Antecipando a cerimónia da entrega dos prémios da Academia Norte-Americana este fim-de-semana, destacamos alguns dos filmes com mais nomeações repondo textos escritos à data das respectivas estreias comerciais.
Blade Runner 2049 (2017) de Denis Villeneuve
Todo o grande problema teológico de Blade Runner (Blade Runner: Perigo Iminente, 1982) – e refiro o filme, como poderia referir o texto de Philip K. Dick – prende-se com a fixação de uma fronteira (porque cada vez mais ténue) entre o humano e o replicant. Posto doutro modo, procura-se interrogar sobre o que distingue uma “pessoa humana” de uma “pessoa inumana”. Uma vez respondida essa questão, tem-se como corolário que a “pessoa inumana” será banal produto, vítima dos ditames do mercado, convertendo-se em mão-de-obra escrava e facilmente substituível. Uma pergunta semelhante poder-se-á colocar sobre Blade Runner 2049: é um filme ou simplesmente um produto audiovisual? E acrescido a isto, como se ouve a certa altura no filme, não será melhor para o funcionamento de um produto que este não tenha alma? Villeneuve parece querer o melhor dos dois mundos, criar um produto com alma: um blockbuster multimilionário com as pretensões formais e filosóficas do dito cinema sério. O resultado é um filme interminável, massador e, pior que isso, pomposo – a fazer lembrar o pior de Christopher Nolan.
Não me ouvirão, no entanto, menosprezar a abertura da mise en scène na sequência da panelinha ao lume, nem a mirabolante sequência de sexo literalmente transfiguradora, ou mesmo o espectáculo de simulacros holográficos nas ruínas de uma Las Vegas pós-apocalíptica. Do mesmo modo que nenhuma humano desprezará as partes humanas de uma máquina. E é aqui que se prende o cerne do filme de Villeneuve: estamos nós, espectadores, dispostos a contentarmo-nos com as partes, ou desejamos a totalidade? (…) Diria que a disponibilidade para encontrar e valorizar essas excepções calcula-se na exacta proporção do arejamento do filme. (…) Blade Runner 2049 é um objecto bafiento, consequência directa do mercantilismo da nostalgia que assaca e justifica tudo o que são as sequelas, prequelas, remakes, reboots, spin-offs e demais prolongamentos financeiro-cinematográficos. Se calhar a melhor metáfora que o filme constrói é mesmo a que liga o olho à memória e que se propaga ao longo das quase três horas de duração. No filme de Scott um olho observava o futuro distópico de fogo e ferro logo na abertura, no de Villeneuve esse olho encontra-se fechado, e quando se abra nada nele se reflecte. Um olho que olha o futuro, outro que já nada vê senão a réplica (e a replicant). Tudo aliás se faz à roda dessa ideia de cegueira, que se liga com o apagão digital que terá ocorrido no intervalo entre os dois tomos: o vilão ceguinho, a resistente vesga, a inteligência artificial de olhar negro, o código de barras na retina, o replicant camaleónico e o arquivo fragmentado em forma de berlinde ocular. Villeneuve parece saber que numa empresa desta envergadura quase todo o olhar é mortiço. E explana-o sem pejo, o que é – no mínimo – surpreendente. Ficam-me um par de personagens enigmáticos e Harrison Ford canastrão – como sempre – a desmontar toda a parafernália CGI com a sua analógica (e antológica) fuça rugosa.
Ricardo Vieira Lisboa
Call Be By Your Name (2017) de Luca Guadagnino
A presença Timothée Chalamet (Elio) é fundamental para o filme, pois é ele que nos fica na cabeça, tal como um dia nos ficou Natalie Wood (Deanie) em Splendour in the Grass (Esplendor na Relva, 1961). A inocência do primeiro amor e a sua crueldade, porque este não possui freios, freios que mais tarde, tal como nas palavras do pai, colocamos a nós mesmos e por isso, somos incapazes de sentir, “porque damos cada vez menos”. Neste caso ele deu mais e foi claro que ao dar, revelou as suas imensas fragilidades, o seu academismo e até uma certa pobreza das imagens (sempre demonstrativas) e da sua montagem. Mas contra todas as observações adequadas que podemos fazer a este filme, não será ainda assim mais justo dizer que este é melhor do qualquer pose soberba dos seus anteriores filmes, onde Tilda Swinton é a personificação máxima da sua tentativa de sofisticação, onde o filme existe apenas para demonstrar o seu fascínio pela vivência burguesa, pelo desfile das suas roupas e interiores (mais uma vez, a recorrência a Visconti e o seu consequente esvaziamento)?
Eu creio que sim, até porque este é finalmente um filme de um realizador que se conseguiu ver livre (de certa forma) das referências para com o passado cinematográfico italiano. (…) Poderia ter tido a tentação de repisar Pasolini e o seu Teorema (1968) (aquele que entra no seio de uma família para a destabilizar), poderia ter filmado as estátuas gregas tal como Rossellini o fez em Viaggio in Italia (Viagem a Itália, 1954) (não é de todo semelhante, porque o olhar dele é homoerótico e a homofobia de Rossellini nunca o permitiria a tal), poderia ter adoptado pela crise existencial burguesa de Antonioni (existe a villa, as roupas, as próprias personagens e a sua afectação de classe, mas essa nunca foi a questão do filme) ou mesmo dar continuidade à patética encenação operática de Visconti, mas não, desta vez foi ele mesmo que decidiu escrever Itália pela sua própria câmara. (…) Esperemos então que este não volte ao pastiche que nos tinha habituado até aqui e que continue por esta estrada, que mesmo incerta, dará mais frutos e é sobretudo mais honesta enquanto proposta, do que foi até então o seu cinema.
Bernardo Vaz de Castro
Dunkirk (2017) de Christopher Nolan
Dunkirk (2017) é um filme horizontal, estendido no espaço, mas temporalmente concentrado. O “tique-taque” da música de Hans Zimmer é omnipresente, mas não é mais o “tique-taque” de um relógio que o de um metrónomo. Até os tiros participam na estrondosa e ininterrupta rítmica. Nolan monta o espectáculo da guerra e exalta em pleno filme a sua capacidade para mobilizar os peões ou as peças da grande engrenagem cine-bélica. Ao mesmo tempo, o tempo estilhaça e comprime-se. É mais um gimmick a que Nolan nos habituou desde Memento (2000) e que aprimorou com algum prazer lúdico em Inception (A Origem, 2010). (…)
Pelo ar, pelo mar, por terra. A guerra “joga-se” em todos os tabuleiros. A câmara de Nolan não quer perder pitada, mas também não tem paciência. Quase apetece dizer que também ela não tem tempo para defecar. A jusante da música de Hans Zimmer, as imagens correm, sucedem-se, amontoam-se. Nada se fixa, nem pelo ar, nem pelo mar, nem por terra. Esta é uma estética da saturação, ainda que este seja um filme com poucos diálogos, virtualmente “mudo”. Tão poucas palavras, que ousadia! Mas como explicar tanto ruído? De facto, no lugar das palavras Nolan deixa que o seu filme seja tomado pelo espectáculo estrepitoso da máquina de guerra como máquina do cinema. Não interessam a Nolan nem os seres nem os corpos nem a metafisíca da guerra, ainda que os olhares para o céu pareçam aspirar a esta. Com efeito, entre William Wellman [Battleground (A Grande Batalha, 1949)], Terrence Malick [The Thin Red Line (A Barreira Invisível, 1998)] e até o próprio Steven Spielberg [Saving Private Ryan (O Resgate do Soldado Ryan, 1998)], Nolan sai a perder, por estar sempre demasiado preso a um narcísico embasbacamento com o que consegue fazer com as suas peças. Não é realização, mas logística. Não há personagens em combate ou em retirada, mas peões mobilizados por um director demasiado vaidoso face aos seus muito dispendiosos brinquedos. Da mesma maneira que não é por me gritarem aos ouvidos que ouço melhor, não é por Dunkirk ter muitas e algumas “vistosas” imagens da guerra que este seja vivido como uma experiência da guerra. Foi à distância que o inglês em fuga viu a sua pátria – também eu estive longe de penetrar a guerra ante o matraquear de sons e imagens de Dunkirk.
Luís Mendonça
Get Out (2017) de Jordan Peele
Num dos sketches de Key & Peele, Barack Obama, ao ser apresentado aos colaboradores da Casa Branca, prescinde de Luther como muleta, para se exprimir com base em estereótipos raciais que variam de acordo com a cor da pele do interlocutor. Numa cena fulcral de Get Out, acontece algo de semelhante. Aquando da visita à família da sua namorada branca (Allison Williams), numa festa de recepção, Chris (Daniel Kaluuya) apercebe-se da presença de um único convidado negro a quem se dirige, procurando refúgio face à impositiva whiteness que o cerca. Quando o tenta cumprimentar com um codificado toque de mãos, não é correspondido, pelo que reitera as suspeitas de que algo de estranho se passa com todos os indivíduos negros, incluindo os empregados. Como dizíamos, a cena é fulcral, não só porque cria um novo rumo narrativo, mas também porque é incerto até que ponto Jordan Peele leva a sério as considerações da sua personagem. (…)
Ao contrário das séries cómicas de Jordan Peele, não há laugh track que ajude a clarificar qual o caminho por onde o realizador nos quer conduzir, se pela comédia ou pelo terror, assim exprimindo a maior virtude de Get Out. Ou seja, filmar subtilmente a comédia como se fosse terror e o seu contrário – o terror como se fosse comédia. Como se posiciona o espectador? Entre uma certa ambivalência que é a matriz do melhor cinema de terror. (…) Get Out é uma resposta coerente à deriva esquizofrénica do mundo presente, em que as “fake news” e os “bad hombres” assombram uma realidade alucinada que se apelida de multirracial, decretando a plenitude de direitos para todos, mas em que alguns continuam a contar mais que outros. A “solução final” de Get Out não é o secreto desejo de extermínio em massa, nem a mais moderada separação sistemática imposta através de decretos legais ou milícias populares. O que temos é uma segregação refinada por meio de um procedimento de indução hipnótica em que o “outro”, em resposta à sugestão, age de acordo com a imagem que dele se espera, deste modo controlando a imprevisibilidade do seu comportamento. Por mais que uma vez, é repetido que o pai da família Armitage votaria pela terceira vez em Barack Obama. Será que o primeiro “afro-americano” a ocupar o cargo de Presidente dos Estados Unidos é resultado do programa de sono hipnótico desenvolvido pela família Armitage?
Carlos Alberto Carrilho
Mudbound (2017) de Dee Rees
Este é um filme que existe numa espécie de limbo entre dois planos dissonantes: se visualmente, Mudbound (2017) impressiona pela elegância das suas imagens, plenas de sensibilidade poética, por outro lado, a nível de argumento e arco narrativo é algo cinzento, pouco imaginativo. O filme acompanha a história de duas famílias no interior rural do Mississippi, uma branca (os McAllan) e uma negra (os Jackson), em momentos cruciais e definidores, quer do destino destas famílias, quer da sociedade americana, durante a década de 1940, imediatamente antes e depois da participação americana na Segunda Guerra Mundial. O cuidado extremo na composição detalhada de imagens de enorme beleza – não surpreende que a fotografia de Rachel Morrison tenha sido nomeada para os Óscares, a primeira vez para uma mulher em 90 anos – acaba por perder-se na previsibilidade de uma história difusa, particularmente no triângulo entre os dois irmãos da família branca e a esposa de um deles, e a relação destes com o seu pai.
Se esta dinâmica intra-família é o aspecto menos conseguido de Mudbound, a coabitação entre as duas famílias consegue retratar de forma empática as complexidades das relações de poder e dos diferentes graus de racismo enraizados naquela comunidade-sinédoque. O irmão mais novo dos McAllan e o filho mais velho dos Jackson regressam da guerra (da qual vemos apenas breves instantes, e nunca o inimigo, mas apenas salpicos de sangue dos companheiros perdidos, num dos exemplos do tal cuidado estético) e acabam por formar uma relação de amizade, marginalizados depois de tudo que viram e repelidos por uma sociedade parada no tempo – é o desalento da ideia de regressar a casa e não encontrar lar. Nada de muito novo mesmo assim, mas é neste encontro entre perspectivas diferentes, forçadas assim a habitar o mesmo espaço físico e emocional, tal como acontece também com as figuras maternas de cada família, que o filme encontra alguma esperança. O recurso ocasional a voice-overs introspectivos de diferentes personagens dão um toque malickiano ao filme, e este parece por momentos aproximar-se de um tragédia faulkneriana , antes de desvanecer-se noutro rumo mais previsível e menos ressonante. Fica no entanto a promessa de uma realizadora, que depois de um pequeno filme de estreia [Pariah (2011)], mostra aqui suficiente ambição para reclamar atenção no futuro.
João Araújo
Phantom Thread (2017) de Paul Thomas Anderson
Chegados aqui, entre altos e baixos numa carreira a que devemos no entanto fazer um saldo positivo, em que aspecto vem este belíssimo Phantom Thread (Linha Fantasma, 2017) colocar tudo em causa? É porque este não é nada daquilo que parece. O filme, tal como o próprio título denúncia, é um fantasma. A ameaça não existe (novamente a psicose a tomar conta do seu universo pessoal), porque chegamos ao fim com a evidência de que todas as suspeitas foram um processo ardiloso de nos conduzir, através do óbvio e dos seus sinais (a montagem é de tal forma inteligente que no início julgamos que Cyril está a dialogar com um psiquiatra, depois julgamos que está a desabafar com o médico que tinha conhecido – e só nesse momento é que este o filma – e no fim percebemos que esta declara o seu incondicional amor a Reynolds), a uma emboscada onde a solução foi essa tal terceira via. Se já havíamos sido defraudados pelo trailer, onde os elementos da intriga rapidamente são desmentidos pelo início do filme, é depois neste que se dá outro jogo. Aceitar de ânimo leve que fomos enganados, que os dilemas de um amor corriqueiro podem ser o sustentáculo suficiente do suspense, não é fácil. Mas estaremos nós já demasiado empretecidos para que seja necessária uma dramaturgia melodramática para justificar o amor e a necessidade de fazer um filme? Creio que esta é, também ela, a resposta pela qual esperávamos (um anti-melodrama) face a um passado de glória, onde o melodrama foi um dos géneros por excelência de tantos cineastas.
Por isso, vejo neste filme a terceira via, o equilíbrio perfeito entre a liberdade e a desfaçatez de oferecer um objecto assim, a par da mestria com que cada cena é filmada. Não é necessário ser um perito em moda, para reconhecer que cada plano comunga em pleno do universo da alta-costura. Cenas como a sessão fotográfica dos diferentes vestidos, são a apropriação de todos os códigos semióticos da moda e a transformação para uma outra linguagem, a do cinema. Se tal entendimento entre linguagens estivesse sempre a este nível, talvez não teríamos sofrido com a vaga de filmes biográficos sobre a Channel ou Yves Saint Laurent, que em vez de cinema são antes grandes anúncios publicitários travestidos de filmes sem o mínimo de interesse. A meticulosidade de cada plano é tal (o detalhe mais evidente do estado de perfecionismo a que o pormenor foi levado, é quando este filma os dedos a coserem, com algumas picadelas anteriores. Não há mãos ilesas num trabalho com agulhas), que a própria história parece perder o seu sentido. Mas sem a história o filme não vive. Diríamos que todo o enredo são os pormenores escondidos nas bainhas dos vestidos e o vestido a sua aparência mestra. O filme não vive de evidências, porque ele é fantasmático. Os sinais pairam enquanto ameaça, mas é no olhar atento, tal como a atenção a uma peça de alta-costura assim o exige, que os descodificamos, que eles acabam por se desvanecer, tal como as certezas que, ao longo do amor, adquirimos.
Bernardo Vaz de Castro
The Post (2017) de Steven Spielberg
“Mantenham-se fiéis à história” deve ser um dos conselhos mais repetidos nos cursos de jornalismo, e imagino, um mantra também em certas escolas de pensamento no cinema americano. Esta dedicação aos factos e a ligação entre o jornalismo e o cinema é evidente de várias formas em The Post, onde a narrativa ocupa o lugar central, no que é talvez o melhor filme de Spielberg desde Munich (Munique, 2005). Desde logo porque afasta-se de um certo academismo convencional e desinspirado que marcara algumas das suas mais recentes obras, como Bridge of Spies (A Ponte dos Espiões, 2015), Lincoln (2012) e War Horse (Cavalo de Guerra, 2011). Aqui o típico sentimentalismo cénico de Spielberg dá lugar a uma urgência e a composição das personagens ganha espaço para complexidade até nas personagens secundárias. Este pode ser considerado uma prequela a All the President’s Men (Os Homens do Presidente, 1976) de Alan J. Pakula, mas apenas no contexto histórico, já que os dois filmes têm objectivos e interesses diferentes: se o filme de Pakula é um brilhante exercício sobre o trabalho de investigação jornalística, tratado como um filme de suspense, no filme de Spielberg o propósito é diferente, já que não é realmente sobre os Pentagon Papers ou a fonte dessa histórica “fuga”, Daniel Elsberg – sobre essa história recomendo o documentário The Most Dangerous Man in America: Daniel Ellsberg and the Pentagon Papers (2009) – mas sim sobre a decisão em publicar ou não essa história, a necessidade de o fazer e todas as consequências à volta dessa decisão.
Aqui o trabalho de pesquisa fica relegado para segundo plano, apenas aparece a espaços na personagem interpretada por Bob Odenkirk na procura pela fonte da história, ou quando o estagiário é enviado para Nova Iorque apenas com o dinheiro para comboio, ou seja o filme não é sobre juntar as peças de um puzzle, como por exemplo em Spotlight (2015). Esta é aliás a história não do jornal que deu a notícia em primeira mão, mas sim do jornal que foi mais uma vez ultrapassado – e o desafio é precisamente tornar essa história cativante. The Post é assim um filme sobre relações, de poder (intimidação de um mais forte, o Estado, sobre um mais fraco, a imprensa), lealdade (perante colegas e princípios), e sobre o tratamento da informação (o compromisso de publicar uma história e as implicações negativas de o fazer). Ao colocar o foco nas personagens do editor (Tom Hanks) e da proprietária do jornal (Meryl Streep), Spielberg procura humanizar a hierarquia pela qual a informação e as decisões passam, numa situação histórica de definição de fronteiras de liberdade de imprensa e interferência estatal, sem deixar os toques spielberguianos de lado (os planos da entrada de Streep em cena na sequência do pequeno-almoço e da primeira reunião; a repetição da entrada de Hanks na casa de Streep; a secretária do repórter a tremer com o inicio das máquinas), mesmo que caia por vezes na tentação de beatificação das personagens. Spielberg dá algum relevo também à condição feminina na década de 70, em particular à forma como as mulheres eram desconsideradas na altura de tomar decisões, nunca ouvidas, com os planos fechados sobre Streep sozinha numa sala rodeada de homens. A personagem de Streep, tal como o seu jornal, passam o filme à procura de uma voz própria, do seu lugar na história. A verdade é que este é um filme eminentemente político, não só pelos paralelos com a situação presente na América, mas mais importante, porque retrata um período conturbado mas no qual a imprensa era capaz de fazer a diferença, de abalar a sociedade de forma a que as pessoas saíssem à rua, e Spielberg parece apelar a esse espírito, na esperança de alguém poder fazer a diferença.
João Araújo
The Shape of Water (2017) de Guillermo del Toro
De certa forma, pode dizer-se que parte da carreira de Guillermo del Toro – os projectos mais pessoais, pelo menos – têm sido a resposta aos seus ímpetos de grande fan boy do cinema de género. El Labinto del fauno (O Labirinto do Fauno, 2006) era uma entrada de cabeça na toca do coelho do cinema fantástico; Pacific Rim (Batalha no Pacífico, 2013) brincava com monstros godzillescos e robots transformers; Crimson Peak (Crimson Peak: A Colina Vermelha, 2015) recriava-se no glamour gótico das casas assombradas e das velas de chama fantasmática. Agora é a vez da aura dos monstros da Universal dos anos 50 e os códigos daquilo que significa(va) ser monstruoso, numa América do pós-guerra. Esta lista, embora não exaustiva já dá para perceber que o cinema de Toro se sente bem no papel da reescrita, do fazer o que foi feito, encontrando a nesga de espaço para a sua voz autoral. Como dizia, Shape of Water é uma história de amor líquida. Mais concretamente uma muda e um homossexual (com a ajuda de uma negra) que raptam uma criatura anfíbia de um laboratório secreto em pleno ambiente de guerra fria russo-americano. Quanto mais poderemos nós querer sobre o tema: “A Discriminação”? Segue-se empatia, comunicação não verbal, a muda apaixonada enche a banheira de sal e o amor consuma-se. Mas… ela tinha enchido a casa-de-banho de água e, nos eflúvios do prazer “inter-criatural”, começa a pingar cá em baixo, exactamente na boca aberta do espectador adormecido na sala de um cinema, situado no rés-de-chão do prédio onde tudo acontece. Momento decisivo pois que literaliza aquilo que sucede de mais único no filme de del Toro. É a nostalgia pelo poder encantador do cinema (e da imagem televisiva) – quer seja, dando-nos pedaços de musicais de Alice Faye, das séries Bonanza ou Mr. Ed, quer quando a muda e o lagarto galã dançam apaixonadamente em momento Ginger Rogers/Fred Astaire – que, ao mesmo tempo que vai tecendo com minúcia uma América puritana, cheia de aspirações de grandeza e personagens ambiciosas e sinistras, vem também pingar no nosso imaginário, acordar-nos do pastelão e da seriedade.
Se Crimson Peak é o filme vermelho de del Toro, Shape é o seu filme verde. (Tudo é verde, das paredes da casa de Sally às tartes de lima que pintam a língua.) E se naquele era o ar e o vento (que enfunavam a cortina e apagavam a vela) os elementos centrais, aqui essa leveza é líquida e transbordante e assume múltiplas formas consoantes os recipientes que a contêm. O que quero dizer com isto é que The Shape of Water é um filme que, ao mesmo tempo que nos faz querer acreditar numa certa grandeza humana e familiar do poder maravilhoso do cinema, acena com o universo meloso de Splash (Splash, a Sereia, 1984), ou com o mundo de Jean Pierre Jeunet. A casa de Sally vem do espaço cartoonesco de Delicatessen (1991) e a própria personagem da muda tem algo de Amélie Poulain entristecida, ou se quiserem, de Bjork a cegar na fábrica de produtos líricos, marca von Trier. Sim, e já que estamos nisso, não era escândalo nenhum tomar a banda sonora de Alexandre Desplat pelo delicado Yann Tiersen. Mas claro, face a este delicodoce, o cineasta mexicano toma as suas distâncias de ironia, veja-se o plano das duas gotas de chuva no vidro de um autocarro, a dançar ao som de La Javanaise.
Carlos Natálio
Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (2017) de Martin McDonagh
Poucos minutos depois de Mildred (Frances McDormand) tomar a resolução mental que dá título e mote ao filme de Martin McDonagh, e já no escritório da agência publicitária, dá-se um momento de enorme simbolismo. Enquanto Mildred e o publicitário afinam, com humor, a “legalidade” das palavras a projectar nos cartazes, um grande plano (subjectivo, de Mildred) abate-se sobre um insecto que, no parapeito da janela, esperneando, se tenta desesperadamente virar ao contrário e retomar o seu caminho. A sua pequenez e fragilidade, de um lado; o olhar do gigante humano, do outro. Assim que fica definido o conteúdo e o pagamento dos cartazes, Mildred aproxima-se da janela e dá uma pequena ajuda ao insecto, virando-o. Nesse preciso momento, o publicitário diz-lhe que o dia combinado para a afixação dos cartazes corresponde ao Domingo de Páscoa. “Melhor ainda”, responde Mildred. Num filme que se inicia in medias res, depois de um assassinato do qual nunca temos, inteligentemente, vislumbre algum (resistindo a essa tentação de construir flashbacks detectivescos) – e o filme só ficaria a ganhar ainda mais em tensão se ao espectador não fosse dado nunca a ver o rosto da vítima –, a cena acima descrita, uma das primeiras, estabelece, desde logo, um jogo entre vida e morte, entre fortes e fracos, abusadores e abusados. Entre passividade e solidariedade. Mildred não mata o insecto, tão-pouco – note-se – o ignora: ajuda-o a sobreviver, ao mesmo tempo que rejubila por ser no dia da ressurreição de Cristo que verá o caso da sua filha, bem assim, ressuscitado (e a partir do momento em que decide afixar os cartazes, ela própria, Mildred, também “ressuscita”, emocional e civicamente). Ela sabe que, só com aquela “acção directa” (a afixação dos cartazes), poderá, se não trazer efectivamente a sua filha do mundo dos mortos para o dos vivos, reavivar a investigação do seu homicídio, dar vida a um assunto esquecido, morto.
É esse o acto que espoletará a convulsão total desta vilória de uma América só pretensamente “rural” e “interior”, pois que os problemas (racismo, misoginia, homofobia, abuso policial, violência doméstica) que nela persistem são, afinal, os mesmíssimos da América urbana e sofisticada. A imagem perfeitamente anódina e a banda-sonora perfeitamente tenebrosa (tanto na sua omnipresença como na escolha das composições propriamente ditas) não chegam, felizmente, a ter força suficiente para apagar o que de melhor Three Billboards Outside Ebbing, Missouricarrega – desde logo, um genuíno e impressionante cuidado com a elaboração das personagens, homens e mulheres de carne e osso, cheios de cinzentos e cruzes, capazes de nos arrancarem uma gargalhada para, logo a seguir, nos fazerem sentir o maior desprezo. Ainda: não deixa de ser irónico que o padre – a Igreja Católica – seja liminarmente posto fora de cena (literalmente, não mais o vemos) num filme que lida, do princípio ao fim, com um topos vincadamente cristão: o perdão. Não tanto a redenção, porquanto esta envolve, sobretudo, uma busca interior, eu-comigo-mesmo. Antes o perdão, relação hetero-subjectiva, de alteridade, eu-e-o-outro – a mãe da vítima que perdoa o chefe da polícia incompetente; a mulher que perdoa o marido violento; o publicitário que perdoa o polícia abusador; o polícia que perdoa a mulher que quase o matou (ainda que involuntariamente) no fogo posto na esquadra. Muitos foram os que se lembraram de Unforgiven(Imperdoável, 1992), de Clint Eastwood, a propósito deste filme, mas é precisamente o oposto aquilo de que ele trata… Forgiveness.
Francisco Noronha