Os Comprimidos Cinéfilos servem para isto: dar visibilidade a outros olhares sobre obras estreadas no mês que passou. Mas também têm como propósito revelar novos olhares sobre obras que, apesar da sua estreia, passaram despercebidas à nossa escrita. Assim, sobre o mês de Março (e Fevereiro) de 2018 recolhemos estes comprimidos: uma análise à importância da rotina em Phantom Thread (Linha Fantasma, 2017), depois do texto do Bernardo Vaz de Castro; um primeiro olhar sobre o novo filme de Ridley Scott, All the Money in the World (Todo o Dinheiro do Mundo, 2017); críticas à gargalhada grotesca lançada à História em Der Hauptmann (O Capitão, 2017) de Robert Schwentke e à pegajosa consciência liberal de Alexander Payne em Downsizing (Pequena Grande Vida, 2017); e finalmente, a propósito da recente estreia comercial do filme, um texto sobre No Intenso Agora (2017) de João Moreira Salles.
Phantom Thread (Linha Fantasma, 2017) de Paul Thomas Anderson
Tenho lido sobre este espantoso filme de Paul Thomas Anderson (PTA) e parece-me que não se tem referido algo de fundamental. É que o grande tema desta obra maior, requintadamente perversa, algures entre Ophuls e Mankiewicz, é a rotina. Parece que PTA nos diz: todas as relações não passam sem ela, isto é, sem a instituição de rotinas. A rotina como instituição, pois. E não é isso que nos diz todo o universo de PTA? Não é por causa dela, dessa elevação da ideia de rotina a movimento estético, que PTA se deixa tão facilmente atrair pelos seus retratos microcósmicos, de pendor antropológico, sobre os mais variados tipos de “cultura humana” (os meios do sexo, da televisão, do ouro negro, da religião)? A circularidade é incessante, poderosa. Muitas vezes é uma circularidade de câmara, mas aqui, mais interiorizada, psicológica, dramaticamente “literal”, digere-se mais lentamente ou limita-se a “perfumar o ar”. Está em todo o lado, mas não damos muito por ela. A câmara já não precisa de girar voluptuosamente, como antes, para versar sobre os círculos permanentes que as personagens desenham nas suas vidas. Elas também não precisam de se mexer muito – este é, muito conscientemente, o filme mais estático, mais vertical, de PTA.
A relação torturada das personagens de Daniel Day-Lewis e Vicky Krieps – que dupla soberba! – é um jogo de forças que tem como culminância a sequência da maliciosa refeição que irá substituir a antiga rotina por uma nova. O amor é formação de uma nova normalidade, aquela que permite conformar os hábitos e manias de um aos hábitos e manias de outro. PTA faz um comentário cruel a este facto que pertence, por inteiro, à mais corriqueira constatação sobre a nossa, tão previsível e mil vezes analisada, natureza humana. O amor é hábito, é conformação? Pois então que se saiba servir o seu veneno, dócil e perversamente. O cinema de PTA raras vezes foi tão longe na análise às relações humanas, nunca se concentrou tão intensa e cruelmente no momento em que a circularidade se transforma num puro movimento psicológico. A psicologia do amor diz-nos: não é a paixão, mas o tédio da repetição o veneno que cura, o repasto que conquista o poder todo-poderoso do amor. É belo, mas dói. Tenham medo.
Luís Mendonça
No Intenso Agora (2017) de João Moreira Salles
As imagens não são inocentes e os fantasmas esperam justiça. Esse é talvez o maior e melhor exercício que o mais recente filme de João Moreira Salles nos propõe. Composto entre imagens da excursão da mãe à China comunista de Mao, às imagens de resistência durante a ocupação nazi na Polónia, ao Maio de 68 em França, todas se reúnem para contar uma história. Uma história incerta, orgânica e onde o registo caseiro e o arquivo histórico se equivalem.
O que Salles procura estabelecer são conexões entre estrelas dispersas e com elas formar a bela constelação que é No Intenso Agora. Uma imagem de uma família brasileira onde a empregada negra surge no início para dar lugar à mãe-patroa branca, não é um simples registo de um momento familiar, é também uma imagem que revela as estruturas de poder e de classe no Brasil e que conduz a mãe-patroa branca a ocupar o primeiro plano enquanto a empregada lentamente se desvanece no fundo da imagem. Foram estas estruturas com as quais estamos demasiado familiarizados, que nos impelem à necessidade de outras imagens, imagens de resistência e de revolução em outros lugares. Mas a revolução e a resistência neste filme possuem a melancolia da imagem da mãe, porque tal como ela, tudo o que é sólido se desfaz no ar. É sobre este signo que todo o filme se constrói e a sua melhor qualidade, é também ela por vezes a causa da sua inconsistência.
Bernardo Vaz de Castro
All the Money in the World (Todo o Dinheiro do Mundo, 2017) de Ridley Scott
O novo filme de Ridley Scott começou por ganhar notoriedade por motivos extra-cinema, primeiro quando Kevin Spacey foi afastado e depois apagado digitalmente do filme, já as gravações tinham terminado, sendo substituído em tempo recorde por Christopher Plummer; e mais tarde, quando veio a saber-se que, para completar as tais filmagens de substituição, Mark Wahlberg teria sido pago 1.5 milhões de dólares, enquanto que Michelle Williams teria recebido menos de mil dólares. São factores que deveriam passar ao lado da análise ao filme, mas que de forma sucinta, quando se trata de um filme que explora os efeitos da ganância sobre as relações humanas, que questiona a importância do dinheiro perante outros valores, e que é sobre uma sucessão trágica de falhas de empatia, acabam por dizer mais sobre o estado do mundo actual do que o próprio filme – como se Williams sofresse ainda da mesma desconsideração que afligia a sua personagem algumas décadas antes, sem que o filme consiga perceber porquê. Este é eficaz quanto baste a contar uma história baseada em factos reais, eficiente a manter a tensão em relação ao desfecho final e bem apoiado em algumas interpretações (em particular de Plummer e Williams), mas de resto é bastante anódino, sem muito a dizer além da recriação histórica (o filme parece atraído pela opulência que é suposto criticar), e de uma atracção por gestos grandiosos e de caricatura em relação à maior parte das suas personagens.
All the Money in the World conta a história do rapto em 1973 de um dos netos de J. Paul Getty, na altura a pessoa mais rica do planeta, um magnata do petróleo, mas que aqui fica mais perto do retrato solitário e uni-dimensional de Howard Hughes em The Aviator (O Aviador, 2004) do que do indomável e complexo Daniel Plainview de There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007). Getty recusa-se a pagar o resgate pedido pelo seu neto, com a justificação de que isso apenas iria encorajar outros raptos, porém contrata um antigo agente da CIA (um Mark Wahlberg a fazer apenas de rufia bem vestido) para acompanhar o caso como investigador. Ridley Scott recorre a uma série de truques, como a passagem da fotografia a preto e branco para cores, o uso de flashbacks e narrativas paralelas, mas o somatório não tem qualquer elemento distintivo, excepto talvez uma cena de gore, que surge bastante deslocada do resto do tom do filme – é assim um filme anónimo, que pouco nos diz sobre o seu autor. O filme encontra porém a sua âncora e interesse num par de personagens – a mãe do raptado e o raptor inicial – que acabam por encontrar-se em situações semelhantes, fora do seu controlo, desamparadas no meio do oportunismo e avareza. Aproveito então para fazer uma sugestão de um outro filme sobre um rapto em Itália, Buongiorno, notte (2003) de Marco Bellocchio, muito mais tenso na forma como explora a relação entre raptor e raptado, mais claustrofóbico e sensorial na escassez e controlo da informação, e que explora os efeitos psicológicos nos envolvidos numa situação extrema de forma mais retumbante.
João Araújo
Der Hauptmann (O Capitão, 2017) de Robert Schwentke
Há um problema de tom e registo neste filme de Robert Schwentke. Se a premissa podia prometer um bom filme de acção, directo e desadornado, à la Raoul Walsh – onde as “trocas de fardas” são recorrentes, como sabemos -, pois então que o espectador esqueça: o filme de Schwentke não se assumirá como tal. Se a premissa podia prometer uma comédia em tempos de guerra à guisa de um Chaplin – lembram-se da forma como baralha papéis Charlot em Shoulder Arms (1918), comédia delirante sobre a centenária guerra das trincheiras? -, pois o espectador que refreie as expectativas, porque fazer comédia não é o mesmo do que lançar à História uma gargalhada sardónica. Entre este putativo filme de guerra, cuja acção não se desenvolve, expurgado que se apresenta de tensão e pulsação cinéticas, e a sua proposta histórica de transformar a acção de um grupo desertor das SA (Tropas de Assalto) numa paródia à decadência do regime nazi nos últimos dias da guerra, O Capitão perde-se em “terra de ninguém” cinematográfica.
O alemão Robert Schwentke, que tem feito boa parte da sua carreira nos Estados Unidos, não tem unhas para tocar esta viola. Perde-se algures num grotesco mau gosto que o vai consumindo até aos inqualificáveis instantes finais, performance de rua – estilo “apanhados” de Nuno Graciano em versão artsy – que transforma a memória do nazismo num circo de gratuita interpelação contemporânea. Face à incapacidade de fazer um filme que nos faça revisitar a Segunda Guerra Mundial à luz dos nossos dias, Schwentke literaliza esse movimento e transporta as personagens do filme para as ruas da Alemanha de hoje. É o triunfo do grotesco, uma tentativa de forçar a pertinência crítica de uma actualização ou revisão históricas à la Inglourious Basterds (Sacanas Sem Lei, 2009). Mas não: O Capitão não tem cinema para isso.
Luís Mendonça
Downsizing (Pequena Grande Vida, 2017) de Alexander Payne
Aquando da estreia de Nebraska (2013) de Alexander Payne, apropriei-me das palavras de outros críticos (a propósito de também outros filmes do realizador) para reforçar o argumento de que visto um dos filmes de Payne já os vimos todos, ou pior, que escrever sobre o seu cinema é apenas repetir todas as ideias que os seus primeiros filmes correctamente prometeram – mais do que um novo movimento, cada filme seu representa um aprimoramento da coreografia que vamos vendo ensaiada à cadência de um título a cada três anos. De novo, posso dizer que Downsizing é uma “comédia sacada ao desconforto“, uma “história de desespero surdo“, no fundo uma prova de que o “‘mainstream’ pode renovar-se com talento” naquilo que é cinema para um “espectador adulto“. E no fundo ficamos na mesma, com o mesmo filme simpático, bem educadinho, com o coração no sítio certo, as intenções a encher a boca e a boa natureza a saltar da ponta da língua. Não se queixe o espectador que há muito pior. Correcto, mas Payne virou pain in the ass, coisa chata, morrinha irritante, grilo da consciência liberal norte-americana que só dá vontade de esmagar com um pesado martelo (como na versão original de Pinocchio).
Ainda assim há, em Downsizing, qualquer coisa que segura o filme (como há sempre nos filmes de Payne). Neste caso, a ideia de casa de bonecas que o filme pensa a partir de The Ladies Man (O Homem das Mulheres, 1961) de Jerry Lewis – que é citado directamente (?) na sequência com Neil Patrick Harris. A miniaturização dos personagens (que o filme propõe como “metáfora” não-tão-irónica-assim sobre o aquecimento global) é mais uma desculpa para o realizador se divertir com os gags da escala, à imagem de The Incredible Shrinking Man (Os Sentenciados, 1957), de Jack Arnold, e todas as outras declinações do sub-género (dos monstros gigantes que destroem Tóquio aos miúdos que o querido encolheu). Aí, o filme encontra um escape à seriedade adulta que o cinema do realizador norte-americano parece ter cristalizado ao ponto de caramelo (daqueles que se colam ao dentes). Isso, e também a sensação de que o filme se vai torcendo segundo guinadas narrativas que o atiram para temas e “dimensões” inesperadas.
Ricardo Vieira Lisboa
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