Depois de um atribulado processo relativo à distribuição do filme, devido aos receios do estúdio Paramount que Annihilation (2018) seria “demasiado intelectual” e “demasiado complicado”, e com a recusa de Alex Garland e do produtor do filme em fazerem alterações ao final cut, foi acordado distribuir o filme através da plataforma Netflix, com exibição pontual no cinema apenas em alguns países. Este é assim um filme que não teve estreia em sala em Portugal, e infelizmente, porque é um filme que pede claramente para ser visto no cinema: não só pela escala arrojada dos seus elementos visuais e pela atmosfera sonora imersiva, mas também pelo ritmo contemplativo e o tempo estendido de cada plano, pouco comuns num filme do género da ficção científica. Depois de um entusiasmante Ex-Machina (2014), Garland regressa aos temas da identidade e do controlo da informação, numa ambiciosa reflexão sobre a natureza humana, que aqui é também um estudo sobre percepções e escolhas.
Annihilation começa pelo fim, ou pelo menos, por aquilo que nos é dado a entender que é o fim, com a personagem interpretada por Natalie Portman, Lena, a ser questionada por um homem vestido com um fato completo de protecção, numa sala estéril, enquanto outros observam o interrogatório atrás de um vidro de segurança. Lena lembra-se apenas vagamente do que lhe aconteceu até chegar ali – e essa amnésia pode ou não estar relacionada com uma sugestão de um estado de transe – mas rapidamente é dado a entender, à medida que ouvimos os nomes de companheiros desaparecidos, que é a única sobrevivente de uma misteriosa missão. Como será revelado a seguir, e que ajuda retroactivamente a explicar este interrogatório, Lena fazia parte de uma equipa que tinha por missão investigar um fenómeno inexplicável: depois de, algures na Florida, um meteorito se ter despenhado perto do mar, uma redoma que circunda uma zona, dentro da qual as leis da natureza sofrem estranhas mutações, começa a espalhar-se lentamente, como uma infecção, como um organismo vivo, que se apropria da terra à medida que cresce, sem fim à vista.
Porém, antes de Lena participar na missão à tal zona infectada, denominada de The Shimmer (o brilho), é preciso perceber o seu motivo para voluntariar-se. Quando a encontramos no início ela está em processo de luto, porque o seu marido, Kane, desapareceu há mais de um ano numa missão militar secreta, é dado por morto. Quando este regressa surpreendentemente, contra as expectativas e como uma aparição, Lena mal quer acreditar, mal o reconhece. Pouco depois a saúde dele deteriora rapidamente e Lena descobre a sua participação numa missão à tal zona misteriosa, do qual ele era até à data, e talvez por pouco tempo, o único sobrevivente. A pergunta passa então a ser porque terá ele se voluntariado para uma missão anunciada como suicida? E porque é que ela o vai imitar de seguida? Para tentar perceber o que lhe aconteceu no Shimmer, ou por qualquer sentimento de culpa?
O filme tem suscitado comparações com os filmes de Andrei Tarkovsky, Stalker (1979) e Solyaris (Solaris, 1972), que não são despropositadas (mesmo que Garland fique longe da complexidade poética desses filmes), pelo menos na forma como Annihilation controla o conhecimento e revelação de informação. Se na maior parte dos filmes de ficção científica, o mistério à volta de um cenário invulgar funciona com uma espécie de equivalência à arqueologia, no qual se vão desenterrando pequenas pistas para o que terá acontecido – lembramo-nos por exemplo da sequência da aterragem da tripulação num planeta desconhecido logo no início de Alien (Alien – O 8.º Passageiro, 1979) – e na suspensão das leis da natureza perante as possibilidades que as “ruínas” de um qualquer evento anterior possam desvendar. Essa fórmula clássica foi subvertida e desconstruída por Tarkovsky em Solyaris, com o propósito de mostrar a materialização de memórias que surgem para assombrar o presente e controladas por uma entidade superior, e é agora seguida por Garland, que recupera a abordagem do realizador russo.
Se os flahsbacks aparecem num filme para explicar o puzzle de eventos que aconteceram até aí, de forma a contextualizar de repente com nova informação o que sabíamos ate então, surgindo como um momento eureka que dá sentido a todo o percurso seguido [como por exemplo em Arrival (O Primeiro Encontro, 2016) de Denis Villeneuve ou Interstellar (2014) de Christopher Nolan], em Solyaris, Tarkovsky usava o aparecimento de nova informação de forma diferente. Numa narrativa aparentemente linear, observamos acontecimentos que não nos dizem muito além da própria acção em si, que não parecem ter outro significado além do que está contido na própria cena, mas que fazem sentido e que ganham novos significados muito mais tarde quando temos novas informações.
Essa nova informação-revelação ajuda a entendermos o que está a acontecer agora, à luz do que já tínhamos visto antes – são assim uma espécie de flashbacks em elipse, porque não são mostrados momentos anteriores, apenas evocados na nossa memória – e não são um flashback para a personagem, um momento que pára a acção no presente para regressar ao passado, mas um flashback “exterior”, da parte do espectador – somos obrigados a olhar retroactivamente para as cenas anteriores e interpreta-la de modo diverso num momento posterior.
Se isso acontecia já por exemplo em Ex-Machina, (misturados com alguns flashforwards, que aludiam ao que iria acontecer mais tarde), podemos considerar alguns exemplos desse controlo de informação em Annihilation: quando Kane regressa a casa, este senta-se à mesa, com um copo de água à sua frente, através do qual vemos os dedos de Lena e Kane entrelaçados, mas distorcidos pela textura da água, num prenúncio das mutações que ocorrem mais tarde, uma cena que só nessa altura ganha outro significado; quando Lena está a decidir se participa ou não na missão, recorda-se de uma conversa com Kane antes de ele partir para a fatídica missão, em que este parecia mais distante e reservado – se saberia ele de algo mais, isso só fica claro muito mais tarde; e antes de Lena entrar na misteriosa zona, visita Kane na cama de hospital onde este jaz inconsciente, sussurrando-lhe que sabe porque é que ele se voluntariou, pedindo desculpa, mas, mais uma vez, só mais tarde, percebemos porquê.
Um dos temas centrais de Annihilation, além da reconfiguração de memórias e da realidade, é a questão da autodestruição. Uma das personagens que acompanha Lena na expedição afirma que nem todos temos tendências suicidas, mas a maior parte de nós contém uma predisposição para a autodestruição, um “defeito” inerentemente humano, que provém da condição consciente da nossa existência: não só a autodestruição quotidiana em pequenos gestos pouco saudáveis, mas a sabotagem de elementos estáveis das nossas vidas, como por exemplo, das ambições profissionais ou do futuro de uma relação amorosa. Precisamente, logo após a entrada de Lena no Shimmer, assistimos a uma cena que julgamos ser uma fantasia, em que esta tem sexo com um homem, não o seu marido, mas um estranho, um colega que tinha aparecido no início do filme, durante o desaparecimento de Kane. Será esta “visão” proibida uma revelação de um desejo escondido, uma manipulação induzida pelo carácter intrusivo do Shimmer, ou algo mais, como a materialização de uma memória?
Outro ponto de contacto com Stalker e Solyaris é a presença-ameaça de um organismo ou ecossistema inteligente, de natureza extra-terrestre ou sobrenatural (ou até divino), que joga com o subconsciente dos humanos, que ecoa e manifesta fisicamente os receios e dúvidas das personagens, que lhes devolve como um espelho as suas inquietações. Aqui, o organismo vai distorcer o sentido de tempo e realidade sentido pelas personagens, alterando leis e comportamentos dados como adquiridos, imutáveis. Nessa zona controlada pelo organismo exógeno, encontramos a criação de um novo mundo, em que o ADN dos elementos naturais presentes é capturado e reconfigurado para dar origens a novas criações e permutações estranhas, exemplos e multiplicações impossíveis de fauna e flora. Como por exemplo na criação mais assustadora do filme: quando um urso, que tinha já morto uma das pessoas envolvidas na expedição, ataca o grupo de mulheres, e ao abrir a boca, expele os gritos desesperados dos últimos momentos de vida da morta, é a revelação de um medo que não sabíamos sequer existir, como acontecia em Under the Skin (Debaixo da Pele, 2013) de Jonathan Glazer, outro fantasmagórico filme que inverte os papéis e trata os humanos como presas, vítimas dos seus impulsos.
Nestas instâncias de acontecimentos bizarros, é como se a zona se espalhasse como um vírus, como uma patologia que tenta apreender a genética do seu hospedeiro, e que parece assim “herdar” o comportamento destructivo do Homem, os seus defeitos. A imagem do cancro como um organismo que se multiplica lentamente e invade o espaço de outro, é uma simbologia central do filme. A lenta expansão da zona ou Shimmer, infectando a terra à medida que avança lentamente é assim também uma imagem-espelho para a humanidade, na sua relação simbiótica com a natureza; não só na sua apropriação dos recursos naturais, mas também num sistema económico antropofágico que, desregulado, apenas pensa no curto prazo, sem pensar na subsistência, sua e da natureza, colocando em causa o seu próprio futuro – para a natureza, nós somos a infecção, e o Shimmer reflecte essa auto-destruição de volta para as personagens do filme.
Alex Garland constrói assim uma assombrosa fábula sensorial, em que os nossos receios e ansiedades são atirados de volta contra nós, e somos obrigados a assumir responsabilidades pelos nossos comportamentos. Isso é ainda mais verdade para Lena, que vê apenas um caminho para a redenção. A parte final do filme é no mínimo ambígua, enigmática. A verdade é que, apesar de sermos guiados pelas cenas de interrogatório que pontualmente surgem ao longo do filme, a partir do momento em que entramos no Shimmer, acompanhamos o ponto de vista subjectivo de Lena, desde a tal primeira cena, que pode ser uma fantasia, alucinação ou recordação. No Shimmer, descobrimos apenas o que ela vê, mas não sabemos tudo que ela sabe – isso só vai tornando-se claro mais tarde através dos tais momentos flashbacks evocados, como se tratasse para o espectador de uma experiência fora-do-corpo, em que não consegue controlar o destino da história.
Porém, apesar das diferentes interpretações possíveis dos últimos momentos no filme, fica no ar a possibilidade de estarmos perante a noção de uma segunda vida, de um recomeço – se pudéssemos voltar atrás, voltaríamos a fazer tudo da mesma forma? Isto é válido não só a nível pessoal, para Lena, mas também, parece comentar Garland, para o destino da humanidade. Em Ex-Machina, a certo ponto o génio informático que está a fazer de Deus, a desenvolver um robot com inteligência artificial, diz à pessoa encarregue de testar essa inteligência (sem saber que ele é que estava a ser testado): “Feel bad for us, man. All set for extinction”, ao que o outro responde com uma citação intemporal: “”I am become Death, the destroyer of worlds” – é esse o nosso destino, ou ainda há esperança?