Como definir essa argamassa, bem lassa, que é o cinema português? Como na cidadania, se nasceu em Portugal deverá ser português. Essa ideia de “filme português”, o mais abrangente possível, nada ajuda na exercício da descrição desse largo manancial de títulos. Várias têm sido as propostas de categorização deste universo, e cada uma pecou por querer impor um leitura (ora estética, ora histórica, ora ideológica, ora económica) que pela sua própria existência favorecia a elevação de uns quantos às custas do apagamento doutros tantos. Num artigo do (cronista walshiano) Paulo Cunha para a revista Aniki, intitulado Para uma história das histórias do cinema português, problematiza-se esta constelação de olhares tendenciosos sobre o cinema português e conclui-se que “a prática historiográfica necessitava de estar em permanente revisão (…), precisa ser atualizada em função de novas fontes e testemunhos que vão sendo recuperados ou valorizados. É necessário e urgente rever as fontes no estudo da história do cinema português, questionando ideias-feitas ou mitos instituídos pela crítica ou por escritos sobre cinema produzidos por autores “comprometidos” com o próprio objeto de estudo.”
Uma estratégia várias vezes utilizada (e que é mais estética do que histórica, ainda que uma e outra coisa se fundam) é a de olhar o cinema português através das lentes graduadas da poesia. Uma opção que está intimamente ligada com a velhinha e cansada oposição entre cinema de autor e cinema comercial (e que só recupero aqui por me ser útil à argumentação). O privilégio da forma, nuns, por oposição ao privilégio da narrativa, noutros. Quem argumenta por esta via – e são muitos, Paulo Rocha, João Mário Grilo, João Botelho, Jorge Silva Melo – procuram no cinema uma continuação de uma certa erudição histórica que as outras artes parecem configurar. Assim fala-se na nação de “poetas e cronistas”, refere-se a escola portuguesa da pintura do Século XV e XVI, citam-se os retratos de Columbano, e trinta por uma linha. Tudo para garantir que o cinema português é tendencialmente assim ou assado, ou melhor, que este só revela o seu potencial originário quando vai ao encontro dessas correntes histórico-místicas do “sentir português”.
O cinema de Manuel Mozos não é alheio a esta última perspectiva, não fosse o realizador também conservador no Arquivo Nacional da Imagem em Movimento e ocasional programador da Cinemateca (foi o responsável pelo recente ciclo dedicado aos novos autores do cinema nacional, ciclo de enorme envergadura que descreveu minuciosamente o panorama da última década e meia de produção nacional). Mesmo como realizador o seu objecto de estudo foi, várias vezes, o “cinema português” (nas suas correntes, na história dos seus modos de apresentação, de distribuição, de produção, na história das suas representações, as suas mitologias e, também, as suas mitificações): Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista (1994), Cinema Português? (1997), Cinema: Alguns Cortes I, II e III (1999, 2014, 2015), Olhar o Cinema Português: 1896-2006 (2007), Tóbis Portuguesa (2010), João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que eu Amei (2014) e, nem mais, nem menos, A Glória de Fazer Cinema em Portugal (2015).
É na decadência que o olhar de Mozos vê florir uma memória.
Este olhar, sobre a história, e sobre o passado, é talvez aquele que melhor define a obra de Mozos. Olhar esse que se materializa nesse filme-súmula: Ruínas (2009). Escrevi, sobre o filme dedicado a Bénard da Costa, que Mozos havia retratado os filmes da vida do director da Cinemateca (na sua materialidade, de película, com perfurações, banda de som, correndo numa moviola) como “contentores de amor“. Objectos onde se depositava qualquer coisa de transcendente; sobre a sua superfície. O cinema de Mozos parece sempre interessado nisso: no que se depositou sobre as coisas de modo a que elas se libertem da sua natureza puramente coisal. E esse véu de Verónica que cobre o mundo de presenças passadas parece tornar-se visível – nos seus filmes – aquando da degradação material das coisas. É na decadência que o olhar de Mozos vê florir uma memória, e os seus filmes têm, recorrentemente, a capacidade de transmutar a perda em ganho, de tornar o irreparável em lição infinita, de cantar um último acto sem ponto final.
Ramiro (2017) participa desta procura pelo que se evade das coisas e dos sítios, e, inversamente, da procura por uma espécie de doçura escondida no interior das pessoas. O método: delicadeza à exaustão (a forma) e comprometimento com uma linha simples e solene (a narrativa). Isto é, o filme de Mozos enamora-se com uma certa ideia de pureza, mas através do apuramento de cada gesto, de cada enquadramento, de cada foco de iluminação, cada peça de guarda-roupa, cada movimento de câmara, cada deixa… É um filme da máxima orquestração dos meios propriamente fílmicos, uma ode à fantasia que só se pode no e pelo cinema. Fantasia essa que, paradoxalmente, se encontra fortemente agrilhoada à realidade de uma cidade que se gentrifica (o que se perde, o passado que se esvai por entre as tascas gourmet e os airbnbis).
Mas este é possivelmente o seu filme menos amargurado com a decadência das coisas, que a encara com uma certa alegria romântica, vendo na putrefacção uma razão de ser e não a desgraça do deixar de ser – “uma espécie de (…) priapismo post-mortem ad aeternum (que é tanto uma maldição como um regozijo)“. Assim sendo, se se quiser enquadrar o filme numa “escola de poetas e cronistas” – não por acaso que o Ramiro (grande actor este António Mortágua!) é poeta e alfarrabista, figura que simultaneamente guarda o passado e chora o seu desaparecimento –, diria que este é um filme-poema-crónica feito das intimidades (a simplicidade de um encontro, de um tempo de espera, de uma proximidade ténue, de uma calma quase ingénua que se traduz no prazer de uma companhia) e das débeis raízes que se deixam poisar nas terras movediças do dia-a-dia.
Ramiro é um filme que se vê com um sorriso triste nos lábios – de uma ponta à outra. Quem diria que a operação de multiplicação entre as linhas de Mariana Ricardo e Telmo Churro com o olho de Mozos igualaria algo entre Jim Jarmusch e Aki Kaurismäki.