“3 meses em Angola, 45 dias de hepatite; 5 semanas em Angola, 6 em Macau e Timor; 7 semanas de África”. O relato é de Felipe de Solms, escrito a partir de Bissau, a 5 de setembro de 1969, em carta dirigida ao SNI a pedir um apoio financeiro para produzir Helivision, um filme que seria distribuído pela Warner Bros, o projecto que marcaria o início do fim de uma das carreiras de produtor mais prolíficas da história do cinema português.
Ao longo de cerca de duas décadas, Felipe de Solms produziu dezenas de filmes pelos vários pontos do então império português, beneficiando significativamente do apoio do Estado Novo. Um dos exemplos dessa “colaboração” com a ditadura seria a participação do produtor na série cinematográfica para a Campanha Nacional de Educação de Adultos, que tornaria popular o Zé Analfabeto, a personagem interpretada por Vasco Santana, e o seu burro.
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Zé Analfabeto e o Trânsito (1952)
A sua estreia como produtor de longas-metragens aconteceria em 1953, com Chikwembo! Sortilégio Africano, anunciado como “o primeiro filme português inteiramente rodado em África”, tendo sido filmado em Moçambique, Zambézia, Gorongosa, Beira, Marromeu e Kangn’Thole. No ano seguinte, produziria a longa O Costa d’África, realizada por João Mendes e com argumento e interpretação de Vasco Santana (1898-1958), no que seria o seu último papel como protagonista de um filme português. Seria, pois, mais uma tentativa de recuperar a comédia à portuguesa das duas décadas anteriores, explorando um argumento muito dependente do humor revisteiro e da presença de Santana.
Solms terá sido, muito provavelmente, o produtor que mais filmes fez nas colónias ou províncias africanas durante o Estado Novo
Estes dois filmes marcam sobretudo uma relação com África, aspecto fundamental na carreira deste produtor. Solms terá sido, muito provavelmente, o produtor que mais filmes fez nas colónias ou províncias africanas durante o Estado Novo, desde filmes “paisagísticos” – como Beira (1952), Zambézia (1952), Riquezas de Moçambique (1950), Lourenço Marques (1950), Cabinda (1950) ou Guiné (1972) – a filmes “recreativos” – O Benfica em Angola (1950), Desportos em Lourenço Marques (1951) ou Ritmos de Luanda (1971) – ou de propaganda colonial, tais como Acção Missionária em Angola (1951), Cimentos em África (1958), O Estado Novo em Moçambique (1952) ou Obras Públicas de Angola (1953).
Em 1968, o conhecimento que detinha em África seria fundamental para ser contratado para produzir a rodagem em Angola do filme Riusciranno i nostri eroi a ritrovare l’amico misteriosamente scomparso in Africa?, realizado por Ettore Scola, uma comédia inicial do mestre italiano protagonizada por Nino Manfredi e Alberto Sordi.
A comédia seria o registo mais recorrente de Solms na ficção: depois de Costa d’África (1954), seguir-se-ia O Milionário (1962) de Perdigão Queiroga, protagonizado por Raul Solnado, e Aqui há Fantasmas (1964) de Pedro Martins, com argumento de Ribeirinho e Henrique Santana, que também protagonizaria esta adaptação da peça de teatro; em 1969, a sua última obra seria Bonança & Companhia (realizado por Pedro Martins), uma paródia ao western, mais concretamente à série de televisão Bonanza (1959-1973) protagonizada por jovens promessas da revista como Nicolau Breyner ou Natalina José e pelo veterano Eugénio Salvador.
Aqui Há Fantasmas (1964) de Pedro Martins
O filme de acção e suspense também seria tentado por Solms, um registo pouco comum no cinema português: Via Macau (1966), uma co-produção luso-francesa realizada por Jean Leduc, rodada em Lisboa, Estoril, Macau e Hong Kong em torno de uma organização de contrabandistas de armas que usa uma televisão pirata para espalhar o caos em Portugal e de um diplomata francês que viaja para Macau na esperança de localizar uma espia sexy que havia conhecido em Lisboa; Operação Dinamite (1967), uma história de espionagem ambientada entre Lisboa e Luanda, protagonizada por Nicolau Breyner (na pele de um espião norte-americano) e com banda sonora de Simone de Oliveira e do Duo Ouro Negro.
Mas um dos seus trabalhos mais peculiares seria Rapsódia Portuguesa (1959 ) de João Mendes, um ambicioso projecto financiado pelo Secretariado Nacional de Informação, que esteve em competição no Festival de Cannes em 1959 e venceu uma medalha de prata no Festival Internacional de Cinema Documental e Curtas Metragens de Bilbao. A partir de uma ideia de António Ferro, e argumento da sua esposa Fernanda da Castro, Felipe de Solms pretendia retratar os costumes e práticas religiosas ancestrais do povo português, num registo perto do etnográfico e antropológico. No entanto o resultado final não seria mais do que um desfile de grupos folclóricos de várias regiões do país. A presença deste filme em Cannes foi acompanhada por uma significativa operação de marketing que incluía oferta de brindes (barretes de campinos, chinelos e vinho do porto), figuração folclórica, publicidade nos jornais locais e a preparação de uma importante delegação com a presença de Amália Rodrigues e António Vilar. A propósito deste filme, e a título meramente curioso, importa ressaltar que o seu realizador foi um dos portugueses que mais vezes esteve a concurso em Cannes: para além deste Rapsódia Portuguesa, Mendes tinha já no seu curriculum três curtas-metragens “seleccionadas” para competição: Parques Infantis (1946), Arte Popular Portuguesa (1955) e Sintra (1958), este último também produzido por Solms.
Entre os projectos não concretizados, e foram muitos, interessa recuperar aqui dois: O automóvel corsário seria a estreia na longa-metragem de Fernando Lopes, em 1961, três anos antes de Belarmino (1964). O projecto não foi financiado pelo SNI, e por isso não foi concretizado. Três meses depois, em Julho de 1961, Solms tentaria lançar novamente Fernando Lopes na realização de Fim-de-semana, uma longa escrita por José Cardoso Pires. Mais uma vez, o projecto não seria financiado e ficaria no papel. Outro caso muito curioso seria A Palavra (1962), um projecto de longa-metragem a ser realizado por Luís de Pina, futuro director da Cinemateca Portuguesa entre 1983-1991.
Como produtor, o trabalho mais relevante que deixou na história do cinema português terá sido Fado Corrido, o drama realizado por Jorge Brum do Canto em 1964, com argumento adaptado de Gaivotas em Terra de David Mourão-Ferreira, e com as interpretações de Amália Rodrigues e do próprio Brum do Canto. Para além dos fados interpretados por Amália, destacam-se também os solos de guitarra por Carlos Paredes. A trama, algo melodramática, gira em torno de um triângulo amoroso composto por um fidalgo marialva, a fadista por quem ele se apaixona e o rapaz recém-chegado de África por quem ela o troca.