Depois de uma passagem pelo IndieLisboa 2017, Gwat mui (Irmãs, 2016) de Tracy Choi volta a ser exibido em Portugal. No Museu do Oriente, encerra o programa do ciclo “Cinema Macau. Passado e Presente”, que continua na Cinemateca. Duas histórias de memórias de amor entrecruzam-se neste filme: a de uma ex-massagista que recorda o seu amor perdido, e a da realizadora que evoca uma Macau de outros tempos.
Gwat mui não começa, porém, em Macau, mas em Taiwan, onde o espectador fica a conhecer a protagonista, Sei Sei. Ela gere um pequeno bed & breakfast na ilha (segundo os créditos finais, em Yilan, na costa leste, uma zona de grande beleza paisagística). Vive com o companheiro, bebe demais e não parece muito feliz. O anúncio de uma morte num jornal leva-a de volta a Macau onde revisitará os acontecimentos que conduziram à sua saída do território.
Sei Sei decide deixar Macau em 1999, quando as ruas se enchiam de gente a celebrar a transferência de soberania para a República Popular da China. No filme, ouve-se ao longe o hino português, mas não se vê qualquer figura do país. A multidão agita bandeiras de Macau e da China e faz coro na contagem decrescente. Mas algo ensombra Sei Sei, que grita e chora. Não a mudança política, à qual parece alheia, mas a separação de Ling Ling e do filho desta.
É na relação de Sei Sei e Ling Ling que o filme se centra. Como espaço, Macau importa, mas é uma importância filtrada pelas vivências de ambas: a sauna-semi-bordel onde se conhecem, o prédio que habitam, as ruas por onde andam, os restaurantes onde comem, e o banco do jardim onde declaram o seu amor. Quando tem conhecimento da morte de Ling Ling, quinze anos volvidos, Sei Sei regressa a Macau. Percorre os mesmos lugares e encontra outros bem diferentes, como o mega hotel-casino onde fica alojada. Vai à procura das pessoas de outrora (o grupo de amigas massagistas, o filho de Ling Ling que ajudara a criar) e descobre que também elas mudaram. “Isto já não é a Macau que eu conhecia”, diz-se a certa altura. Mas ao mesmo tempo que revisita a cidade, Sei Sei tenta recuperar parte do que se perdeu e compreender, finalmente, o que a unia a Ling Ling e o quanto era correspondida.
Gwat mui é um filme quase inteiramente feminino. Realizado por uma mulher, escrito por outra (Au Kin-yee), é protagonizado por um grupo de actrizes. Gigi Leung, famosa actriz e cantora de Hong Kong, dá vida à Sei Sei mais velha; a estreante Jennifer Yu, também de Hong Kong, é Ling Ling; Fish Liew, da Malásia, é a jovem de Sei Sei. Dar todo o protagonismo a mulheres foi uma escolha deliberada da realizadora, que assim continua o seu trabalho anterior em curtas e em não-ficção.
Não é muito comum ter-se oportunidade de ver longas de ficção produzidas em Macau, e só por isso o filme de Tracy Choi é um acontecimento. Enquanto reflexão sobre o espaço e o tempo, é uma proposta bastante interessante.
Não é muito comum ter-se oportunidade de ver longas de ficção produzidas em Macau, e só por isso o filme de Tracy Choi é um acontecimento. Enquanto reflexão sobre o espaço e o tempo, é uma proposta bastante interessante que oferece à maioria do público português algo a que não estará, porventura, habituado: uma visão de Macau sem portugueses. Desengane-se quem vê em Gwat mui nostalgia pela Macau colonial sob administração portuguesa. As referências aos anos 1990 pré-handover, quer nas imagens de arquivo, quer na reconstituição que é feita em boa parte das cenas lá passadas, são uma evocação de espaços quotidianos locais, não de um poder exterior. Os portugueses são apenas as vozes distantes de um hino. A simpática personagem do macaense João Carlos Martinho Braga, que fala em cantonense com as protagonistas, não é de todo uma imagem de Portugal continental/colonial mas de uma comunidade local. A dimensão saudosista do filme é quase sempre dada através da evocação de comida e a sua figura tem uma importância particular pois a banca de bolos de que é proprietário será depois reaberta pela retornada Sei Sei.
Igualmente relevante é a subtil ligação a Taiwan, onde, zangada com Ling Ling, Sei Sei se instala depois de seguir um homem apaixonado por ela. É aí que a encontramos no início do filme. Mas a presença da ilha não é apenas cénica. Há uma certa atmosfera nesta obra que está mais próxima do cinema taiwanês dos últimos vinte anos – onde delicadas histórias de amor LGBT são bastante comuns – do que do mais previsível referencial do cinema da vizinha Hong Kong. Uma frase dita a dada altura no filme, que Taiwan “é como Macau de antigamente”, não deixa de ser intrigante. Tracy Choi licenciou-se em cinema em Taiwan e seria curioso saber mais sobre o quão influente foi essa formação na ilha que, numa entrevista, ela descreveu como a sua segunda casa. Talvez os seus próximos filmes tragam novas pistas.