Creio, antes de mais, ser necessário observar a singularidade da obra de Rita Azevedo Gomes no actual panorama cinematográfico português. Esta nota prévia justifica-se, a meu ver, pois a tessitura deste filme comunga de um cinema que já não se faz, ou melhor, do qual Rita Azevedo Gomes (talvez) seja a sua última representante. Este cinema de que falo está a desaparecer um pouco por todo o mundo, quer por razões óbvias onde o lugar do espectador cada vez mais se afasta das salas e onde só o mais néscio dos entretenimentos o mobiliza, quer pelo desaparecimento da figura do autor, do cineasta que na Europa surge de forma tão fulgurante na década de 60, aliando o gosto pelo cinema à sua intelectualização profunda.
Em Portugal, o seu exponente máximo viveu na figura de Manuel de Oliveira e é nesta dinastia a que me arrisco colocar Rita Azevedo Gomes. O didactismo deste filme é semelhante ao didactismo de Oliveira em O Dia do Desespero (1992), sobre os últimos dias de Camilo. Um didactismo que não sacrifica o cinema para contar uma história, que não prescinde de um carácter puramente intelectual em oposição à rasura esperta com que alguns objectos literários são decantados e aglutinados para as massas. O trabalho deste filme é, tal como a própria Rita Azevedo Gomes o diz, uma mistura de vários materiais: “à partida, ia ser um documentário sobre as cartas e a relação entre a Sophia e o Jorge de Sena. Mas não está dentro do meu mundo fazer um filme correcto, documental. Já sabia que o ia mudar para qualquer coisa diferente. Nunca pensei ter alguém a representar a Sophia e o Jorge de Sena, e quando comecei a tentar formalizar a maneira de filmar cartas achei que ia ser uma estopada. Apetecia-me uma diversidade de materiais, com imagens tecnicamente bem feitas, outras mais toscas, e tinha uma certa saudade das cores lindíssimas do Super 8, dos carvões do preto e branco. Quis misturar isso tudo”.
O filme que quer “experimentar” tudo (…) revela ser de uma enorme consistência e trabalho, na captura de todas as expressões possíveis entre cinema e poesia.
Esta assemblage de materiais diversos liberta o filme, quer da eventual “estopada” em que poderia resultar a simples explanação das cartas, quer das próprias imagens que poderiam redundar numa ilustração do texto. O que Rita Azevedo Gomes compreende tão bem é que o cinema é também uma forma de “correspondência” entre imagens, sons e textos distantes. O carácter e a inegável influência de Straub e Huillet neste filme, sem no entanto ser deles mera discípula, está na composição frontal com que os participantes são filmados e sobretudo na forma como estes dizem o texto. É importante salientar este aspecto, sobretudo porque falamos de Sena e Sophia, dois prodigiosos oradores e que no entanto não destoam dos restantes.
O filme vive entre dois universos, o da intimidade da casa que corresponde à amizade e o da distância que corresponde às praias filmadas e às águas como limites físicos nos quais a separação se dá. Mas esta relação não é a única no filme, porque o universo de Sophia e de Jorge é também ele diferente. A atenção que Rita Azevedo Gomes dá, através da imagem, é o resultado de um entendimento profundo da singularidade de cada autor. O reino de Sophia é pontuado pelas estátuas brancas, pelas filmagens da Grécia, pelo dia que esta esperava “limpo” em Portugal. Ao contrário de Jorge, sempre em movimento, onde as imagens resultam da efemeridade dos sítios, da sua incapacidade de criar raízes por onde passou. O universo de Jorge, ao contrário de Sophia, não está nas imagens do filme, mas na língua portuguesa. Para Jorge de Sena poderíamos aplicar a forma pessoana de que a língua é a sua casa.
São 19 anos de correspondências, mas são também (e sobretudo) 19 anos de história de Portugal. Este Portugal fascista que Sophia comenta ser “um mundo terrivelmente diferente de mim”, e de que Jorge não pergunta, “porque devo saber mais aqui, que vós sabeis daí”. Estas declarações são o retrato de um regime e a explicação deste forçado afastamento, que levou Sophia à resistência interna e ao exílio de Jorge do seu país. Portugal, nestas Correspondências (2016), apresenta esta dupla caracterização, a de quem está dentro e a de quem está fora. Outra importante duplicidade neste filme, porque quem está dentro (Sophia), vive uma imensa angústia e clausura e porque quem está fora (Sena), vive uma imensa revolta e amargura, revolta e amargura insanáveis, que nem mesmo o fim da ditadura trouxe a aproximação.
Gostaria ainda de salientar a importância das leituras de Jorge e Sophia neste filme, que a par do exímio trabalho de dizer o texto, são lidas em diversas línguas (português, castelhano, francês, inglês e grego). O que Rita Azevedo Gomes faz com o texto destas cartas é de uma enorme plasticidade, obrigando a poesia, esse género (quase) intraduzível por excelência, a adquirir todas as formas possíveis. Não limita a tradutibilidade das palavras portuguesas a imagens ou sons, mas obriga a que estas possuam também outras texturas linguísticas. O filme que quer “experimentar” tudo (e cito a própria Rita Azevedo Gomes) revela ser de uma enorme consistência e trabalho, na captura de todas as expressões possíveis entre cinema e poesia.
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Hoje, segunda-feira (dia 12 de Março), às 19h00 no Cinema Ideal, em nome do À pala de Walsh, Ricardo Vieira Lisboa, na qualidade de moderador, e Luís Mendonça, na qualidade de organizador, vão estar na apresentação de Correspondências à conversa com Bernardo Vaz de Castro, crítico walshiano, e Elisabete Marques, poeta e investigadora académica.