Com mais de 100 anos, os filmes de João Anacleto Rodrigues são uma das maiores raridades da coleção da Cinemateca. Não só porque foram mostrados nas primeiras sessões de cinema de que há registo na Madeira, Açores e Canárias, mas também porque representam o maior conjunto conhecido de filmes de um formato atípico dos primeiros anos da história do cinema: o sistema “Joly-Normandin”, que se distinguia por ter 5 (em vez das 4) perfurações laterais por fotograma e, por isso, pelas proporções originais da imagem (ligeiramente mais alta do que larga).

Fotograma do sistema Joly-Normandin
João Anacleto Rodrigues (1869-1948) foi um comerciante e fotógrafo amador madeirense que, em março de 1897, adquiriu um projetor de cinema de 35mm desenhado por dois engenheiros franceses concorrentes dos irmãos Lumière, Henri Joly e Ernest Normandin. Tal como Aurélio da Paz dos Reis, que também tentara primeiro comprar um cinématographe Lumière, Anacleto Rodrigues esbarrou com a interdição de venda dos inventores de Lyon e optou por uma das muitas alternativas que por aqueles anos se podiam encontrar em Paris (Paz dos Reis tinha comprado, quase um ano antes, um kinétographe a George William de Bedts). Infelizmente, a reputação dos dois engenheiros nunca recuperou da associação ao trágico acidente no Bazar de la Charité, em Paris, em 4 maio de 1897, onde dezenas de espectadores perderam a vida na sequência de um incêndio provocado por um erro de manipulação da fonte de luz de um projetor “Joly-Normandin”.
Com mais de 100 anos, os filmes de João Anacleto Rodrigues são uma das maiores raridades da coleção da Cinemateca.
Duas semanas depois, em 15 de maio de 1897, Anacleto Rodrigues mostrou alguns dos filmes que comprara em França no funchalense Teatro D. Maria Pia. Muitos dos filmes tinham sido rodados pelos próprios Joly e Normandin, e ainda por Eugène Pirou, “fotógrafo de reis” e pioneiro do cinema pornográfico, além de outros operadores cujos nomes não ficaram para a história. Os temas repetiam o reportório dos operadores dos filmes Lumière: chegadas de comboios e oficinas de ferreiros, saídas de igrejas e desfiles militares, os principais monumentos parisienses, os efeitos de tempestades marítimas e jogos infantis. As críticas na imprensa local foram elogiosas, destacando a nitidez das imagens projetadas e a ausência de problemas técnicos durante a sessão (naqueles anos, a ausência de complicações era notícia). As sessões prolongaram-se até meados do mês de junho.
Em julho de 1897, Anacleto Rodrigues comprou mais filmes e acumulou os acessórios e peças sobresselentes necessárias para iniciar uma digressão que o levou às Canárias, a várias cidades açorianas, antes de regressar novamente, no final do ano, ao Funchal. Depois destas sessões, fosse pela concorrência de outros projecionistas, fosse pela dificuldade de comprar novos filmes de formato Joly-Normandin e assim renovar o seu catálogo, Anacleto Rodrigues deu por encerrada a sua breve aventura no cinema. Não existe qualquer indício de que alguma vez tenha feito algum filme – tal como o cinématographe Lumière e o kinétographe de Bedts, o projetor Joly-Normandin também podia ser usado como câmara de filmar.
A história destes filmes ainda tem, no entanto, mais dois capítulos. Primeiro, o do trabalho pioneiro do historiador A. Videira Santos que, correspondendo-se pacientemente desde Lisboa com a Dr.ª Maria Helena Araújo (descendente de Anacleto Rodrigues) e com historiadores franceses, conseguiu em 1989 identificar aquela coleção de filmes de formato bizarro e perceber a raridade tanto do projetor como das cópias.
Só em 2005, porém, é que os filmes seriam depositados na Cinemateca pela Photographia-Museu “Vicentes” (Funchal), abrindo-se então o último capítulo desta história que foi o do seu restauro em colaboração com a Filmoteca Española, onde se guardava outra coleção do mesmo formato proveniente do exibidor espanhol D. Antonino Sagarmínaga, contemporâneo de João Anacleto Rodrigues. Entre os dois arquivos contavam-se 63 cópias, 52 eliminando os títulos repetidos. Creio que foi o primeiro restauro digital feito pela Cinemateca. Os filmes foram digitalizados pela Filmoteca Española, que produziu depois um novo internegativo de 35mm e 4 perfurações por imagem, tendo a montagem final e tiragem de cópias sido feita depois no laboratório de restauro fotoquímico da Cinemateca.
Desde o restauro, os filmes já foram mostrados em Lisboa, no Funchal e em Madrid, assim como em alguns festivais de restauro internacionais. Cápsula de um tempo distante, estes filmes continuam a fascinar os espectadores de hoje tanto como os de há 120 anos atrás.
Todas as imagens: col. da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema
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