“O riso é mais divino. É mesmo mais indecifrável do que as lágrimas”, escreve Georges Bataille no romance inacabado Ma mère. Para o autor francês, a vida não tem sentido, por isso, devemos rir dela. O riso é a expressão mais aberta de uma verdadeira existência no mundo, de um verdadeiro embriagamento com o mundo. Em O Ânus Solar, Bataille adensa esta ideia: “O mais afortunado seria confiarmo-nos de repente à sorte: por exemplo, acreditar ou até fingir acreditar que o mundo, não existindo aqui para ser conhecido pelo homem, existe para o homem se embriagar com ele”. Aqui, e em esboço, está contido o fim e o princípio de Que le diable nous emporte (Que o Diabo nos Carregue, 2018), um dos filmes mais cruéis e divertidos de Brisseau, um falso drama e uma falsa comédia sobre o feminino, o sexo, o cosmos e, rindo, rindo alto, uma qualquer ideia de Deus ou de divino. Uma ideia, aliás, que se concentra, num movimento centrípeto, no interior de três apartamentos. Como se Brisseau abdicasse de vez da potência estética e transcendente da paisagem para se concentrar definitivamente nas infinitas possibilidades das quatro paredes… da casa? Não, claro que não: da mente humana – ia escrever da “mente feminina”, mas recuei. É nela, através dela, que os muros caem, as personagens levitam, ultrapassando a lua, o sol e a via láctea. Até que, com estrondo, o tal riso último – o riso dos risos – pare a acção, roube o movimento às imagens. Até que a boca goze na cara do universo.
Algo mudou desde que, como um velho leão ferido, Brisseau se retirou para o seu apartamento sem saber que esperava a vinda de uma “rapariga de parte nenhuma”. A sua casa era a primeira personagem, verdadeiro covil cultural repleto, até ao tecto, de livros, DVDs, cassetes e cartazes que vinham levantar o véu sobre o seu próprio “museu imaginário” – Rohmer, Hitchcock, Ford, Kubrick, Walsh… O universo interior de Brisseau era posto a nu – há mais eloquente auto-retrato que a casa em que vivemos e que a nossa colecção de livros e filmes, e que o modo como a oferecemos, (des)arrumada, à vista dos nossos visitantes? Essa auto-revelação significa um pôr à superfície de tudo, sem a ferocidade dos seus primeiros filmes ou o aprumo estético mais característico das obras da sua maturidade, de Noce blanche (1989) até à sua “Trilogia dos Tabus Sexuais”, composta por Choses secrètes (Coisas Secretas, 2002), Les anges exterminateurs (Os Anjos Exterminadores, 2006) e À l’aventure (À Aventura, 2008). O digital permitiu a Brisseau esse recolhimento ou foi esse recolhimento que lhe permitiu o digital? É um pouco a história do ovo e da galinha. O que interessa reter é que o realizador de De bruit et de fureur (Do Barulho e da Fúria, 1988) e de Céline (Celine, 1992) desceu à terra, está menos furioso e agora plenamente focado na cura. Ele é como Flaubert e as suas personagens femininas, ou seja, ele é as suas personagens femininas. E – vamos estar sempre a desenhar círculos aqui – as suas personagens femininas são as suas feridas, uma brecha através da qual acedemos à crueldade de um passado que não pára de assombrar, na mente e no espaço. Já antes o cinema de Brisseau falava em processos regenerativos parafreudianos, iniciados pelo ensino, pelo amor e pela magia. Mas só agora o seu cinema se demora seriamente, actualizando-se num tempo presente quase televisivo, nesse processo de cura.
Que le diable nous emporte é produzido por um processo de redução pleno de mistério, erotismo e vertigem, o que só vem provar que o cinema pobre deste “Brisseau digital” tem muitas razões que a razão desconhece.
A primeira protagonista – a mulher mais velha que encontra o telemóvel perdido que vai (des)encadear a história do trio feminino atravessado por “lágrimas e suspiros” – é, descobrimos cedo, alguém que está à espera de dias melhores. Ela vive com um trauma que irá partilhar com as suas duas amigas, numa longa sequência que nos remete para um Eyes Wide Shut/Choses secrètes que é já “só palavra” – graças àquele(s) filme(s) podemos encenar na nossa cabeça os rituais e sevícias que aquela descreve sem que, para lá das palavras, Brisseau nos faculte imagens. Ela busca a cura através da amizade, mas também da criação, realizando instalações visuais – algures entre a estética do screensaver e o musical de Kubrick, 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968) – que “embelezam o sexo” numa coreografia cósmica de uma horrorosa beleza. A dona da casa, que lhe dá guarida por compaixão, descobre, por sua vez, o amor da sua vida num encontro que nem nas estrelas estava escrito. A dona do telemóvel, jovem libertina que prefere realizar vídeos eróticos com o telemóvel a tirar inocentes selfies, vai provar o “veneno da cura” no andar de cima, junto do tio Tonton, homem que fura o eixo espaço-tempo durante as suas sessões de meditação. Enfim, nunca estivemos tanto, e tão intensamente, no instante total, sublime e risível – quão bem casam o ridículo com o sublime em Brisseau neste momento – da regeneração. De quem? De quê? Regeneração do corpo e da alma, pelo sexo e pelos sentimentos, pela mente e pelo tacto. Claro que é o Diabo que carrega, até porque rir é o melhor remédio aqui.
As imagens são arcaicas, toscas, foleiras, e a escrita deixa tudo à mostra, por vezes de modo desajeitado, como uma telenovela tétrica e soft porn sobre Eros e Thanatos. Mas essa é a graça de um filme que é todo ele de interiores e que pouco trabalha as “boas apresentações”. Que le diable nous emporte é como um remake caseiro da obra-prima maior de Brisseau: uma espécie de Céline indoor que pende menos para o espanto que para a gargalhada, que habita a palavra mais do que a imagem, que faz do digital espaço disperso de remissões, micro mise en scènes com ou sem chroma key – o manto de Verónica é verde! -, para o universo do sexo ou para o sexo do universo. À proposta pomposa de transcender o espaço e o tempo, Brisseau responde a si mesmo com um dos filmes mais requintadamente pobres, doces e perversos, engraçados e tenebrosos, eróticos e gozões que existem à face da Terra. O riso final é a resposta perfeita à nossa própria estupefacção: Brisseau levita, e faz levitar, com o pouco que tem. Um cinema reduzido a tudo o que pode ser, um tudo-nada que nos pode horrorizar – a estética screensaver – ou enlear – o 2001 revelado na nudez e fra(n)queza do gesto, e pela perfeição induzida pela música siderante, retomada de Céline, de Georges Delerue. Que le diable nous emporte é produzido por um processo de redução pleno de mistério, erotismo e vertigem, o que só vem provar que o cinema pobre deste “Brisseau digital” tem muitas razões que a razão desconhece.