Os efeitos especiais são quase tão antigos quanto a invenção do cinema. Contam-se entre os primeiros feitos a inversão do movimento na imagem que reconstruiu um muro jogado ao chão por acção de martelos pneumáticos. Os Lumière eram sensíveis à capacidade manipuladora, destrutiva e reparadora, do dispositivo cinematográfico. Quase tanto quanto Méliès, mesmo que a este interessasse a produção de um espectáculo fantasioso feito de viagens impossíveis pelo espaço fora ou truques de montagem que transformavam homens em animais ou coisas e vice-versa. O grau de fantasia era diferente, mas os efeitos especiais seduziam e, mesmo no caso dos “realistas” Lumière, convidavam à exploração. O cinema, entretanto, tornou-se uma grande fábrica de ilusionismo, mas caminhando no sentido de um realismo, ou hiper-realismo, animado por CGI, “Computer Generated Images”. Fala-se de “anima-realism”, a produção de uma realidade de figurinhas e simulações pós-platónicas que nos parecem mais convincentemente reais do que a realidade de câmara. O novo cinéma vérité é feito de zeros e uns, produzido em softwares de última geração e por acção de programadores que sabem mal o que é uma câmara de filmar, um set ou o que faz um actor de cinema. Mas os novos efeitos especiais são aquilo que fazemos deles. É aqui que entra a história de dois filmes que apanhei a dar na televisão por acaso, que me chamaram a atenção pela forma, já plenamente integrada no tecido do mundo, como os efeitos especiais servem o universo dramático: o recém premiado Os Humores Artificiais (2016) de Gabriel Abrantes e o filme de culto F/X (F/X – Efeitos Mortais, 1986) de Robert Mandel.
Via há dias o documentário Spielberg (2017) e apercebia-me, revendo a matéria dada, parte constituinte da minha infância, que o cinema mudou decisivamente no ano de 1993. Steven Spielberg lançava dois objectos díspares, Schindler’s List (A Lista de Schindler, 1993) e Jurassic Park (Parque Jurássico, 1993). Com isso, parecia ter apresentado ao mundo um menu “carne ou peixe”: ou o futuro pertencia a filmes adultos sobre assuntos sérios ou a filmes infantilizados sobre assuntos pouco sérios. A divisão parecia ser esta. Mas, neste longo documentário, que é pouco mais que um grande elogio à carreira daquele que deve ser o realizador mais popular da história do cinema, apercebi-me da concomitância de dois momentos nesses filmes tão aparentemente dissociáveis. A sequência da rapariga com o casaco vermelho – recorte de cor numa fotografia a preto-e-branco de Janusz Kaminski – que é avistada à distância por Schindler a percorrer as ruas do gueto judeu enquanto o massacre de homens e mulheres acontece à sua volta, qual parque temático do extermínio nazi, em certa medida rima com a sequência em que Sam Neill e Laura Dern dão de caras com os primeiros dinossauros no “parque jurássico”. No rosto de Schindler, que supostamente reage ao que também nós vemos em contra-campo, a câmara de Spielberg debita uma espécie de pedagogia do espanto.
Trata-se este de um caso em que os efeitos especiais estão plenamente integrados no seu mundo, sendo F/X um showcase do que podem estes valer como ferramentas de sobrevivência e (contra-)ataque.
As personagens não estão in awe, em choque ou maravilhadas, com o que vêem, pessoas que são parte de um evento histórico ou animais provenientes da pré-História, mas com o espectáculo que se gera num contra-campo impossível. Com efeito, o casaco vermelho é o efeito especial mais notável de Schindler’s List tal como os dinossauros virtualmente reproduzidos inauguraram, com estrondo, a entrada do CGI nos filmes – uma verdadeira tomada de assalto, perceberíamos mais tarde. As personagens, pela forma como Spielberg as filma, ensinam-nos a sermos espantados não com o que os efeitos especiais exibem mas com a exibição dos efeitos propriamente ditos. “Vejam, eu consigo isto”, “vejam: o espectáculo do cinema pode tudo em qualquer lugar”. Spielberg celebra, e celebra-se, neste instante que constituiu uma viragem, sem retorno, do cinema mundial. Agora, eram os efeitos do filme os verdadeiros protagonistas – as personagens secundarizavam-se face a eles, reduziam-se à “reacção” que nos ensinava a sermos espantados. Os efeitos passam a aspirar à mais fantástica alegoria que diz – às vezes grita-nos – que não há impossíveis: a extinção dos dinossauros ou dos judeus fora palco de um espectáculo de vida para lá da morte. Essa vida para lá da morte, a do cinema, digo, são os efeitos especiais digitais. Como escreveu J. Hoberman no livro Film After Film, “o sonho de Bazin chegou como um pesadelo, sob a forma de uma existência ciber-virtual: o Cinema Total como uma dissociação total da realidade.” No casaco vermelho da rapariguinha judia já se anunciava, como num punctum, essa dissociação total.
Mas se os efeitos especiais tendem à fantasia e à alegorização, eles também podem promover um efeito inverso. Isso acontece quando deixam de tomar conta do mundo do filme e passam a ser parte integrante dele. Esta produção de efeitos digitais “deste mundo” tem tido vários exemplos. Desde os gémeos de The Social Network (A Rede Social, 2010) à personagem do ursinho falante de Ted (2012), nem sempre o efeito especial está aí para gerar espanto e/ou uma dissociação com o real, mas, no caso, para produzir, em si mesmo, uma dissociação de outra ordem: do efeito com o que é especial. Esta naturalização do efeito é tratada com grande sentido de humor por Gabriel Abrantes, nomeadamente num dos seus mais recentes filmes, Os Humores Artificiais. A curta-metragem passou no canal TVCine 2 quase ao mesmo tempo que era premiada no Córtex. Já conhecíamos o seu drone sentimental, de Ennui ennui (2013), um segway medieval, de The Hunchback (2016), mas, agora, somos apresentados à história de um robô stand-up comedian (gerado digitalmente por um computador) que descobre o amor (gerado sentimentalmente pelo coração). Este improvável herói vindo da imaginação improvável de Gabriel Abrantes parece resultar do cruzamento entre WALL-E e BB8. O filme propriamente também oscila entre, como o próprio Abrantes escreve na sinopse, a estética de Hollywood e estratégias documentais; diria eu que vacila entre um filme de domingo à tarde da Pixar e um filme de domingo à tarde dos irmãos Farrelly. Gabriel Abrantes perdeu o seu tom escarninho, a auto-ironia camp que se refugiava de quando em quando no ridículo para pouco ou nada dizer de relevante. Agora ele é inteiramente o que parece ser: um genuíno sentimentalista a brincar aos géneros fílmicos, pouco interessado em ir para lá da superfície de fábulas sem complexidade que versam sobre os nossos já intrinsecamente complexos tempos modernos. O seu optimismo pode ser vagamente pateta, mas vê-se Os Humores Artificiais com um sorriso nos lábios e o coração quente.
Visto no canal AXN Black, F/X é um thriller que transforma os efeitos especiais numa questão muito concreta, de vida ou de morte, dentro do filme. Um especialista em efeitos especiais conhecido por “Rollie”, mestre das próteses e do gore em filmes de gosto duvidoso, é contactado pelo FBI para, no âmbito de um programa de protecção de testemunhas, encenar a morte de um poderoso whistle blower da máfia italiana. A encenação resulta na perfeição, mas o plano não corre como planeado para “Rollie”, que rapidamente se apercebe de que lhe foi montada uma armadilha. O filme, a partir daqui, já não mais sairá dessa fronteira ténue que separa o verdadeiro do falso, o autêntico do fingido, a vida do cinema. Mas o nosso herói não ficará sentado à espera do destino que outros lhe traçaram. Ele vai responder, fazendo uso da sua arte, em particular, de um jogo de máscaras e espelhos que vão produzir, nos últimos minutos, um verdadeiro inferno na terra para os conspiradores do FBI.
Quantas vezes foi o cinema, numa das suas vertentes “secundárias”, transformado com tanta eficácia em assunto para um filme? Os efeitos especiais são aqui como a magia que vira os planos do FBI contra si mesmos. No fim, “Rollie” encena a sua vingança com “fire and fury” numa longa sequência de acção filmada sem pompa que se alimenta do mesmo gosto lúdico de um Home Alone (Sozinho em Casa, 1990). Trata-se este de um caso em que os efeitos especiais estão plenamente integrados no seu mundo, sendo F/X um showcase do que podem estes valer como ferramentas de sobrevivência e (contra-)ataque. Com tudo isto, este é também um filme caracterizado por uma certa sobriedade, não deixando, assim, que o assunto tome conta da forma: ironicamente, F/X é extremamente rudimentar do ponto de vista dos seus efeitos especiais. O especial aqui está na arte e engenho de quem aplica esses efeitos ao mundo regido pela lógica não do espectáculo mas da sobrevivência.