Entre 15 e 29 de Março, a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema apresenta Stan Brakhage: A Arte da Visão, retrospectiva dedicada à obra de uma figura essencial da vanguarda cinematográfica norte-americana. Entre os cerca de quatrocentos filmes realizados por Stan Brakhage (1933-2003), com durações entre alguns segundos e os muitos minutos, são exibidas seis dezenas em película, muitos deles inéditos em Portugal, representativos do seu vasto trabalho, dividido entre o cinema, a música, a poesia ou o ensaio. Em colaboração com a Livraria Linha de Sombra, a acompanhar a mostra, após ter estado esgotada durante longos anos é lançada a reedição da lendária publicação Metaphors on Vision (1963) da autoria de Stan Brakhage e com anotações de P. Adams Sitney, originalmente publicada como número especial da revista Film Culture, fundada pelos irmãos Adolfas e Jonas Mekas, e com design de um fundador do movimento Fluxus, George Maciunas. P. Adams Sitney, figura de particular relevância na divulgação do trabalho de Brakhage e autor de importantes publicações sobre a vanguarda cinematográfica norte-americana (e. g. “Visionary Film: The American Avant-Garde, 1943-2000”), estará na Cinemateca para conduzir duas conferências. Acompanhada pela exibição de obras de Stan Brakhage e de Marie Menken, directamente relacionadas com Metaphors on Vision, a conferência “Metáforas da Visão” cruza a referida publicação com o trabalho, o pensamento e o contexto de produção do artista. Por sua vez, a conferência “A Obra de Stan Brakhage” irá sintetizar o seu percurso através da exploração técnica, da reflexão teórica e das condições que motivaram alterações estilísticas, exibindo igualmente alguns títulos representativos da discussão.
As sessões são alinhadas através de blocos de filmes que delimitam possíveis fases na sua obra: “Primeiras Metáforas da Visão” concentra-se nos primeiros filmes, dentro de um género conhecido como psychodrama ou trance film, e noutros posteriores que evidenciam uma maior carga autobiográfica; com a câmara a mediar o contacto entre o espectador e instituições como a polícia, o hospital ou a morgue, e os seus respectivos domínios (autoridade, doença e morte); “A Trilogia de Pittsburgh” tem paragem obrigatória em The Act of Seeing with One’s Own Eyes (1971), visão assustadora da luz que incide nos corpos mortos enquanto são manipulados em actividades de autópsia e embalsamento; “Found Footage, o Apocalipse da Imaginação” agrupa trabalhos que partem da reorganização de gravações alheias; “O Trabalho Tardio do Som” contém alguns títulos (relativamente poucos, pois na maior parte da obra o som está ausente) em que o som interage com a imagem; “Música Visual” é dedicado à produção em que trabalhou directamente sobre a película, pintando, desenhando ou raspando; “Figurações da Morte, o Ciclo da Vida”, encontra na morte um campo central de investigação; em “O Jardim do Olho” é a natureza e a paisagem que se assumem como matéria de trabalho; e “O Texto da Luz” foca-se em exercícios sobre a luz. A abrir, e entre os diferentes programas, estão sessões dedicadas a dois títulos incontornáveis: Anticipation of the Night (1958) e Dog Star Man (Prelude, Parts 1,2,3,4) (1961-1964).
É uma evidência clara que a vida de Stan Brakhage se confunde intimamente com a própria obra. Explorando o contexto em que vivia, tornando-o em potencial matéria no desenvolvimento do processo criativo, daí decorreram opções que condicionaram a obra e que, nalguns casos, instigaram profundas alterações de carácter estilístico. Os seus primeiros filmes organizam-se em torno de um modelo próximo do surrealismo, a que alguns autores deram o nome de psychodrama, que tem em Meshes of the Afternoon (1943), realizado por Maya Deren e pelo companheiro Alexandr Hackenschmied, um dos fundadores do cinema experimental checo, emigrado nos Estados Unidos, e em Fireworks (1947), de Kenneth Anger, alguns dos seus melhores exemplos. Este período correspondeu a uma enorme efervescência criativa no panorama americano das artes, com realizadores bastante jovens a reflectirem sobre a sua identidade individual e artística – enquanto exploravam questões psicológicas de ordem pessoal e procuravam o seu papel dentro da actividade artística. Neste contexto, filmado a preto e branco e marcado pelo pessimismo, Interim (1952) é o primeiro filme de Stan Brakhage, para o qual escreveu também o argumento. Ainda longe da potencialidade da abstracção do seu trabalho futuro, Interim apresenta um jogo intrigante entre a configuração espacial de uma ponte e a história de um breve encontro amoroso entre dois desconhecidos. Em meados da década de 1950, com Reflections on Black (1955) e The Way to Shadow Garden (1955), as possibilidades do género são esgotadas por Stan Brakhage.
Na publicação The Three Faces of the Film, apoiado num plano de Reflections on Black, o seu autor, Parker Tyler, assinala que a principal tendência do cinema experimental americano, entre as décadas de 1940 e 1950, é ver a acção como um sonho e o actor como um sonâmbulo. Cesare (Conrad Veidt), o sonâmbulo de Das Cabinet des Dr. Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari, 1920) de Robert Wiene é apresentado como símbolo e Le sang d’un poète (O Sangue de Um Poeta, 1932), primeiro filme do pintor e poeta Jean Cocteau, como modelo da produção do cinema de vanguarda da época. Expandindo esta reflexão, P. Adams Sitney cunhou o género com o nome de trance film, verificando uma estrutura comum em que um protagonista vagueia por um ambiente em que sobressai uma invulgar potência, em direcção a uma cena climática de auto realização. Durante o percurso por paisagens naturais ou arquitectónicas, em vez de acções, o progresso do protagonista é marcado pela observação. Nesta forma linear, embora sujeita a variações, transformações e usos mistos, P. Adams Sitney destaca os filmes: Fragment of Seeking (1946) e Picnic (1948), ambos de Curtis Harrington, Swain (1950) de Gregory Markopoulos, Fireworks de Kenneth Anger, The Way to Shadow Garden (1955) de Stan Brakhage e At Land (1944) de Maya Deren.
Ainda que marcado pelo formato do psychodrama tradicional, em Reflections on Black, junto à zona dos olhos do protagonista, Stan Brakhage riscou a superfície da película sublinhando uma “metáfora da visão”, neste caso a ideia de visão dentro de um “sonho acordado”, sem o condicionamento da consciência ou da razão, avançando obras posteriores que exclusivamente resultam desta técnica, como algumas que fazem parte do programa “Música Visual”. Anos depois, Anticipation of the Night recorre a técnicas de movimento da câmara, de montagem, de repetição, radicalizando o ritmo e a abstracção para criar uma nova forma de expressão que prescinde do actor enquanto mediador e transforma o cinema num relato na primeira pessoa. Se olharmos atentamente para o modo como Stan Brakhage filma, vemos que a câmara largou o tripé e é conduzida manualmente num rápido improvisado movimento contínuo como se fosse o prolongamento do olho humano. Segundo Brakhage, uma panorâmica delicada entre dois elementos contraria o funcionamento do olho humano: “Numa panorâmica comum, a câmara faria um movimento suave entre duas pessoas. Os olhos não vêem dessa maneira. É quase impossível fazer uma panorâmica com os olhos, de modo constante, ao longo de uma sala. Em vez disso, os olhos saltam entre partes de objectos. Podemos fazer a panorâmica, usando o zoom, de modo rápido e extremo, de forma que filmemos apenas pequenas partes dos objectos. A câmara é empurrada para trás e para a frente, captando fragmentos que darão forma a um todo. Provavelmente, isto parecerá estranho. Não é o modo como as pessoas pensam que vêem. Por um lado, tem de se praticar muitas horas com a câmara, aperfeiçoando a técnica, segurando-a com as mãos e ajustando-a ao movimento dos olhos. Por outro, tem de haver uma grande quantidade de cortes, para depois juntar e formar um todo inteligível.”
Esta nova forma de captar a realidade e de ver o mundo teve uma enorme influência, não só nos outros realizadores de cinema experimental como nos estudantes. Como P. Adams Sitney explica: “Na década de 1950, se entregassem uma câmara a um estudante e lhe pedissem para produzir um filme, este montaria a câmara nos corredores do dormitório, em que outros estudantes deambulariam num cenário pitoresco. Esta seria a forma habitual de realizar filmes na esteira dos psychodramas e foi, assim, que Brakhage começou com Interim. No final da década de 1960, emprestavam câmaras aos estudantes e eles entravam nas florestas, ondeavam à volta das árvores, olhavam para os rios, punham-se de pé nas pontes e observavam o fluxo da água que passava por baixo. Brakhage transformou aquilo que, mesmo as pessoas que nunca tinham ouvido falar nele, definiam como auto-expressão através do cinema”. Em 1957, Stan Brakhage casou com escritora Jane Wodening e foram viver para uma zona montanhosa no interior do país, onde nasceram cinco filhos, estabelecendo-se entre todos uma colaborativa relação de trabalho. Neste contexto, em Metaphors on Vision o cineasta refere que “By Brakhage”, a assinatura que aparece nos seus filmes posteriores ao casamento, é um conceito em expansão que vai abarcando, ao longo do tempo, tudo e todos os que o rodeiam, começando pela mulher e pelos filhos, porque as descobertas, em que ele é apenas o instrumento, são reveladas pelas sensibilidades daqueles que ama.
Neste universo singular, as ideias de arte e quotidiano, arte e não-arte, estão intimamente ligadas. Os filmes apresentam o quotidiano da família nessa zona inóspita e as preocupações que levantam: “nascimento, morte, sexo e a procura por Deus “, como Brakhage sublinha em Metaphors on Vision, que começou a escrever entre a produção de Anticipation of the Night e o seu casamento. O filme Window Water Baby Moving (1959) capta os últimos momentos de gravidez de Jane Wodening e o nascimento do filho de ambos, com um nível de detalhe e proximidade incomuns. Do outro lado, Brakhage surge perplexo, contemplando o milagre da vida. Por sua vez, como considera o cineasta e pontualmente colaborador Phil Solomon, a realização de Dog Star Man tornou-se num feito sem precedentes, não só em termos da carreira de Brakhage mas também dentro do movimento do cinema de vanguarda. Mostrou que podia ser criada uma inteira cosmologia para a realização de cinema experimental, trazendo para a tela algo radical e vital inspirado na poesia de Gertrude Stein ou Charles Olson, que igualmente remetem para técnicas de montagem em cinema. Todo o processo de criação poderia partir de matérias vulgares que encontrava à sua volta e que, através da alquimia da arte, projectavam na tela o universo da imaginação. Passado o momento de glória, houve quem negligenciasse, esquecesse ou diminuísse o seu papel dentro do cinema experimental. Para o feminismo e, mais tarde, os estudos culturais tornara-se difícil encarar a obra de um recluso no interior montanhoso que advogava um processo de trabalho comunal dentro de um casamento tradicional. Maya Deren confessava que Window Water Baby Moving se acercava demasiado dos segredos da mulher. A aproximação ao Expressionismo Abstracto, como veremos adiante, com os seus macho heroes, viria ainda acentuar esta tendência de isolamento.
Stan Brakhage desenvolveu uma complexa estética visual suportada em delicadas articulações rítmicas, como música para os olhos em que quase se pode “ouvir” cada corte. A adição do som, em vez de convocar possibilidades de diálogo, apenas poderia resultar redundante. Para o cineasta, o som é um erro estético e o seu uso tornara-se num beco sem saída. Como se o quisesse atestar, cria Songs (1964-1969), um ciclo de trinta e uma partes rodadas em 8mm que, organizadas, compõem vinte e cinco filmes – vinte e cinco poemas visuais, naturalmente sem som. Uma das razões para a mudança entre os filmes de 16mm e de 8mm prendeu-se com a vontade de vulgarizar a sua audiência e democratizar o acesso ao seu trabalho. Ao contrário do filme de 8mm, o de 16mm é caro, bem como o tipo de projector que requer. Deste modo, não só a casa vem substituir o auditório, como o espectador pode possuir os filmes, exibi-los quando quiser e examiná-los como faria com uma pintura.
Uma importante herança do cineasta é ter contribuído para elevar o home movie à categoria de arte e legitimar os pequenos acontecimentos do quotidiano como fonte de trabalho, alargando o campo de possibilidades para a feitura de um filme. Muitos realizadores do campo da arte foram influenciados por esta ideia, alguns complexificando o pensamento de Brakhage, revertendo-o em linguagens próprias, como no caso dos diários de Jonas Mekas ou de George Kuchar. A propósito de Walden: Diaries, Notes and Sketches (1969), Jonas Mekas afirmou: “Desde 1950, mantenho um diário em filme. Caminhei com a minha Bolex, reagindo à realidade imediata: situações, amigos, Nova York, estações do ano. Nalguns dias filmo dez frames, noutros dez segundos, noutros dez minutos. Ou não filmo. Escrever diários é um processo retrospectivo: sentamo-nos, olhamos para o nosso dia e escrevemos. Manter um diário em filme (câmara), é reagir (com a câmara) imediatamente, agora, neste instante: consegue-se agora ou perde-se para sempre. Voltar atrás e filmar mais tarde, significaria encenar, tanto eventos como sentimentos. Consegui-lo agora, enquanto acontece, exige o domínio total das ferramentas (neste caso, a Bolex): tenho que captar a realidade e também os meus sentimentos (e todas as memórias) enquanto reajo. Isto significa que tive que organizar toda a estrutura (montagem) ali mesmo, durante as filmagens, na câmara. Todas as imagens de Diaries são exactamente como saíram da câmara. Não poderia alcançá-lo na sala de montagem sem destruir a sua forma e conteúdo”. Dada a proximidade com este grupo de criadores, Brakhage, Wodening, ou os filhos, tornaram-se em protagonistas dos diários de Mekas e de Kuchar.
A partir do inicio da década de 1970, uma série de acontecimentos na sua vida pessoal, obrigam a alterações profundas no seu processo de trabalho. O envelhecimento, a doença, as dificuldades da vida na montanha e, finalmente, o divórcio e o crescimento dos filhos põem fim a uma intensa relação colaborativa. É o momento de The Text of Light (1974), dos estudos minuciosos sobre a luz e de uma maior incidência na abstracção. O posterior casamento com Marilyn Brakhage, trouxe novos desafios, nomeadamente a sua recusa em ser filmada, o que punha em causa relatos de ordem biográfica. Brakhage, que em grande parte da obra compusera uma crónica da sua vida e daqueles que o rodeavam, conta que sentiu um enorme alivio. Nas duas ultimas décadas de vida, transportou o “Expressionismo Abstracto”, particularmente o trabalho de Jackson Pollock, para uma dimensão inovadora, ao acrescentar-lhe luz e movimento através do filme. O seu processo criativo sempre teve características que o aproximavam desse movimento, nomeadamente o carácter performativo, a espontaneidade, a intuição e a tendência anti-figurativa. No entanto, quando Brakhage aplica tinta sobre a película existe uma apreciável diferença de escala comparando-o com Pollock a espalhar tinta segundo a técnica de dripping nas grandes telas colocadas no chão [ver Pollock no célebre Jackson Pollock 51 (1951) de Hans Namuth], algo que apenas a projecção na tela poderia equiparar.
No final de 1996, Stan Brakhage adoeceu novamente. Quando questionado se a tinta que usava na pintura da película não poderia estar na origem da doença cancerígena, foi forçado a pôr de lado este processo de trabalho. Anacronicamente, como refere Phil Solomon, numa época em que o mundo enfrentava uma crescente revolução tecnológica, Stan Brakhage empreendeu uma renovação da obra através de um processo primitivo de raspagem da superfície da película. Depois de falecer, manteve-se a sua uma enorme influência na cultura popular, mesmo que não devidamente reconhecida. Para além da presença intensa das suas técnicas de montagem rápida e de sobreposições nas linguagens da publicidade e dos vídeos musicais, entre outros bons exemplos de apropriação do seu trabalho encontram-se os créditos de abertura de Se7en (Sete Pecados Mortais, 1995) de David Fincher, a morte de Cristo em The Last Temptation of Christ (A Última Tentação de Cristo, 1988) de Martin Scorsese, bem como o famosíssimo oitavo episódio de Twin Peaks: The Return (2017) de David Lynch. Por muito mais que isto, o evento na Cinemateca Portuguesa é um momento único e imperdível que traz à memória a célebre mostra dedicada a Andy Warhol, ainda no tempo de João Bénard da Costa. Na época, pelos corredores do Museu do Cinema, ouvia-se o álbum “Songs for Drella” de Lou Reed e John Cale, acabado de editar. Desta vez, nem é necessária banda sonora.