Num dos textos mais lúcidos sobre a natureza do “carácter destrutivo”, Walter Benjamin escreve, em Imagens do Pensamento, que “do mesmo modo que o criador busca a solidão, o destruidor tem sempre de estar rodeado de gente, de testemunhas da sua eficácia”. É na duplicidade de Mr. Woodcock (Daniel Day-Lewis), entre o criador e o destruidor, que o filme se baseia e poderia ser um reflexo do próprio cinema de Paul Thomas Anderson.
Este é talvez o seu objecto mais incaracterístico e porém a síntese ideal daquilo que há muito era esperado da parte de Anderson, a terceira via. O que quero com isto dizer é que este é um realizador imoderado, capaz das maiores afrontas como o é Magnolia (1999) – independentemente do clamor da crítica e dos próprios andersonianos, este é, na minha opinião, um dos piores filmes da história do cinema – assim como é capaz de realizar um dos filmes, que julgo ser, um dos mais essenciais na história contemporânea do cinema americano, There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007).
O lado imoderado de Anderson, porém, não advém de uma inconstância ou de um desleixe perante o trabalho, é antes uma necessidade constante de deitar abaixo aquilo que houvera feito de bom para se libertar das fórmulas, dos lugares onde este parece querer inscrever-se como “estilo”. Se o podemos acusar de uma aparente incoerência formal, esta requer uma análise mais detalhada e uma aceitação prévia de que o anterior não é sintoma, mas antes a causa.
Diríamos que todo o enredo são os pormenores escondidos nas bainhas dos vestidos e o vestido a sua aparência mestra. O filme não vive de evidências, porque ele é fantasmático.
Se recuarmos até Boogie Nights (Jogos de Prazer, 1997), será fácil compreender que o seguinte projecto seria Magnolia (1999) ou algo de semelhante calibre. Não porque depois da bonança venha necessariamente a tempestade, mas porque a liberdade de um, obriga o retorno ao formalismo de outro. Pior do que o formalismo de Magnolia (1999), nele existe um verdadeiro duelo entre o academismo e um histerismo levado ao limite. O filme é vítima deste combate insuportável no qual o espectador é colocado entre, porque havendo lá algo em potência, todo o interesse está soterrado de um pretensiosismo intolerável.
Mas será nessa tal potência que nos devemos focar para tomar a restante análise à sua obra e compreender o porquê deste desconcertante último filme. Segundo a lógica por mim usada, Punch-Drunk Love (Embriagado de Amor, 2002), seria uma suposta bonança seguinte. Contudo, a insignificância desse filme, não faz jus ou deve ser tomada em conta, porque é, em boa verdade, um prolongamento, mais moderado, daquilo que havia já em Magnolia (1999). Talvez tenham sido necessários estes dois projectos para que possamos ver a decantação absoluta em The Master (O Mentor, 2012).
Mas se The Master (O Mentor, 2012) é o fim de uma trilogia americana ele é também o filme necessário para que em seguida, Anderson feche uma fase e abra uma seguinte, bastante turbulenta (convenhamos), que é inaugurada por Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014). Talvez Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014) nem abra nada e seja um duplo de Boogie Nights (Jogos de Prazer, 1997), onde a liberdade já não está no corpo, mas antes no espírito. Não o espírito em The Master (O Mentor, 2012), mas a solução última, a química. Uma nação movida a fármacos e a drogas, é este o retrato que de um aparentemente submundo, nos dá o actual estado da sociedade americana. A trip colectiva já não se faz em frente a talk shows motivacionais, mas frente a um frasco de antidepressivos, de uma realidade paralela.
Mas retomando o que identifico como trilogia americana (Boogie Nights – There Will Be Blood – The Master), estes são os vértices pelos quais o cinema de Anderson retratou a sociedade americana. Se Boogie Nights (Jogos de Prazer, 1997) é o filme da liberdade sexual, da potência, é com There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007) que este constrói o outro lado da América, aquele que continua imutável e vive no seu subsolo (tal como o petróleo – sendo que esta ideia é talvez a maior e melhor metáfora do cinema americano sobre a sua própria sociedade). The Master (O Mentor, 2012) vem rematar este retrato com uma desconcertante conclusão, tais unidades colidiram (a liberdade e o poder) e deram origem a um delírio colectivo, sendo esse o delírio agora visível (a personagem de Trump possui contornos próximos à Philip Seymour Hoffman e sua seita, à sua imaginária perseguição).
Chegados aqui, entre altos e baixos numa carreira a que devemos no entanto fazer um saldo positivo, em que aspecto vem este belíssimo Phantom Thread (Linha Fantasma, 2017) colocar tudo em causa? É porque este não é nada daquilo que parece. O filme, tal como o próprio título denúncia, é um fantasma. A ameaça não existe (novamente a psicose a tomar conta do seu universo pessoal), porque chegamos ao fim com a evidência de que todas as suspeitas foram um processo ardiloso de nos conduzir, através do óbvio e dos seus sinais (a montagem é de tal forma inteligente que no início julgamos que Cyril está a dialogar com um psiquiatra, depois julgamos que está a desabafar com o médico que tinha conhecido – e só nesse momento é que este o filma – e no fim percebemos que esta declara o seu incondicional amor a Reynolds), a uma emboscada onde a solução foi essa tal terceira via.
Se já havíamos sido defraudados pelo trailer, onde os elementos da intriga rapidamente são desmentidos pelo início do filme, é depois neste que se dá outro jogo. Aceitar de ânimo leve que fomos enganados, que os dilemas de um amor corriqueiro podem ser o sustentáculo suficiente do suspense, não é fácil. Mas estaremos nós já demasiado empretecidos para que seja necessária uma dramaturgia melodramática para justificar o amor e a necessidade de fazer um filme? Creio que esta é, também ela, a resposta pela qual esperávamos (um anti-melodrama) face a um passado de glória, onde o melodrama foi um dos géneros por excelência de tantos cineastas.
Por isso, vejo neste filme a terceira via, o equilíbrio perfeito entre a liberdade e a desfaçatez de oferecer um objecto assim, a par da mestria com que cada cena é filmada. Não é necessário ser um perito em moda, para reconhecer que cada plano comunga em pleno do universo da alta-costura. Cenas como a sessão fotográfica dos diferentes vestidos, são a apropriação de todos os códigos semióticos da moda e a transformação para uma outra linguagem, a do cinema. Se tal entendimento entre linguagens estivesse sempre a este nível, talvez não teríamos sofrido com a vaga de filmes biográficos sobre a Channel ou Yves Saint Laurent, que em vez de cinema são antes grandes anúncios publicitários travestidos de filmes sem o mínimo de interesse.
A meticulosidade de cada plano é tal (o detalhe mais evidente do estado de perfecionismo a que o pormenor foi levado, é quando este filma os dedos a coserem, com algumas picadelas anteriores. Não há mãos ilesas num trabalho com agulhas), que a própria história parece perder o seu sentido. Mas sem a história o filme não vive. Diríamos que todo o enredo são os pormenores escondidos nas bainhas dos vestidos e o vestido a sua aparência mestra. O filme não vive de evidências, porque ele é fantasmático. Os sinais pairam enquanto ameaça, mas é no olhar atento, tal como a atenção a uma peça de alta-costura assim o exige, que os descodificamos, que eles acabam por se desvanecer, tal como as certezas que, ao longo do amor, adquirimos.