Será difícil conceber um texto a este filme mais nobre que o de António Guerreiro, publicado no jornal Público a 27 de Outubro, com o título “Ler como quem dança”. Porém, uma leitura mais atenta do primeiro revela o mesmíssimo problema que o filme encerra, o fascínio por Maria Filomena Molder é tal que pouco espaço resta para que possamos falar sobre cinema.
É inegável e justo o interesse que Molder desperta, e o surgimento de um objecto cinematográfico a ela consagrado peca unicamente por tardio. Esse mesmo aspecto parece ser o centro da análise de Guerreiro, ao deleitar-se com Molder por fim eternizada num filme. Mas o dito deleite existe apenas porque Molder existe. O próprio Guerreiro rapidamente se desapega do filme no texto que a ele (supostamente) consagra, porque compreende que a suposta inteligência de Cordeiro a que ele faz alusão no início, ao materializar a abstração da palavra filosófica, é a causa evidente do desinteresse que é Todas as Cartas de Rimbaud (2017).
Mas Edmundo Cordeiro transforma essa sedução e delícia do génio de Molder em meros lugares sem encanto (…) Aqui só existe um génio, quando deveriam existir dois.
O documentário de Edmundo não faz nada com a filosofia ou com Molder, apenas ilustra. As divagações recaem sempre num plano de nuvens quando o tema são as nuvens, ou numa pintura, ou numa qualquer outra ligação preguiçosa de unir pontos, parecendo que nem a lição importante desta benjaminiana ele a soube retirar. A constelação é feita por pontos distantes, pouco óbvios por vezes, que porém revelam figuras maravilhosas. Aqui as linhas pareciam já traços e o que este se limitou a fazer foi apenas repisá-los.
Repisa Molder ao filmar as aulas e repisa a palavra filosófica ao ilustrá-la de modo tão redundante. A palavra aqui não vai invocar nada que não ela mesma. Assim, o filme resulta de um simplista processo semiótico, no qual, por exemplo, a árvore, enquanto significante, surge como árvore enquanto significado. Assim como a figura de Molder não se consegue desapegar do quadro em que ele a inscreve, de professora. E o que Maria Filomena Molder não o é, (e foi), no sentido mais absoluto, é o ser professora. Este paradoxo poderia ser a grande vitalidade do filme, mas mais uma vez o realizador aniquila esta duplicidade da figura na qual a filosofia não se limita ao espaço da aula e prossegue casa adentro – e esperávamos, enfim, ecrã adentro também – para estabelecer dois registos, o de aula em tom doutoral e em grande plano com a figura da professora (aspecto que a própria Molder salientou na conferência dada a seguir à exibição do filme no Doclisboa) e o suposto registo mais intimista, em casa, junto ao caderno onde transcreveu algumas cartas de Rimbaud e onde as mãos dão corpo à voz e optam por secundarizar a imagem da professora. Pois bem, esta duplicidade estanque não existe, porque a intimidade da casa, é também ela criada pela professora. A “dança”, a que Guerreiro se refere e a que palidamente o filme dá a ver, é o movimento ideal de uma figura onde a leitura se desdobra perante a vida.
O que no fim não percebemos no filme são as próprias ligações entre sequências, porque, enquanto as ligações são evidentes dentro das acções que ilustram, o filme, enquanto um todo, é um objecto fragmentado, disperso e sem grande rumo. Filmar Molder por si só não basta e esse foi o erro de Edmundo Cordeiro. Se é certo que poderá suscitar inúmeros (e justos) textos elogiosos sobre a figura, enquanto filme será difícil conceder-lhe algum elogio.
Rimbaud escreveu acerca do génio, que este “é a sedução dos lugares e a delícia sobre-humana dos lugares parados”. Mas Edmundo Cordeiro transforma essa sedução e delícia do génio de Molder em meros lugares sem encanto e onde nem mesmo a figura da infância ou a música redimem aquilo que o filme deveria ilustrar, o génio do cinema. Aqui só existe um génio, quando deveriam existir dois.