Em Abril de 1951, um jornalista português chegava a Cannes enviado pelo diário brasileiro O Estado de São Paulo para cobrir a estreia do filme brasileiro Caiçara (1950, Adolfo Celi) naquele que era, à época, o segundo mais importante festival de cinema do mundo. Jornalista especializado em política internacional e temas culturais, Novais Teixeira foi enviado para Cannes porque era um dos dois correspondentes do diário paulista na capital francesa. O filme Caiçara acabaria por passar despercebido em Cannes, mas Novais Teixeira aproveitou a passagem pelo festival para escrever sobre uma retrospectiva de cinema soviético que decorreu durante o evento e onde foram exibidos filmes dos mestres clássicos Dziga Vertov, Serguei Eisenstein, Aleksandr Djovenko e Vsevolod Pudovkine.
Nos seguintes 21 anos, Novais Teixeira seria presença regular em Cannes. António da Cunha Telles recorda: “(…) encontrávamo-nos todos os anos em Cannes. Ele estava lá sempre e, na altura, eu era distribuidor e ia também a Cannes adquirir filmes, na época em que a Animatógrafo programava a Sala Estúdio do Império, Satélite. (…) Ele escrevia (…) e, se a memoria não me trai, eu penso que ele tinha o cacifo de imprensa número 1, por ser o jornalista mais antigo do festival de Cannes.” Em Abril de 1970, o Jornal do Brasil apresentava-o aos seus leitores como “um crítico com passado”: “Êle é a velha rapôsa da crítica cinematográfica internacional, jurado em festivais de cinema há mais de 20 anos – o mais antigo de todos.”
Cannes foi o primeiro festival em que Novais Teixeira participou oficialmente, e em 1952, integraria o júri da imprensa do festival, mas o jornalista português seria presença regular também em Veneza, Berlim (onde integraria o júri oficial em 1958 e presidiu ao júri da FIPRESCI em 1964), San Sebastián, Locarno (integraria o júri oficial internacional em 1959), Acapulco, Mar del Plata (em 1970 foi jurado oficial), Rio de Janeiro (foi membro do júri para a Curta-Metragem em 1965 e júri da Crítica em 1969), entre muitos outros. A frequência das presenças nos festivais, o convívio com críticos e cineastas e o desempenho de tarefas enquanto júri oficial ou de imprensa parecem ter contribuído, obviamente, para a formação de um gosto cinéfilo e de um conhecimento cinematográfico técnico que o foi envolvendo e que o transformariam num crítico de cinema de referência na imprensa brasileira.
“Êle é a velha rapôsa da crítica cinematográfica internacional, jurado em festivais de cinema há mais de 20 anos – o mais antigo de todos.”
Antes disso, Novais Teixeira havia coleccionado momentos dignos de uma obra épica: fugiu de Portugal em 1919 por se envolver na intentona monárquica liderada por Paiva Couceiro; abandonou Espanha em 1938, perseguido pelas tropas franquistas que cercavam Barcelona; em 1940, em fuga aos nazis que ocupavam França, foi preso pela PVDE, tendo permanecido retido no Aljube durante cerca de 6 meses antes de conseguir asilo em terras brasileiras; viveria no Brasil, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, de 1941 a 1948, onde se tornaria um reputado e respeitado jornalista; regressaria à Europa para se radicar em Paris.
Durante as duas décadas seguintes, seria o grande promotor do cinema brasileiro na Europa, tendo acompanhado de perto a ascensão do cinema novo brasileiro e de figuras como Glauber Rocha, Nélson Pereira dos Santos ou Paulo Cesar Saraceni. Paulo Emílio Salles Gomes tratava-o mesmo como “embaixador oficioso e frequentemente encabulado do cinema brasileiro”. Durante a sua vida fez muitas amizades em diversos círculos – Almada Negreiros, Manuel Azaña, António Dacosta, Rubem Braga, Paulo Emílio Salles Gomes, Gabriel García Márquez, só para citar alguns nomes – mas nenhuma terá sido tão próxima e duradoura como a que manteve com Luís Buñuel, iniciada nos tempos em que ambos viveram em Madrid durante a aventura republicana e a terrível guerra civil espanhola, e retomada pela convivência regular em Paris e em diversos festivais de cinema europeus e latino-americanos.
Em 1972, ano da sua morte, Novais Teixeira seria colaborador próximo de Jean A. Gili na organização da IX edição do Festival de Cinema de Nice, dedicado nesse ano ao Jeune Cinéma Portugais. Pelas suas boas relações com diversos agentes do cinema em França, nomeadamente Henri Langlois, o director da Cinemateca Francesa, e diversos organizadores de outros festivais, Novais Teixeira terá colaborado nesta iniciativa como elo de ligação entre a organização francesa e o Centro Português de Cinema, contribuindo para a concretização da que seria a mais importante internacional mostra de cinema português e que muito contribuiria para a divulgação e promoção do novo cinema português.
Alguns meses após a morte de Novais Teixeira, a maior e mais importante associação de críticos de cinema (FIPRESCI) decidiu instaurar o Prix Novais Teixeira, um reconhecimento inequívoco do seu contributo para a crítica e para a defesa da cultura cinematográfica ao longo de duas décadas. Mas o cinema português também lhe rendeu diversas homenagem, nomeadamente através de António-Pedro Vasconcelos e Manoel de Oliveira: o primeiro dedicar-lhe-ia o filme Perdido por cem (1973) e Oliveira o filme Francisca (1981).
De resto, o depoimento do próprio Oliveira nas suas Conversations com Jacques Parsi e Antoine de Baecque são elucidativas da importância de Novais Teixeira na internacionalização da sua carreira: “Conheci um crítico de cinema português, Joaquim Novais Teixeira, um homem muito politizado. (…) Conheci-o em Veneza, por intermédio de um amigo [Carlos Carneiro]. Eu apresentava, então, O Pintor e a Cidade (1956), num festival de curtas metragens que teve lugar antes da Mostra. O filme tinha sido assobiado, eu não estava contente. Contei-lhe o que se tinha passado e ele pediu a alguns críticos que o viessem ver. Bazin estava lá. Não o conhecia ainda, a não ser pela reputação. Novais tinha deixado no seu hotel uma mensagem dizendo que o meu filme passava. Como a única possibilidade que tinha era de o projectar às nove horas da manhã e, sendo eu um perfeito desconhecido, enquanto que Bazin era uma figura muito importante da crítica, pensei que não viria. Mas veio. (…) Em 1957, regressando do festival de Cork, onde O Pintor e a Cidade tinha recebido A Harpa de Prata, fui, com Isabel, minha mulher, ao festival de Cannes, por insistência de Novais Teixeira, e voltei a ver Bazin. Convidei-o a almoçar no hotel onde estávamos. Falámos um pouco. No ano seguinte, Novais Teixeira teve a possibilidade de voltar a Portugal. Convidei-o. Bazin hesitou, depois falou ao telefone com Novais e veio só. Passou quinze dias. Estava a escrever um livro. Fizemos muitas excursões para conhecer o país. Conversámos muito e tive a oportunidade de lhe mostrar Douro, Faina Fluvial (1931). Ficou surpreendido com a montagem viva, enquanto que a de O Pintor e a Cidade é constituída por planos que duram indefinidamente. Bazin apercebeu-se que não era por incapacidade de criar ritmo, porque, vendo Douro, compreende-se que o ritmo de O Pintor e a Cidade é intencional. (…) De regresso a Paris, escreveu um pequeno texto sobre mim nos Cahiers.”
Texto de André Bazin na revista Cahiers du Cinéma, n.º 75, Outubro de 1957, pp. 47-48.
De resto, seria uma frase de Bazin escrita precisamente neste texto que criaria um mito que persiste até hoje: “Il est l’auteur de Aniki-Bobo que, dès 1944 et sous l’influence directe du cinéma italien, s’accordait au grande mouvement néo-réaliste.” Inadvertidamente, Bazin cometeu duas gralhas: a primeira foi ao datar o filme em 1944, quando este estreou em 1942; a segunda foi sugerir que o filme tinha uma relação com o movimento neo-realista italiano. A primeira gralha não foi detectada, mas a segunda seria corrigida na página 42 do número seguinte da Cahiers du Cinéma: “Dans le dernier Journal Intime (Oliveira), page 48, lire: sans influence, au lieu de sous l’influence du mouvement néo-réaliste… nuance!” Apesar da correcção, a frase incorrecta circulou abundantemente e seria citada profusamente nas histórias do cinema português que passaram a referir o filme de Oliveira como precursor do neo-realismo italiano.
Esquecido no seu país natal, onde muitos o julgavam brasileiro, e mesmo que Margarida Gil lhe tenha feito um filme sobre a sua vida, O Fantasma do Novais (2012), Novais Teixeira continua ignorado também na história do cinema português, apesar de muito ter contribuído para a sua internacionalização.
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O Fantasma do Novais (2012, Margarida Gil)