Fazendo a história do cinema produzido durante os primeiros anos do novo milénio, não há como escapar das artimanhas e mind games do vilão demiúrgico de Saw (Saw – Enigma Mortal, 2004). Uma pequena produção de horror que desenvolvia uma curta-metragem pouco vista, com um orçamento bastante baixo para os padrões americanos (à volta de 1 milhão de dólares), parecia eternizar-se no boxoffice, acabando por gerar um lucro cerca de cem vezes superior ao seu custo. Saw tornou-se no mais bem sucedido franchise de horror da história do cinema americano, saindo um novo tomo todos os anos, de 2004 a 2010. Em jeito de post-scriptum foi lançado no ano passado Jigsaw (Jigsaw: O Legado de Saw, 2017), oitava entrada da série (nona se contarmos com a tal curta inaugural). Como é que um filme de ultra-violência, um dos principais exemplares do género torture porn, conseguiu tomar conta do, hoje tão pudico, mainstream? Por uma questão de alívio de tensão, como uma grande “punheta colectiva” com que os espectadores se presentearam na ressaca do ataque de 11 de Setembro de 2001. Esta é uma das hipóteses avançadas pelo crítico J. Hoberman no seu livro Film After Film, sendo que este lembra que em 2004 houve dois filmes de horror a fazer muitos, mas mesmo muitos, milhões – e, com isso, a deixarem uma marca indelével na consciência da indústria. Um foi essa primeira longa-metragem do realizador malaio James Wan, o outro foi The Passion of the Christ (A Paixão de Cristo, 2004) de Mel Gibson. O novo milénio começou com um trauma. Hollywood respondeu com outros tantos, fazendo de uma renovada filosofia – e estética – do mal a cura das multidões abaladas. Os três primeiros Saw passaram recentemente nos Canais TVCine. Na senda de revisitações iniciadas na última crónica, decidi espreitar a coisa, com algum medo do que ia reencontrar.

Há mais um dado histórico importante que liga intimamente a série Saw ao zeitgeist. O princípio do milénio também coincide com a mania dos reality shows. Em Portugal foi o Big Brother, o pai de todos os reality shows, mas depois vieram, quase em simultâneo, os seus derivados – alguns particularmente escabrosos, tais como Acorrentados ou O Bar da TV. Nos Estados Unidos, as massas renderam-se (também) a Survivor e, muito especialmente, a The Apprentice, programa nem de propósito protagonizado por esse “Jigsaw na Casa Branca” chamado Donald J. Trump. No mundo do futebol, história que também pertence a esta narrativa, José Mourinho inventava mais ou menos por esta altura os famosos “mind games”, transformando o show da comunicação numa questão não apenas de percepção, mas de decisiva implicação no jogo jogado.
O mal é mais poderoso quando está em todo o lado, quando se transforma numa abstracção de comando universal, de todos para todos. Saw, como artefacto sociológico e cultural, ensina-nos essa lição.
Desde a sua primeira vida sob a forma de curta-metragem, Saw é uma espécie de reality show. Pessoas que acordam, desamparadas, numa divisão vigiada por câmaras ocultas. Uma “voz” dá instruções, promovendo o contacto entre as vítimas ou lançando as regras do jogo espectacular. Todas elas são confrontadas com um qualquer episódio ou série de episódios do seu passado que revela falta de amor pela vida, um comodismo burguês ou auto-comiserante que a tal “voz” põe em xeque com os seus jogos da mente e do corpo. Alguém assiste a esta “casa dos segredos/degredos”. Será apenas o grande produtor do mal com o nome enigmático “Jigsaw” – ah, Teresa Guilherme, desta vez, não tem nada que ver com isto – ou estaremos também nós implicados no processo da purga, dor e cura, por que passam os “jogadores” deste sangrento show? É na segunda parte desta questão que Saw se vira contra nós mesmos, porque, afinal, quem verdadeiramente municiou este universo com cada vez mais inomináveis formas de horror foi a nossa sede voyeurista por mais sangue. Como numa das torturas, a chave está no nosso olho… é preciso arrancá-la. Nós, espectadores, é que somos Jigsaw, tal como nós, espectadores, é que somos responsáveis pela deterioração estética e moral da televisão nesses anos de iniciação do novo milénio. É isso que Saw nos diz, desde logo, no título. Ele ensaia um elaborado jogo de palavras – Godard, where art thou? – que nos fala de um visto (saw) que joga (jigsaw) e mutila (a saw). [Outro trocadilho mais anagramático, dado o efeito cultural do filme, pode ser feito entre Saw e o título de outro blockbuster que ganhou dimensões inusitadas, e que, com isso, engoliu a indústria: Jaws (O Tubarão, 1975).]
Com efeito, nesses anos “a zero” começámos com a possibilidade de nos libertarmos cortando um pé com uma serra ou, outra forma de libertação, dando um tiro na cabeça, aliviando de vez a dor que é nossa e que é dos outros. Esta dor colectiva, societal, é o primeiro alvo do filme de James Wan. A importância sócio-cultural deste objecto cinematográfico rude, plasticamente histriónico, entre o videoclipe e a promo televisiva, reside nessa confusão que se gera até ao fim entre quem assiste, quem produz e quem participa nestes “jogos do mal”. A realização de Wan – não dava para adivinhar aqui o rumo que iria dar à sua carreira – anula-se ante o argumento tão engenhoso quando chico-esperto de Leigh Whannell, que também entra como actor no papel de fotógrafo acorrentado, o mirone dos mirones a quem agora escapa a perversa economia de quem vê, isto é, o prisioneiro muito especial do regime escopofílico de Jigsaw.

O argumento enleia o espectador, torna-o cúmplice dos múltiplos crimes que encena. À lógica thrillesca do whodunnit, que havia tido o importante update com esse “Saw dos anos 1990″ chamado Se7en (Sete Pecados Mortais, 1995), sucede-se um regime pervasivo em que a culpa trespassa todos, por esta ordem: quem participa, quem produz e, o mais fraco dos animais, quem assiste, ou seja, nós, espectadores que ante o que passa no pequeno ecrã gritamos na nossa cabeça, a plenos pulmões, “esfola!”. Os primeiros anos de 2000 são muito especiais neste particular. Nesta minha sede pela revisitação, revi os primeiros Saw mais pelo prazer de me reencontrar com esse período do que alimentando esperanças de reaver qualquer coisa valiosa do ponto de vista cinematográfico. Encontrei, inclusivamente, três dos filmes mais datados do cinema de terror contemporâneo. De facto, os filmes de puzzle tornaram-se moda desde então – mesmo assim, antes Cube (Cubo, 1997) havia lançado as sementes do que desponta para a curiosidade das massas em Saw. Filmes bastante recentes, tais como Cheap Thrills (2013), 13 Sins (13 Pecados, 2014), The Belko Experiment (O Experimento Belko, 2016) e, o mais especial e o melhor de todos, Coherence (2013), baseiam-se no efeito surpreendente de uma série de revelações que vão conduzindo as personagens, normalmente em grupo, “de nível para nível”, o que, em Saw, a partir do segundo tomo, significa muito literalmente “de divisão em divisão”. Há um desafio sádico que testa os limites do conhecimento e/ou da moral dos participantes. Mas quem e o que participa aqui?
A humanidade pós-11 de Setembro precisava de virar o terror para si mesma, lutando, fogo com fogo, contra as suas inseguranças e medos. O primeiro Saw ainda joga o jogo do thriller mor(t)al e vagamente filosófico. A partir do segundo tomo, Saw II (Saw II – A Experiência do Medo, 2005), quando a série é tomada pelo péssimo cineasta que é Darren Lynn Bousman, sucumbe-se ao puro torture porn, ao reality show mais escabroso e filosoficamente inane. Um dos problemas à medida que avançamos é que a origem do mal vai ganhando nitidez no rosto do actor Tobin Bell. O filme de Wan/Whannell tinha a capacidade de conferir o rosto do mal a toda a gente antes de percebermos que, se calhar, o mal estava primeiramente em nós – até ao momento, a meu ver o twist mais bem conseguido, em que percebemos que quem assiste aos televisores que transmitem o show de horror, que se desenrola na divisão sob vigilância de Jigsaw, não é o autor material desse espectáculo, mas mais uma vítima presa nesta intrincada rede de jogos e joguinhos.
A autoria material é, aliás, o grande assunto de Saw, porque, aqui, a personagem encarnada por Tobin Bell defende a tese de que não mata ninguém, apenas “leva a matar” quem já está morto por dentro. O vilão que encena o massacre não se diz assassino – assassinos são as vítimas, parece querer dizer, o que é veneno para os nossos ouvidos, na medida em que esta ideia desapossa o mal de um corpo, e transforma-o num jogo particular de nós connosco mesmos… ou coloca-o tão próximo de nós que já não o conseguimos ver… O filme também não pertence propriamente a Wan/Whannell, foi apropriado pela cultura, tornou-se um fenómeno mass media quase praticamente imanente à vida política e social desta América securitária em que o aumento da segurança – e da vigilância “Big Brother” – cresce na proporção de uma ameaça que tem qualquer cara – pode ser a de um imigrante ilegal árabe como a de um jovem caucasiano de classe média totalmente “insuspeito”. Ao mesmo tempo, no nosso pequeno ecrã, Teresa Guilherme já não precisa de apresentar Secret Story – Casa dos Segredos, delegando-se essas funções em Manuel Luís Goucha. O que não quer dizer que seja Goucha verdadeiramente a apresentar. Como o fantoche “apresentador de televisão” de Jigsaw, Goucha apresenta no lugar de Teresa Guilherme, apresenta por ela qual puro medium. José Mourinho, por sua vez, hoje é menos o “special one” e mais o “sorry one”. Ele perdeu o controlo sobre os seus mind games, que se converteram num muito mau hálito que cheiramos à distância, vindo de uma qualquer banca de jornais. O mal é mais poderoso quando está em todo o lado, quando se transforma numa abstracção de comando universal, de todos para todos. Saw, como artefacto sociológico e cultural, ensina-nos essa lição. O cinema? Fica à porta.