1922. (eu ainda não era nascido.) Salomé tinha dito a Jokanaan: “O teu cabelo é como as longas e negras noites quando a lua esconde a sua face”. (mais tarde a lua esconder-se-á, de facto, e já será tarde demais.) Ele afasta-a com um gesto de braço, brusco e mudo. “Para trás! Não profanes o templo do Deus.” Mas Salomé volta à carga: “A tua boca é como uma jóia de escarlate numa torre de marfim.” Mas não havia nada a fazer, o anjo da morte sempre estivera entre eles. Ela há-de pedir-lhe um beijo, ele recusá-lo-á várias vezes, chamando-a de “filha da Babilónia”. (eu reparava nas jóias iluminadas do seu cabelo encaracolado, no rosto irritado da actriz Alla Nazimova e nos mamilos pintados do aio). Despeitada, Salomé dançará para o tio babado, Herodes, para que, depois de meneares ululantes e véus provocantes, ela lhe possa pedir o que quiser. E ela quis, sabemos, a cabeça do seu querido Jokanaan, numa bandeja.
1974. (eu ainda não era nascido.) Não era a cabeça de Jokanaan que estava naquele saco de sarapilheira. Segundo rezam as lendas cinéfilas eram quilos de bife para atrair as moscas. Numa cena tétrica e comovente, Warren Oates, óculos escuros, alter-ego cocainado do realizador, apunhala desesperado um bloco de gelo e coloca a cachola do Alfredo debaixo do duche, numa bacia, a refrescar. (era o México, estava calor e eu fiquei a ver o vapor a exalar da carne putrefacta.) Também aqui havia um amor perdido, não entre um corpo santo e um corpo possuído pela paixão, como em Oscar Wilde, mas sim entre Elita, uma mulher solene e gasta pelo tempo (alguns confundiam-na com uma puta) e que apenas queria casar e amar o seu Bennie (Oates). Bennie também a amava mas precisava antes de decepar a cabeça do primeiro amor da vida dela, o dito Alfredo, pois isso significava dez mil dólares. Seriam ricos, caso sobrevivessem ao sepulcro e ao anjo da morte (figura balofa, pintada, imóvel de espadalhão na mão) que também, como em 22, parecia pairar entre o casal.
É isto, a cinefilia. Confessar aos mortos como se está triste ou feliz, ou ver na sua imobilidade, nas suas moscas, o sinal de uma vida qualquer.
Com 52 anos de diferença são dois filmes que juntam suas decepadas cabeças em estranho e surreal bailado. Um era um filme mudo de arte (coisa inaudita à época) e que brincava com personagens bíblicas (escândalo), o outro, um filme de baixo orçamento, niilista, violento – o preço a pagar pela possibilidade do seu autor ter o final cut. Sim, o CORTE final era esse cortar literal e simbólico da cabeça, liberta do corpo pesado e controlador dos estúdios. Um bailado de cabeças invisíveis, pois que a de Jokanaan estará sempre envolta num manto – Salomé beijá-la-á finalmente mas sem que a possamos ver, um beijo amargo com o peso da tragédia – e a de Alfredo nunca sairá do seu “esconderijo”, seja ele um caixão, um saco ou uma cestinha de vime. Se a cabeça é o que faz mover, é o corpo que se levanta e anda em tornos destes encefálicos apêndices. É a aura de santidade de Jokanaan que apaixona Salomé e amedronta Herodes e é a cabeça-prémio de 1 milhão, restituição da honra perdida da filha adolescente de um ditadorzeco. Basta pensar na cena logo após o ditador anunciar o prémio pela cabeça. Nela o realizador X junta, no que parece uma micro-sequência de montagem, os carros a sair apressados de casa do ditador, mas também há aviões e cavalos. É este o efeito do ganância pela recompensa, tudo a fazer pensar na busca da cabeça como uma corrida desportiva. é que a nossa cabeça é (mais ou menos) esférica e tudo pode ser um jogo, atribulado, em busca dessa valiosa bolinha.
Mas ainda não tinha falado muito de Herodes. Ele era um sacaninha da pior espécie. Tinha morto o irmão, arrebatado a sua esposa e estava disposto a tudo para obter as carnes da sua sobrinha. Lembrem-se, esta é uma história de amor. Salomé e Herodes são ambos impotentes para assegurar o seu petisco. O realizador Y, com a ajuda de Alla Nazimova (então sua esposa), encenam bem esse dilema. Não há riquezas que valham ao amor e todo o filme é uma loja das tentações, de adereços e brilhos: os cabelos pompons dos criados, anões músicos com cornos de rena, montanhas de diamantes, chapéus gigantes, mantinhas floreadas e cachuchos. “Podes ter metade do meu reino!”, diz Herodes à sobrinha. Mas ela nega-se a toda a riqueza. Só quer aquilo que já sabem, a obstinada. Herodes quer tudo menos decapitar o santo, pois ele percebe a perdição que se segue. Quando, a terminar o filme, ele ordena a morte da sobrinha, assim em maiúsculas “KILL THAT WOMAN!”, puff! Desaparece-nos o seu desejo, esfuma-se. E já só vemos os guardas a rodear Salomé com as suas enormes lanças, em coreografia. (e penso em Busby Burkeley, terminada a teatralidade, em torno de uma jaula onde estava encerrado Jokanaan e a zona do trono do rei.)
Talvez não fosse preciso chegar a tanto para isto.
2018. (eu ainda já sou nascido.) Tenho a cabeça decepada pela minha própria cinefilia. Ela é, no entanto, cabeça de duas faces: a que procura a bússola, em torno de compreender a história, e a que põe a bochecha à mercê do estalo do acaso. Receber imagens directamente de quartos (e ecrãs) escuros, perdido, para sentir randomly, e perceber que os filmes sempre foram feitos aos bocadinhos, nesta espécie de Youtube pré-histórico que são os circuitos da cachimónia. Nós, armados em espectadores de cabeça sem corpo, muito leves, a chorar e a rir frente a ruínas de coisas. A dada altura alguém matou o amor da vida de Bennie e ele acorda com terra na boca e não percebe o que lhe(s) aconteceu. Diz a Elita para acordar e ela nada. Dá-lhe palmadinhas no rosto e ela nada. São dois amantes, Romeus e Julietas prostrados na campa, cheios de pó. Mas a morte para ele só agora começara, pois que ela não acordará jamais.
Bennie, desesperado, começa a “fazer filmes na sua cabeça”. Isto é, começa a falar com a cabeça de Alfredo (que entretanto recuperara) pois que ela é o único símbolo que ainda o liga à sua falecida amada. É isto, a cinefilia. Transportar a nossa cabeça, de um lado para o outro, de cena para cena, de 1922 para 1974, do realizador Y para o realizador X. Confessar aos mortos como se está triste ou feliz, e ver na sua imobilidade, nas suas moscas, o sinal de uma vida qualquer. E depois, quando termina um filme (ou filmes) saímos da sala ou dos limites do ecrã e dizemos para a nossa cabeça – como Oates para a de Alfredo Garcia, depois de chacinar o ditador sanguinário e seus capangas – “Come on, Al, we’re going home”. E nesse regresso a casa dá-se o milagre operado pelo cinema, milagre que é também o deste filme de que vos venho alucinando: o que começou morto, vivo terminará.
(a caminho dos meus pensamentos, depois do “the end”, reparava, rejuvenescido, no esplendor de cada imagem, de cada raccord; e recuperava ainda os mamilos pintados do aio).
Nota: Os links para os dois filmes dançando agarradinhos nesta crónica podem ser visto aqui e aqui.