Há filmes frios que nos exaltam os sentidos e tomam conta do nosso espírito. Por exemplo, os de Stanley Kubrick, os de David Fincher, alguns momentos – poucos, infelizmente – de Michael Haneke. Há filmes frios que assim ficam: gelados como um cubo de gelo. O que se passa com Andrey Zvyagintsev é que se torna cúmplice daquilo que, segundo diz, pretende espelhar criticamente; de uma certa apatia da sociedade russa debaixo da asa de Vladimir Putin. O que se passa é que o seu cinema perdeu a sedução de tempos idos – o da sua longa de estreia, Vozvrashchenie (O Regresso, 2003), filme que tinha a elegância e o mistério próximos do seu herói Michelangelo Antonioni. Zvyagintsev passou a emprestar ao seu mundo – nos seus planos – a frieza e o rigor – a rigorosa frieza – próprios de uma radiografia que não nos permite ler qualquer forma de tratamento.
Estamos (de novo) no cinzento e convulso mundo das relações intrafamiliares – era assim em Elena (2011) e em Leviafan (Leviatã, 2014). Estamos (de novo) dentro deste mundo e sem podermos sair dele. A câmara filma o desamparo e a alienação sentimentais com vaidade. Ela não oferece espaços de habitação ao espectador, porque este percebe rapidamente que o realizador não quer resolver o que mostra, nem mesmo convocar-nos nessa dúvida. Ele concentra esforços em encenar, com requinte, o vazio desesperançado que pontua a existência das suas personagens. Zvyagintsev não gosta delas – e a certa altura, por extensão, sentimos que também não gosta de nós, porque se é verdade que ninguém está bem onde está, nesta Rússia sem aparente salvação, o seu cinema deleita-se, por sua vez, a mimar essa inospitabilidade. No fundo e na forma, “Sem Amor” é, de facto, o título justo. Demasiado justo.
Todo o filme é um bloco de gelo, congela-nos num impasse angustiante. Um impasse que consubstancia a procura frustrante de alguma coisa que valha a pena ser vivida – e sentida – neste mundo.
Num país derrotado, pais execráveis motivam a fuga do seu único filho. Juntam-se os progenitores desavindos para encontrar a criança em fuga? Não propriamente. Com efeito, são as circunstâncias que obrigam o casal a uma coabitação indesejada, fétida, que não pede, não quer – e tem horror à possibilidade que possamos nós, espectadores, encontrar – uma qualquer forma de redenção. Todo o filme é um bloco de gelo, congela-nos num impasse angustiante. Um impasse que consubstancia a procura frustrante de alguma coisa que valha a pena ser vivida – e sentida – neste mundo. Para (supostamente) habitarmos este filme “sem amor”, Zvyagintsev oferece-nos imagens bonitas, rigorosamente encenadas, que acabam por decorar com pompa a apatia das personagens e do seu mundo tão igual a elas. Elas mostram-se – nesta radiografia, neste cinema desalmado, que faz do vazio motivo de vaidade estética – destituídas de humanidade, mas o filme incha na proporção do seu “aprumo estético”. E ficamos ali, mais ou menos esquecidos, a assistir à humilhação: a da câmara na relação com estas personagens, com este retrato da “Rússia de Putin”, que se mostra, certo, mas que se esgota na gratuitidade de quem aponta o dedo para confirmar um problema, um estado de espírito, conservado pelas mais gélidas temperaturas humanas.
Se calhar o problema está em mim, espectador entre espectadores mais generosos com a brutal falta de amor deste realizador pelo (seu) mundo. Se calhar acho que um realizador tem de sentir algum amor – uma forma de paixão que seja – por aquilo que filma. Penso que sim, que, de uma maneira ou de outra, cabe ao cineasta, mesmo um tão orgulhosamente gélido como este, convocar uma qualquer forma de acção – um cantinho “habitável”, não podia haver? Porque “responder a Putin” não se compraz com o acto de elevar a tratado estético a apatia, a “impossibilidade de agir” – e de modo algum isto ainda é Antonioni. Veja-se como umas Pussy Riots estilhaçam o cinzentismo da Rússia contemporânea. Este filme, ao pé delas, da sua acção estilhaçante, soa a desistência. Zvyagintsev não quer verdadeiramente abanar nada, porque odeia sem remédio o mundo que a sua câmara habita. E odeia-nos, espectadores que acreditam no poder redentor ou interpelante do grande cinema, mesmo o mais granítico. Porque digo que nos odeia? Porque me parece que a única coisa que faz passar nas suas imagens “caras”, de “cinema de autor”, é a beleza da “apatia pela apatia”. Todo o filme é como a sequência passada na varanda, em que a mãe, de expressão impenetrável, corre intrepidamente, pisando a passadeira automática. Está frio, muito frio, e ela corre sem sair do mesmo sítio. É aí que o filme fica – nunca sai dessa passadeira gélida, odiosa, que não intima qualquer forma consequente de acção. Em suma, eis uma muito pouco excitante – ia escrever “cobarde” – proposta política escondida por trás de um biombo de boniteza estética “para festival ver”.