Esta cobertura incompleta da 18ª edição do MONSTRA – Festival de Animação de Lisboa reflecte a parcialidade doentia e confessa do seu autor. A secção relativa à animação japonesa foi aquela que levou este escriba a interromper a hibernação dos cinemas de rua, sair da tranquilidade da cama, andar à chuva, molhar-se e entrar na sala escura (embaciada pelos bafos e transpirações de vários) para rever conjuntamente, na tela gigante, visionamentos de outrora. Houve, é certo, oportunidade para algumas descobertas (nomeadamente a obra mais recente de Kôji Yamamura), mas toda a nossa empreitada fez questão de afinar pelo diapasão da memória.
Kono sekai no katasumi ni (Neste Canto do Mundo, 2016) de Sunao Katabuchi
Não é muito polémico afirmar que 2016 foi o melhor ano, dos últimos dez, no que à animação japonesa em formato longa-metragem diz respeito. Isto é tão verdade que, dentro da vasta programação consagrada ao País do Sol Nascente do MONSTRA de 2018, os filmes com data mais recente de estreia não ultrapassaram, precisamente, o ano referido atrás. Com efeito, as três melhores animações de 2016 (o festival exibiu duas delas) comprovam que o futuro da indústria japonesa nesse departamento está em boas mãos e recomenda-se. Se Koe no Katachi (Uma Voz Silenciosa, 2016) e Kimi no na wa. (Your Name, 2016), o único ausente do certame, representaram o sucesso crítico e comercial de uma nova geração liberta das sombras do Estúdio Ghibli (a despeito de irritantemente ainda se coroar o cineasta do segundo filme, Makoto Shinkai, como o “novo Hayao Miyazaki” sem perceber que a reverência do primeiro pelo segundo não se manifesta no processo criativo), Kono sekai no katasumi ni é todo um outro caso. O seu realizador, o mais velho dos três, foi próximo de Miyazaki – escreveu alguns episódios da última série de televisão do mestre, Meitantei Holmes (Sherlock Hound, 1984-1985) e era inclusivamente o realizador original de um projecto que mais tarde se veio a chamar Majo no takkyûbin (Kiki, A Aprendiz de Feiticeira, 1989) até Miyazaki, como sempre, concentrar em si todas as responsabilidades e impedir a renovação dos olhares no Estúdio por si fundado – mas, no decorrer da sua carreira, Sunao Katabuchi aproximou-se mais decisivamente (a passo lento, é certo, como nos ritmos respirados das suas películas) à estética de um outro gigante, Isao Takahata.
Kono sekai no katasumi ni partilha, com a obra do realizador de Hotaru no haka (O Túmulo dos Pirilampos, 1988), o mesmo entendimento acerca da matéria animada: o que a caracteriza decisivamente é a sua fragilidade, a rigorosa e manufacturada evanescência que sobrevive às tentativas de fixação de um mundo. Ambos os cineastas animam como se o tornassem essencial (o mundo), coloram como se apagassem o que há de supérfluo nele, chegam mesmo a revelar os traços basilares que figuram e formam as coisas. Transfigurações semelhantes na imagem acontecem na fuga desesperada, em croquis, da princesa em Kaguyahime no monogatari (O Conto da Princesa Kaguya, 2013) ou quando o flash dos bombardeamentos do Japão em Guerra de Kono sekai no katasumi ni esbranquiça a paisagem em redor, rareando a diversidade elusiva, sublinhando os contornos melancólicos e borrando a tinta de que as ruas, as casas e os personagens são feitos. Outra cena, ao ampliar o escopo da transfiguração do desenho, faz precisamente o inverso: o mar de chamas que inunda o céu perigoso dos civis japoneses cria uma imagem mental da Noite Estrelada de Van Gogh… Existe, pois, um sentido agudo de tragédia proveniente do modo como o medium em questão é trabalhado e (des)construído. Esta era a lição de Takahata em Hotaru no haka e é algo que Katabuchi está especialmente atento. Tal como sucedia com os dois irmãos cadavéricos nesse filme, também o corpo indefeso da resiliente Suzu (uma desenhadora, não por acaso) se sacrifica, se mutila e sofre, como se a realidade, consubstanciada no trânsito para a morte, agarrasse pelo colarinho a animação e puxasse as fronteiras do que ela pode mostrar. Debaixo do pretexto da temática e do trauma bélico, este é um mundo revelador dos paradoxos poéticos (no sentido grego de poiesis) de um desenho animado.
Koe no katachi (Uma Voz Silenciosa, 2016) de Naoko Yamada
Naoko Yamada é um nome ignoto entre cinéfilos. A jovem realizadora que se iniciou na indústria de animação com apenas 23 anos (tem hoje 33) é uma das promessas mais sonantes do Estúdio Kyoto Animation (Kyoani), tendo sido responsável por Keion! (K-On!, 2009-2011) uma das séries mais ilustrativas do estilo a que os entendidos na matéria chamam de slice of life. Na cápsula a Kono sekai no katasumi ni (Neste Canto do Mundo, 2016) referi que Yamada pertence a uma nova geração de cineastas que arrisca no formato da longa-metragem sem se preocupar com o legado que acarreta – e quiçá seja essa despreocupação a razão principal de tanta frescura. Koe no katachi, ao contrário das suas duas primeiras películas – Eiga Keion! (K-On! The Movie, 2011) e Tamako rabu sutôri (Tamako’s Love Story, 2014) – não é o culminar (nem o acumular) em longa-metragem de franchises televisivos, mas uma adaptação de um manga que, apesar da origem subsidiária a essoutra forma de arte visual, vale por si mesma. Não há aqui remissões ao pequeno ecrã nem sequelas prometidas numa plataforma qualquer de video-on-demand – e ainda bem! Numa indústria que, salvo raras excepções, entende o cinema de animação como um momento mais luxuoso e narcísico de uma espargata incontável (nos dois sentidos do termo) de estórias e personagens vindas de outros formatos, a primeira longa-metragem a sério da Kyoani e de Naoko Yamada é muitíssimo bem vinda.
Na verdade, este pedido exausto por algo que comece e acabe no mesmo visionamento não se deve confundir com a ausência de um elogio devido, isto é, a subida dos padrões de qualidade que este Estúdio vem trazendo – hoje, depois do encerramento parcial do Estúdio Ghibli, é dos únicos que ainda tem desenhadores da casa, trabalhando a tempo inteiro e todos no mesmo projecto. Portanto, existe um cuidado minucioso e uma delicadeza em Koe no katachi que não são nada alheias ao que podemos encontrar nas séries de televisão da Kyoani: uma espécie de busca por tempos e espaços perdidos, bastante mais comuns na vivência do que na memória e que, portanto, são estranhamente íntimos quando contemplados. Aqui, os enquadramentos de Yamada também não diferem muito das séries que realizou (isto porque sempre quis trazer o cinema para a televisão): um gosto discreto pela obliquidade, por planos imóveis cujas paisagens traduzem estados de espírito; um nível de detalhe quase naturalista (todavia não aplicado à aparência dos seus personagens) presente tanto nos planos gerais como nos planos de detalhe abundantes; enfim, um modo indirecto de chegar às emoções. Concentremo-nos nesta última característica. Toda a narrativa joga com a ideia de uma interioridade a que se chega a despeito da obstaculização de determinações exteriores (neste caso, da fala, já que uma das personagens principais é muda), no entanto, esta finura do não-expresso, de um esgar ou de um silêncio estão também presentes na mise-en-scène. Yamada prefere filmar corpos a caras (apesar de, quando necessário, puxar os limites da expressividade destas), principalmente pernas. Não, não se trata de uma graça, visto que todas as raparigas animadas pela Kyoani têm as pernas ligeiramente tortas (diria, um estrabismo “fofo” das ditas cujas). Yamada descentra o olho da câmara para o solo, lá onde as cinturas e os olhares se intuem. E joga constantemente com o que revela, com o que esconde, e com o que revela escondendo, rendendo-se, no processo, à complexidade de carácter dos personagens que anima. Nem sempre sabemos como eles vão reagir, como pensam (se o que pensam é o que afirmam), o que comunicam as suas pernas e braços descentrados… Sem dúvida, este é o factor que mais contribui para que Koe no Katachi seja um filme sobre “crises existenciais de adolescente” e não ser nada do que qualquer pessoa poderia associar a essa expressão. Apesar da aparência, dos tiques da animação japonesa mais comercial, este é um filme de adolescentes feito por adultos.
Retrospectiva Kôji Yamamura (2011-2017)
Um relógio amargurado que vai parar ao estômago de um peixe bruegelesco num outro continente, dedos roçando as teclas de um piano que precipita caranguejos, uma promenade que sumariza o nascimento de um amor, a sua consagração e os rastilhos do seu fim… Nas imagens elásticas do cinema de Kôji Yamamura a metamorfose é rainha. Não existem átomos sem um processo molecular adjacente e este expande o real, transforma-o através de novas ligações e fusões. Nada é uma só coisa, tudo é devir. Que o comprove Muybridge’s Strings (As Cordas de Muybridge, 2011), a jóia da coroa desta retrospectiva, poetização da vida do fotógrafo inglês Edward Muybridge, obcecado por capturar, “fotograma a fotograma”, as corridas e os movimentos dos animais; inventor do Zoopraxiscópio (uma espécie de percursor do projector moderno) e homicida passional. A perícia de Yamamura aqui consiste em distorcer a sequencialidade das imagens, criar uma espécie de tempo imanente onde várias transformações imagéticas têm lugar. Contar a estória trágica de um dos primeiros responsáveis pela maneira revolucionária como todo o século XX passou a olhar para o tempo não podia ser feito debaixo de um tradicionalismo narrativo, muito menos de um conservadorismo representacional. A mise-en-scène de Yamamura, pela sua plasticidade radical e pelo esquartejamento da causalidade temporal, vai no sentido inverso do esforço de captação do movimento e tempo “naturais” levada a cabo por Muybridge, porém, ela só poderia existir alicerçada no medium do qual o último foi pioneiro. E, no entanto, especulando a partir de um dado biográfico, o realizador japonês aproxima o fotógrafo inglês de si próprio e do seu método surreal. Se a descoberta do Muybridge técnico era a de um movimento composto pela rigidez de múltiplas imagens em sequência, a descoberta do Muybridge que dispara sobre o amante da sua mulher é que uma imagem, uma acção, pode congelar para sempre o movimento incessante do Mundo. Um “fotograma” da vida pode questionar o tempo, impossibilitando-o de rebobinar a película do real. O tempo como unidade irreversível e irrepresentável. Esta coexistência de forças contrárias vai parindo imagens inquietantes que nos remetem para a circunstância de todos estarmos presos às amarras do tempo, ansiando nostalgicamente por nos livrar delas.
As outras curtas-metragens presentes na retrospectiva vão do curioso ao menos recomendável. As estratégias sinestésicas de Begon Bell Crane (2014) abrem novas portas perceptivas a estilos de música heterogéneos que nos assaltam de tão espontâneos. Tanto The Hyuga Episode of Kojiki (O Episódio Hyuga do Kojiki, 2013) como Satie’s Parade (“Parade” de Satie, 2016) utilizam o plano geral para discriminar, dentro dele, figuras e movimentos isolados: o primeiro é uma versão abreviada (e demasiado despachada) de alguns mitos cosmológicos encontrados no Kojiki, uma espécie de livro do Génesis japonês; o segundo opta por ilustrar livremente algumas composições de Erik Satie, apoiando-se em citações do próprio de maneira a mostrar o carácter excêntrico e iconoclasta do músico. São dois exercícios algo limitados pelas técnicas de animação que adoptam, crítica que também poderia ser aplicada a Notes on Monstropedia (Notas na Monstropédia, 2017), bestiário sui-generis com toques borgianos, onde a conjugação de várias palavras inusitadas fazem surgir monstros, monstrinhos e monstrões não menos cómicos que dizem algo sobre nós ao modo da caricatura. Em muitos destes exemplos, a repetição da mesma fórmula e estrutura, apesar da inventividade de alguns casos isolados, deixa-nos um pouco indiferentes em relação ao todo. A propósito, a criação mais recente do animador, Water Dream (Sonho de Água, 2017) é, talvez, a que mais frios (ou fossilizados na indiferença) nos deixou. Uma viagem através das eras geológicas do Planeta Terra poderia ser uma proposta deveras adequada para Yamamura dar aso ao que faz de melhor: explanar o aparecimento da vida e as suas subsequentes fases (de seres aquáticos a terrestres) num estilo de animação sempre em constante mudança. Contra as expectativas, o que nos apresenta é, antes, algo maçudo e estanque que carece dos dotes metamórficos anteriormente vistos em, por exemplo, Muybridge’s Strings.
Sero hiki no Gôshu (Gauche, o Violoncelista, 1982) de Isao Takahata
Rever Sero hiki no Gôshu no grande ecrã foi uma experiência digna de registo. É daqueles pequenos filmes que podem ser usados como casos de estudo de uma obra inteira, de tal modo as idiossincrasias do seu realizador se suplantam a tudo o resto. A adaptação do conto homónimo do escritor Kenji Miyazawa (onde Gauche, um violoncelista posto de parte pela orquestra a que pertence, aperfeiçoa a sua técnica com o auxílio de quatro animais seduzidos pela sonoridade do seu instrumento), prova que, ao longo dos anos 70 com as séries Arupusu no shôjo Haiji (Heidi, 1974) ou Akage no An (Ana dos Cabelos Ruivos, 1979) e culminando neste filme que esteve em produção durante seis anos, Isao Takahata vinha-se fascinando por uma forma de olhar quotidiana sobre as coisas. Este intenso amor por uma horizontalidade narrativa, em que o clímax quase nem se distingue do percurso para lá chegar (relembre-se a conclusão moral deste filme, muito menos marcante do que as visitas dos animais), condenou-o a uma incompreensão pelos seus pares que, apesar de tudo, não chegaram a questionar o seu mérito. O próprio Hayao Miyazaki numa entrevista no livro Starting Point 1979-1996 confessa a distância gradual do seu amigo e compagnon de route nesses anos: “Antes de ele ter mergulhado tão profundamente nos temas que descreviam a vida do quotidiano, nós tínhamos mais coisas em comum e eu tinha mais oportunidades em demonstrar as minhas habilidades.” Segundo Miyazaki, estas diferenças de fundo precipitaram ainda mais a urgência de se tornar realizador, cargo que o próprio afirma ser “tão assustador [que] (…) deveria ser deixado apenas a Isao Takahata”.
Ao observar a expressão compenetrada de Gauche tocando o seu instrumento, rodeado de criaturas falantes mas sem humanos à vista, é difícil não imaginar a solidão romântica do intrépido cineasta, trabalhando num medium muito mais associado à fantasia e à impossibilidade, do que ao rigor maduro do real. É por isso que a componente fantástica do conto de Miyazawa não admite variações de registos e é sempre apresentada no mesmo cumprimento de onda de verosimilhança. Um tanuki percursionista é tão real como o maestro perfeccionista da orquestra, e ambos exercem influência em Gauche, o aprendiz de músico. Ele também nunca duvida da sua sanidade quando um gato bípede lhe pede para tocar Schumann ou quando um cuco afina o canto com o som das cordas do violoncelo. Tanto para o instrumentista como para Takahata, os domínios da fábula e da animação não são escapistas, pelo contrário, são aqueles em que a realidade é mais considerada como meio fundamental de expressão.