No início do mais recente filme do realizador lituano Sharunas Bartas, Frost (Geada, 2017), dois homens encontram-se à noite, no meio da rua, muito brevemente. Um deles tem a pedir ao outro um pequeno favor: transportar um carregamento destinado a ajuda humanitária, desde a Lituânia até Donbass, no leste da Ucrânia, onde o confronto entre o exército ucraniano e as forças separatistas pró-russas ainda está aceso.
A possibilidade do filme depende, claro, da aceitação do pedido. Rokas, o protagonista, não tem, segundo diz ao amigo, nenhum compromisso para a semana seguinte. A letargia em que Rokas e a sua companheira, Inga, vivem, parece abrir caminho para a curiosidade do jovem rapaz. Da sua expressão nada lemos – é apenas o movimento dos olhos que denuncia a vida. E a nossa fixação naquele par de olhos e na sua claridade espelha a atracção de Rokas por aquilo que mexe, como um animal atraído pelo movimento de outro ou pelo cheiro a sangue.
O movimento mais elegante do filme é o de não nos confrontar excessiva e inutilmente com o que pode ser o horror de uma guerra, horror que só se poderá reconhecer in loco e jamais através de imagens ou de palavras, tal qual como o cheiro de um corpo morto.
No cenário daquelas duas vidas, iguais às de antigas personagens de Bartas, consumidas pelo torpor, pela falta de laços com o passado e de esperança no futuro, como Inga sugere a certa altura, uma viagem até à Ucrânia surge estranhamente como trivial mudança de ares. Não sabem os dois o que vão encontrar e encaminham-se sem saberem, como personagens de um conto dos Grimm, para o covil do lobo.
Rokas segue atraído pela vitalidade da guerra, como se esta fosse uma mera rixa de rua entre dois miúdos: o seu trajecto, as pessoas com quem se cruza, as perguntas ingénuas que lhes faz, mostram-nos isso. A parte mais interessante do filme – a atracção do seu protagonista pelo abismo – desenrola-se paralelamente ao retrato que Bartas pretende fazer da situação política daquela região da Europa.
A visibilidade de filmes como Geada, compreensível pela sua relevância política, parece-me por vezes uma forma de alimentar uma certa condescendência, e de fazer acreditar o público que pode conhecer o mundo através da simples imagem do mundo. Se a importância do impulso documental que de alguma forma preside a este filme não merece ser desprezada, esse impulso parece-me muito limitado enquanto forma de questionamento da realidade.
Geada é um filme um pouco débil, como os seus protagonistas, de tom pesaroso na forma como tenta expor linearmente o cinismo dos homens em relação à guerra. Essa similitude entre a forma do filme e as figuras que retrata poderia ser interessante, mas parece fórmula já gasta, sobretudo na sequência de filmes anteriores do lituano.
O filme contém, ainda assim, elementos interessantes. O seu movimento mais elegante é o de não nos confrontar excessiva e inutilmente com o que pode ser o horror de uma guerra, horror que só se poderá reconhecer in loco e jamais através de imagens ou de palavras, tal qual como o cheiro de um corpo morto. A integridade de Geada depende do modo como se centra não na guerra, mas naquilo que esta é aos olhos de Rokas. Isto é determinante, porque concorda com aquilo que o percurso do rapaz parece sugerir: ele avança para o perigo porque não pode realmente saber o que é o perigo.
O final do filme redime-o em parte. Um certo paternalismo de Bartas dá lugar a um deus ex machina que expõe o erro de Rokas, um erro que mais não é do que consequência da sua juventude. Rokas é temerário porque inconsciente e em última instância desconhecedor do mundo. É o intervalo gigantesco entre a ideia que Rokas tem do que pode ser uma guerra e a materialidade dessa mesma guerra, subitamente tornada tão próxima, a melhor peça do filme.