discurso, sou difícil na maneira de apresentar as coisas, porque não consigo dizê-las de outra maneira melhor. E tenho a noção de que há um pouco de loucura em persistir nisso. Essa loucura é relativamente – e só relativamente – justificada com a ideia de que há uma grande generosidade dos alunos. Acredito sinceramente nisto. Uma pessoa que está ali, que se dá ao trabalho – com paciência, com a vida e os problemas e os interesses da vida – de estar ali durante duas horas, para ouvir, com mais ou menos interesse, uma pessoa… Bom, há ali uma abertura! E o professor está à condição de interessar ou não interessar. É um risco. Há uma espécie de persistência, de ideia mais ou menos alucinada, ou com alguma razão, de que, apesar de tudo, apesar de todos os contras, é um tipo de plataforma e de risco que pode valer a pena correr. Até por nós, porque aprendemos imenso. Há alturas em que dizemos disparates, dizemos o que não queremos dizer, perdemos a lógica das coisas. Mas também há alturas em que dizemos coisas que não somos certamente nós que as dizemos. É algum diabinho ou geniozinho em nós que produz aquelas sinapses. Que aliás se perdem, o que também é bom… E se isso acontece por vezes connosco, se calhar não será a todas as aulas, a todo o momento, mas é um pouco como os filmes. Às vezes pode ser que, no meio de tudo, alguma coisa ligue, faça clique. Portanto, isto não é muito pedagógico, e tem todos os riscos, inclusivamente não apresento isto como bandeira, porque sei que os riscos são muitos, e o maior risco é precisamente o de os alunos pura e simplesmente desligarem. E aí não resta nada. É um risco que se corre, que pode acontecer, e que acontece efectivamente.
LM – O que é um bom aluno para si?
Não penso muito nisso. Todo o tipo de alunos me interessa. Sinto muitas vezes que, por esse lado obscuro – que não sou eu que procuro, apenas acontece porque não consigo dizer as coisas bem – posso afastar os alunos mais médios ou mais fracos. Isso é mau porque, no meu trabalho, a sacrificar alguma coisa, sacrifico tendencialmente os bons alunos em relação aos outros. Como não tenho um modelo de filme, também não tenho um modelo de aluno. É tudo muito imprevisível. Há alunos que funcionam muito bem no seu cinema, digamos assim, e que depois não funcionam bem na parte pedagógica e didáctica – e talvez seja isso, eventualmente, o que acontece comigo enquanto professor. Há alunos que gostam imenso de cinema, estão atentos, vêem tudo, e depois têm dificuldades de escrita ou de expressão, por exemplo. Tal como não tenho um modelo de professor, também não tenho um modelo de aluno. Nem quero ter. Nem distingo necessariamente docentes e alunos. Em última análise, tenho uma tendência para a abertura.