Meio ano após a primeira edição dos Estados Gerais, dedicado ao cinema de terror, regressamos a esta nova rubrica, onde convocamos especialistas numa dada área ligada ao cinema para, em longas conversas, dissecarmos e debatermos em profundidade um determinado tema. Desta feita, os walshianos Carlos Natálio e Ricardo Vieira Lisboa procuraram fazer os estados gerais do cinema português (tarefa hercúlea e falhada logo de partida). Ainda assim convidaram três nomes de peso para comporem a mesa: o realizador, ex-director da Associação pelo Documentário – Apordoc e conservador no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento [ANIM], Manuel Mozos; o director do festival IndieLisboa (cuja próxima edição ocorre entre o próximo dia 26 de Abril e 6 de Maio), produtor e professor de Direitos de Autor, Miguel Valverde; e o investigador e professor de cinema e programador do festival Curtas Vila do Conde, Paulo Cunha (também um cronista walshiano).
Pode o cinema português ser visto como um género cinematográfico? Como definir “cinema português” e quais as suas características, os seus núcleos temáticos, as suas recorrências? De que forma a precariedade e o financiamento diminuto se traduzem como elementos definidores do cinema que se faz por cá? E o financiamento como política cultural, existe? De que modo gerações de cineastas nacionais se influenciam umas às outras? Que escolas, facções e afinidades cinematográficas existem em Portugal? Qual a persistência dos ideais de “portugalidade” do Estado Novo que ainda persistem no cinema português? O que são espaços cinéfilos e como ocupá-los? Vivemos todos numa “bolha”? É possível pensar a produção cinematográfica a partir de uma perspectiva corporativa? E qual a importância das escolas e das alternativas de financiamento como a Fundação Calouste Gulbenkian? Existe cinema experimental em Portugal? E uma escola de animação portuguesa? O formato da curta é definidor do nosso cinema? E a história, quem a escreveu e como? De Reinaldo Ferreira a Gabriel Abrantes, de António Palolo a Regina Guimarães, de Virgínia Castro Almeida a Pedro Costa, de Leitão de Barros a Leonor Teles; que a conversa comece!

Carlos Natálio (CN): Estas conversas surgem com base numa reavaliação dos géneros cinematográficos que definiram a história do cinema: a comédia, o western, o musical, o terror. E o nosso ponto de partida foi organizar conversas sobre de que modo estes géneros tinham morrido, se se tinham adaptado ou metamorfoseado. Mas achámos também que estas conversas mais longas fariam sentido sobre outros temas. Ao preparar esta conversa lembrei-me de aplicar, como mote, a lógica do género cinematográfico à ideia de cinema português. E pensar se faz sentido falar de um “género” de cinema português, e, fazendo, que características teria esse género?
Ricardo Vieira Lisboa (RVL): Quando pensamos em géneros, pensamos em lugares-comuns e clichés. Pensamos no western e vem-nos à cabeça a imagem de um cowboy de pernas arqueadas. No cinema português, enquanto género, talvez seja produtivo pensar que lugares-comuns são esses. O cinema português, para um certo público pouco conhecedor, é uma coisa muito estrita e fechada. Até há uns anos o cinema português era quase sempre descrito como lento, palavroso, aborrecido, estático… Os adjectivos sucediam-se. Hoje em dia diria que o panorama não é o mesmo, mas creio que este pode ser um bom ponto de partida. De que modo os clichés do cinema português têm ou não razão de ser, e de que modo são (ou podem ser) eixos formadores dessa tal ideia de género cinematográfico.
Paulo Cunha (PC): Começando logo de forma polémica: essa ideia de o cinema português poder ser um género é algo que me assusta e perturba. Porque um género é uma norma ou uma fórmula, que apesar das suas possíveis reinvenções, segue sempre uma série de arquétipos e clichés. O cinema português, apesar de em diversos momentos da sua história ter sido reduzido a esses clichés (os Pátios das Cantigas, as Avenidas Novas…), tem sido muito mais que isso. Como qualquer cinema de um território, de um espaço ou de uma comunidade. Portanto, logo à partida, tenho um problema com essa premissa. Qualquer redução é, passando o pleonasmo, redutora. É uma perspectiva que não me agrada. Para mim o cinema português é uma etiqueta que é muito pacífica: é aquele cinema que é feito em Portugal, quer seja feito por franceses, ingleses ou chilenos. Se nasce em Portugal é português. Para ser muito simplista, é isto. Outras questões, como a língua em que os diálogos são falados, são hoje banalidades num panorama de cinema transnacional.
As referências hoje, não são já geográficas, nem sequer culturais, são cinéfilas. É a cinéfila que permite, hoje em dia, aproximar ou afastar realizadores.
Mas, claro: houve tempos em que isso foi a norma. O [António] Ferro tentou transformar isso em decreto de lei. Em 1948, há um decreto que define o que é um filme português: tem que ser falado em português, feito por um realizador português e respeite os grandes temas da portugalidade. Mas nós hoje não sabemos o que isso é… Se calhar nem na altura se sabia muito bem o que era isso da portugalidade… Aliás, eram uma série de clichés que foram consolidados nos anos 30 e 40 sobre o ruralismo, sobre a matriz judaico-cristã, a gesta dos descobrimentos, enfim, todos esses valores do Estado Novo que se confundiam com os valores do país. Hoje em dia não faz sentido nenhum falar nisso. O paradigma das barreiras nacionais no que diz respeito à produção cinematográfica está completamente ultrapassado. No entanto, creio que faz muito mais sentido agrupar cineastas por afinidades estéticas ou éticas, o que coloca um realizador português, se calhar, mais próximo de outro, tailandês, do que do colega que vive no mesmo prédio que ele. Porque as referências hoje, não são já geográficas, nem sequer culturais, são cinéfilas. É a cinéfila que permite, hoje em dia, aproximar ou afastar realizadores.
RVL: Mas seu eu for à Fnac tenho um corredor world cinema e uma prateleira (pequenina) de Cinema Português. Por isso, para todos os efeitos, o cinema português é, pelo menos, uma categoria…
PC: … em Portugal.
RVL: Mas também fora, como sub-género do world cinema.
PC: Esta casa onde estamos hoje [Cinemateca Portuguesa], desde a sua formação até aos anos 80, chamava-se Cinemateca Nacional, depois passou para Cinemateca Portuguesa. As Fnac’s, pelo mundo, devem ter prateleiras com os respectivos cinema nacionais, mas depois deverão organizar a coisa por continentes: Cinema Europeu, Cinema Asiático, Cinema Sul-Americano… Em Portugal não tens prateleiras de cinema brasileiro ou italiano.
Miguel Valverde (MV): Em Portugal até acontece o cinema brasileiro estar junto com o cinema português, por causa da língua…
PC: E também por causa das co-produções, que acabam por baralhar um bocado essas contas. De qualquer forma, a categoria da prateleira da Fnac serve como forma de identificar “o que é nosso”. Não se vê prateleiras de cinema português em mais lado nenhum sem ser em Portugal. Se fores ao BFI [British Film Institute], em Londres, o [Pedro] Costa está ao lado do [Aki]Kaurismäki. O paradigma das nacionalidades é uma coisa que hoje não faz muito sentido, nem sequer é muito prático para os interesses do consumidor.
RVL: Mas como dizias, há por territórios…
PC: Mas quanto mais reduzido é o território, maior é o peso dessa categoria. Falar em cinema europeu é nada mais que uma apreciação geográfica.
MV: Eu concordo com aquilo que o Paulo disse, mas, para colegas de festivais estrangeiros, há claramente uma categoria que é o Cinema Português. E embora ache que nenhum deles conseguiria enumerar um conjunto de características unificadoras (é mais fácil dizer “cinema português” do que estar a percorrer um conjunto de realizadores que lhes interessam) há uma ideia de conjunto. Curiosamente, uma coisa que é costume ouvir é “não gosto nada de cinema espanhol e gosto muito do cinema português.” Mas isso é uma daquelas generalizações que são muito redutoras. Sempre que se fala das novas vagas de cinema romeno, cinema húngaro, cinema disto e daquilo, são coisas, que como a palavra indica, são modas que passam e fazem-no muito rapidamente. Mas se há uma característica que eu acho que é própria do cinema português é que não aparece por vagas, ele está sempre um bocado na moda.

Eu lembro-me de o director da Cinemateca Francesa, em 1996 ou 1997, quando foi mostrada aquela versão restaurada do Douro, Faina Fluvial (1931-1994) musicada pelo Emanuel Nunes, dizer (na presença do Oliveira, da Leonor Silveira e de uma grande comitiva) que o cinema português, para ele, não era algo que chegara àquele momento como algo muito importante (a década de 90), mas que era, antes sim, composto por cineastas que se distinguiam fora dessa ideia de “género cinema português”. E outro aspecto que ele referiu foi o de que ouvia de outros colegas que “isto era tudo muito diferente”. Eu concordo: apesar de muitos cineastas até trabalharem juntos e fazerem colaborações técnicas e artísticas nos filmes uns dos outros, caminham cada um o seu caminho, podendo ou não ser influenciados pelos filmes dos colegas (ao ponto de ser difícil identificar qual era a origem de cada um). Acho mesmo que cada autor explora diferentes géneros, e se calhar isto soa um bocadinho pretensioso, mas acho que de certa maneira os filmes fazem-se do génio de cada um, que vai sozinho e embarca numa proposta de universo. Essa sim, se tivermos que afirmar uma característica unificadora, é o cinema português ter sido capaz de acolher os filmes que os realizadores quiseram fazer (ao contrário de outros regimes de produção noutros países do mundo). O próprio facto de o Instituto de Cinema não confirmar que os guiões que são aprovados em concurso por um certo júri correspondem de facto aos filmes finalizados, é uma liberdade de criar que não existe em muitos países.
RVL: Se nada mais houver que ligue os filmes que se fazem em Portugal, uma coisa há, pelo menos: a precariedade dos meios. São todos filmes feitos com muito pouco dinheiro, comparando com o cinema que se faz pela Europa, para não ir mais longe. Uma produção de muito baixo-orçamento em França é multi-milionária em Portugal – isto é um facto. Isto, certamente, é uma característica unificadora…
MV: França é um território um pouco à parte, mas se fores à Islândia, República Checa, Roménia (e descontares as co-produções com os países com grande produção, que mesmo no cinema português é cada vez mais uma realidade), os orçamentos não são assim tão longínquos. Obviamente, o orçamento que o Oliveira tinha para filmar nada se compara com o de um primeiro filme de um cineasta emergente. Por isso, apesar de tudo, há muitos matizes nisto tudo. Muitos tipos diferentes de migalhas…
Manuel Mozos (MM): Há, claramente, excepções. Ao longo da história do cinema português houve vários filmes que tiveram grandes orçamentos. O problema é que, naturalmente, são filmes que nem sequer se aproximaram de conseguir o retorno do investimento. Voltando um pouco atrás na conversa, no que diz respeito à questão dos géneros – e como o Paulo disse –, houve esse decreto que institucionalizou os próprios géneros que deviam ser feitos. Géneros que o António Ferro desaprovava, como a comédia. Aquilo, se não me engano, estava dividido em dez tipos de filmes que se deveriam produzir: adaptações literárias, filmes históricos, filmes com carga folclórico-etnográfica, comédias, policiais, etc. E aí houve, de facto, uma vontade de definir os géneros “permitidos” do cinema português, mas na prática nunca foi uma coisa que tivesse efeito.
Fala-se muito das comédias dos anos 40, mas se se for a ver, aquilo reduz-se a cinco ou seis filmes. Nos anos 50 aquilo vira um disparate, surgindo sub-géneros que são uma miscelânea do nacional-cançonetismo com tramas melodramáticas ou semi-policiais. Mas no cinema mudo, na figura da produtora Invicta Filmes, ao contratar realizadores estrangeiros por achar que em Portugal não havia realizadores, fizeram-se muitas adaptações literárias. E fica por saber se isso não funcionou por causa do surgimento do sonoro ou se por outros motivos. Mas realmente, a geração que aparece depois insurge-se contra esse modelo e quer fazer um cinema diferente: [António] Lopes Ribeiro, [José] Leitão de Barros, [Jorge] Brum do Canto, Chianca de Garcia e o próprio Oliveira. Eles começam por experimentar, na onda da primeira vanguarda francesa, e cada um deles tem filmes que são fortes exemplos de um cinema autoral. Depois partem para modelos coniventes, ou próximos, das prerrogativas do Ferro e de uma coisa de interessa nacional. Mas o cinema português nunca foi politicamente atraente. Os filmes obviamente de propaganda, A Revolução de Maio (1937) e O Feitiço do Império (1940), não tiveram a pujança comercial que se esperava. E esse tipo de modelo teve o mesmo desfecho, como os filmes históricos do Camões ou do Bocage. É sintomático como o caso do Leitão de Barros que fez o Vendaval Maravilhoso (1949), que foi um filme caríssimo, com a Amália, e que pelo desastre que foi nunca mais permitiu ao realizador fazer cinema de ficção. E o Lopes Ribeiro, o produtor, só conseguiu fazer O Primo Basílio (1959). Aliás, todos os realizadores dessa geração deixaram de filmar nessa altura.
Considerar o próprio cinema português como um género é muito mais uma facilidade de entendimento na promoção exterior dos filmes.
E depois a chamada geração do Cinema Novo vem contrariar o cinema da geração predecessora, mas, como ela, é igualmente um cinema de ideal político. Mas os filmes do Cinema Novo, se formos a ver, são também muito poucos, e não creio que se possa identificar um género concreto. Há uma grande liberdade e precariedade em tudo isto. E mesmo hoje em dia, em filmes como A Estrada de Palha (2012) do Rodrigo Areias, ou numa coisa mais marginal, os filmes do Mário Fernandes ou da série do [João] Canijo, Alentejo sem Lei, que são exemplos de westerns em Portugal. Ou mesmo o musical surge no cinema do Miguel Gomes, do João Nicolau ou do Fernando Lopes, no Crónica dos Bons Malandros (1984). Mas nunca é como o sistema de Hollywood. Nunca há uma linha concreta de fazer cinema de género. Agora, se considerarmos como género o próprio cinema português, eu acho que isso é muito mais uma facilidade de entendimento na promoção exterior dos filmes, como dizia o Miguel. Porque eles, quando falam do cinema português, estão a falar do César Monteiro ou do Pedro Costa, não estão certamente a falar do Leonel Vieira ou do [Fernando] Fragata.
PC: É um conjunto de realizadores que tem afinidades, como na lógica da família.
MV: Mas na Fnac, na prateleira do cinema português, encontras o Oliveira e o Leonel Vieira lado a lado.

CN: A nossa ideia era um pouco brincar com isto. Não necessariamente perceber de que modo o cinema português se enquadra na ideia de género como a conhecemos, mas antes, tentar perceber que expectativas irão na cabeça desse espectador-consumidor que se abeira da dita prateleira da Fnac. Expectativas essas motivadas, claro, pelos filmes que viu. E aí certamente será muito diferente um espectador-consumidor estrangeiro que tem acesso aos filmes exibidos em festivais e o espectador-consumidor português dos multiplexes e da televisão. Por outro lado, também nos interessa discutir convosco os núcleos temáticos que se foram construído dentro do conjunto dos filmes portugueses. Por exemplo, no outro dia estava a rever um texto sobre o John From (2015) em que o João Lameira integrava o filme na “categoria” dos “filmes de Verão, das férias grandes, das tardes intermináveis, do tépido tédio entorpecedor, um dos “géneros” mais marcantes do cinema português.” E depois dá o exemplo do Uma Pedra no Bolso (1988) e do À Flor do Mar (1986). Por isso a ideia de género, aqui, é a mais a cristalização de núcleos temáticos, como: o fascínio por certas localidades rurais, com Trás-os-Montes ou os bairros sociais à cabeça, ou o filme de Verão. Núcleos temáticos que talvez não tenham o peso de um género, mas que são uma espécie de relação de afinidades em que um filme produz outro e esse influencia o seguinte, e por aí fora. Quando uma pessoa dá por si percebe que o cinema português, com uma produção limitada, tem seis, sete ou oito filmes com uma forte eixo temático a uni-los.
RVL: Que comunicam directamente uns com os outros. E todos partilham um olhar que tem pontos de ligação muito evidentes.
MV: E de realizadores de diferentes gerações…
PC: Sim, e que se vão citando e referenciado uns aos outros com base nas suas preferências. O facto de um realizador escolher um set específico, um certo prédio ou cidade, traz consigo uma herança cinéfila. Em Portugal, a maior parte do cinema é produzido em Lisboa e tem Lisboa como cenário de fundo. Por isso, é complicado andar a fugir de certos lugares e avenidas.
RVL: Sim. Ir para Trás-os-Montes filmar deve ser um problema para qualquer realizador. O que raio vou eu fazer para Trás-os-Montes que já não tenha sido feito e em melhor?
MV: Sobre as duas questões que o Carlos levantou: da minha experiência a lidar com os olhares estrangeiros que nos visitam e pensam o nosso cinema, eles não seguem essa etiqueta. Eles vão à procura daquilo que conhecem, dos autores que lhes são familiares: a Teresa Villaverde, o César Monteiro, o Pedro Costa… E depois, exactamente porque andam à procura desses filmes, são-lhes recomendados (por algum crítico ou realizador amigo) filmes de outros cineastas que partilham com estes alguma afinidade.
PC: Ou muitas vezes as pessoas lêem uma entrevista do Pedro Costa e ele fala do António Reis e, de repente, há um interesse redobrado para conhecer quem é essa figura que influenciou o Costa. E o fio de novelo das referências começa a conduzir o interesse do cinéfilo. Mais uma vez, a ideia que norteia isto não é mais o território, nem a identidade cultural ou nacional, é a cinéfila. É o exercício da citação, da referência (nos filmes, numa crítica, numa entrevista). Mas sim: há espaços em Lisboa que são marcadamente cinéfilos e as pessoas fazem questão de denotar essa cinefilia.
MM: Eu não sei se é assim tão verdadeiro. O que é um espaço geográfico num filme? É obvio que se alguém for fazer, nas Avenidas Novas, no cruzamento com a Estados Unidos da América, uma história sobre um sapateiro e uma sopeira… É obvio a que é que se está a referir. Mas por exemplo, vês o Manhã de Santo António (2012) do João Pedro Rodrigues, que é filmado exactamente no mesmo espaço, e nada no filme te remete para Os Verdes Anos (1963) [1] [2] [3]. Ou vês o Black and White (2000) do [Daniel] Blaufuks e também não tem nada que ver. A utilização da geografia é, hoje em dia, uma coisa diferente. Claro que havia a pastelada dos bilhetes postais em que se tem que mostrar os Jerónimos, a Torre de Belém e o Castelo. Outra coisa é a utilização do décor ou do espaço geográfico quase como complemento do personagem. E nisso eu julgo que não é limitativo. Pronto, um gajo diz que vai filmar para Trás-os-Montes e claro, lá está outra vez o Reis. Mas eu posso fazer um filme em Trás-os-Montes fechado numa casa e ninguém percebe onde é que estou a filmar.
RVL: Eu faço sempre esta piada, sobre este assunto, que é: “Como resolver todos os problemas de financiamento do cinema em Portugal? Resposta: construir um bairro social em Trás-os-Montes”. [Risos] E depois, os realizadores faziam residências artísticas lá… Uma amiga, a Margarida Moz, resume isto com a expressão “Caretos e Carochos”. Isto é, há um número muito significativo de filmes do cinema português pós-25 de Abril que ora são rodados num bairro social, ora são rodados em Trás-os-Montes. E estes dois temas estão sempre a ressurgir no cinema português, das mais diversas formas, é certo, mas são já lugares-comuns, literalmente, de um filme português.

MV: Mas há uma coisa que eu sinto, independentemente disto, é que não nos podemos esquecer que, no Manhã de Santo António, o João Pedro Rodrigues mora naquela zona, e o Miguel Gomes também não mora muito longe. Esta casualidade de viverem num “espaço geográfico cinéfilo” dá-se porquê? Certamente não se mudaram para lá por causa dos filmes, assim como, certamente, interessam-se com filmar aqueles espaços porque é por lá que passam todos os dias e conhecem melhor. Quanto a Trás-os-Montes, acontece também que muitos cineastas ou são de lá, ou tem família lá, ou passaram lá muitas das suas férias de infância. Por exemplo, o Gabriel Abrantes, que ninguém diria, tem uma avó de Trás-os-Montes e o projecto da primeira longa-metragem dele [Diamantino (2018)] passa-se exactamente na aldeia de onde ela é – e já a curta, O Corcunda (2016), também é filmada lá perto. E de repente tens a Cristèle [Alves Meira] que volta ao Vimioso de onde é originária a família [para fazer o Campo de Víboras (2016)]. Isto acontece muito, um pouco por todo o país. Mas no Algarve eu diria que é um pouco diferente, toda a gente filma entre Tavira e Albufeira. Eu não conheço um único filme rodado em Portimão, de onde eu sou. O Pedro Caldas, que também fez um filme de Verão [Guerra Civil (2010)], filmou um bocado mais para cima. E muitas vezes está ligado ao lugar onde as pessoas passam férias. O Sophia de Mello Breyner Andresen (1969) do César Monteiro é filmado em Lagos porque era lá que ela passava férias. E estas recorrências têm muito mais que ver com vivências do que com famílias artísticas. Por exemplo, o fascínio do João Mário Grilo pela Figueira da Foz tem, mais uma vez, muito que ver com a sua ligação familiar àquela terra.
RVL: Mas por exemplo: o bairro da Bela Vista. Tem sido filmado por realizadores muito diferentes (e que não nasceram nem cresceram lá). Ora a dupla Filipa César e [João] Miller Guerra, ora o Pedro Pinho [Um fim do mundo (2013)] ou agora o Marco Martins [São Jorge (2016)]. É o mesmo espaço, olhares completamente diferentes, mas há uma ligação que se prende com o espaço e uma vontade de falar sobre uma realidade social através desse espaço e dos seus habitantes. Todos estes filmes, como é típico nos filmes de bairro social, usam os próprios habitantes como actores. Esta parece-me ser uma marca temática deste sub-género. Assim como quase todo o filme de Trás-os-Montes inclui um velhinha que diz palavrões. Ainda que haja uma afinidade geográfica qualquer com a área, há também uma série de clichés – construídos pelo cinema ou não – e que se reencontram em filmes completamente díspares.
Trás-os-Montes não é um território cinematográfico antes de 1974.
PC: O caso de Trás-os-Montes é um caso interessante. Porque antes de 1974 praticamente não há filmes sobre a região, ou com a região como pano de fundo. Há, curiosamente, muito mais sobre o Minho e sobre a típica aldeia minhota e uma certa ideia de ruralidade e de tradição. Mas se formos a ver Os Lobos da Serra (1942) do Brum do Canto passa-se no Lindoso, As Pupilas do Senhor Reitor (1935) passa-se numa aldeia minhota (é uma adaptação literária também…). E a presença do Minho no cinema português dos anos 30 e 40 é incomparável com de Trás-os-Montes. Trás-os-Montes não é um território cinematográfico antes de 1974. E porquê? A Catarina Alves Costa estudou isso na tese de doutoramento dela sobre os camponeses e o cinema. Tem que ver com o movimento que o António Reis faz primeiro para o Alentejo, antes de ir para Trás-os-Montes, que é a busca pelo rústico, pelo autêntico, por aquilo que está, supostamente, num estado mais puro. E essa romagem ao interior dá-se para Trás-os-Montes em parte por ser este a parte do interior mais isolada de Portugal.
E o que é que se filma lá primeiro? É o registo dos primeiros filmes do Reis, o ancestral, o primitivo, a intervenção do homem na paisagem ao longo de milénios. A escolha de Trás-os-Montes tem muito que ver com a distância à capital. Porque é que o Canijo decidiu começar a história do Fátima (2017) a partir de Vinhais? Parece que é de lá que é a maior romagem, em termos quilométricos, para Fátima. A Catarina Alves Costa faz essa análise: antes do cinema, nos anos 50 e 60, são os etnógrafos que vão para lá, estudar as tradições. E claro, o Reis vai para lá porque a Margarida Cordeiro é do Mogadouro. Se ela fosse açoriana, se calhar o Reis teria filmado nos Açores. Era para lá que ele ia passar férias, mesmo antes de filmar. O Miguel Gomes filmou o Aquele Querido Mês de Agosto (2008) em Arganil porque é lá que ele tem as suas raízes familiares. Mas, de qualquer modo, o país não é grande, não é como os Estado Unidos, e a visão do país ainda está muito presa a alguns arquétipos do Estado Novo como o da aldeia mais portuguesa de Portugal. Ainda ouvimos falar do Minho como se fosse uma certa ideia de tradição rural, mas é uma região com praia, montanha, indústria, vinhas…
MM: O próprio Estado Novo, em termos de regiões, dava prioridade ao Minho e ao Ribatejo. Praticamente toda a ficção e mesmo o documentário, feitos durante o Estado Novo, que não se passem em Lisboa (ou eventualmente, Coimbra, que era uma cidade cara ao Salazar), passam-se no Minho e Ribatejo e, muito ocasionalmente, nas Beiras. Obviamente, Trás-os-Montes pela distância e por ser inóspito (como o próprio Alentejo) surge em muito pouco filmes. É em 1974 que estas duas zonas começam a receber a atenção dos realizadores. Já o Algarve é uma zona que continua ainda virgem… [Risos]

MV: Não se deve ser alheio ao facto de o país estar separado entre litoral e interior e qualquer transporte de material de filmagem, na altura, devia ser incrivelmente complicado.
MM: Sim, o sistema de produção era maioritariamente em estúdio, principalmente por causa da dificuldade de captação do som. Para captar som na rua, era necessário andar com uma camião atrás para revelar logo, porque o som era feito em óptico. Com o magnético é que se torna possível a saída para exteriores com muito maior facilidade.
PC: Repare-se que as Pupilas é todo feito em estúdio, construíram uma aldeia inteira em estúdio, e o Acto da Primavera (1963), mas tarde (e em magnético) é todo feito de exteriores.
CN: Há uma coisa que não é exclusiva do cinema português, que é uma atitude documental muito forte. Esta ideia de que o cinema documental tem como função registar a passagem do fim dos tempos. Há uma coisa que vai terminar e é preciso filmá-la antes que termine de vez. Lembrei-me agora do Os Caminhos de Jorge (2013) do Miguel Moraes Cabral.
RVL: Mas não é por acaso que o último filme do Miguel Cabral seja uma meta-ficção em Trás-os-Montes em que um realizador anda a olhar para as pessoas a perguntar-se ”como raio é que eu filmo isto” [O Homem de Trás-os-Montes (2017)].
MV: Mas voltando atrás. Há pouco, Ricardo, estavas a falar sobre o espaço dos bairros sociais e a inclusão de actores não profissionais. Há, neste filmes todos, uma grande mistura entre documentário e ficção. Género que cada vez mais se produz, não só em Portugal, como em todo o lado. Um tipo de cinema que também está na moda. Mas eu acho que há aqui, de novo, a influência de outros autores. Lembro-me de ter feito uma entrevista ao João Salaviza, logo após ter filmado o Arena (2009), em que ele citava Oliveira, Pedro Costa, Oliveira, Pedro Costa. E isto, de repente, é evidentíssimo no último filme dele, o Altas Cidades de Ossadas (2017), que está muito próximo da caminho do Costa. Tu falas com o João Miller Guerra e a Filipa César e, não tendo nada que ver com o trabalho do Costa, percebes que o João adora o trabalho do Costa, viu todos os filmes… E anda à procura de um caminho próprio, naturalmente.
RVL: Uma proximidade entre os filmes do Costa e os deles é o facto de acompanharam, de filme para filme, as mesmas personagens e desenvolverem em redor desse núcleo as historias de cada filmes.
MV: Aí, e saindo um pouco deste género, eu acho muita piada ao trabalho do Patrick Mendes. Que parecendo pegar em tudo isto, estes mesmos territórios e estas mesmas pessoas, entra num domínio muito mais fantástico, efabulatório, cómico. Esse tipo de cinema que ele faz não encontra paralelo em Portugal, partindo de um ponto comum que é o país e as suas pessoas.
Se há o discurso de que o cinema português não deve ser visto como um género, correndo o risco de cair numa coisa patrioteira, por outro lado o próprio sistema de financiamento favorece uma ligação geográfica e cultural ao país.
CN: Há esta tendência, que não é própria do cinema português, que é contemporânea, de que quando tudo está acessível as influências se dispersam. Que o Pedro Costa pode ser muito mais influenciado pelo [Jacques] Tourneur do que pelo Manoel de Oliveira ou pelo António Reis e portanto há um lado de abertura, de dispersão. Mas por outro lado estamos a tentar estabelecer recorrências, confluências entre filmes. Há aqui duas coisas: por um lado, uma coisa mais aberta da cinefilia abrangente, e, por outro, mais fechado, de cineastas que se citam entre si, que partilham os mesmos temas. Mas há outra questão que importa pensar: se há este discurso de que o cinema português não deve ser visto como um género em si, correndo o risco de cair numa coisa patrioteira, por outro lado, o próprio sistema de financiamento favorece, de certo modo, uma ligação geográfica e cultural ao país. Se um realizador quiser fazer um documentário sobre o John Ford nos Estados Unidos se calhar não vai conseguir financiamento do ICA, ao passo que se for sobre um artista português a viver em Portugal se calhar já tem mais chances. Isto tem que ver com a política cultural que ainda assim indica que há qualquer coisa aglutinadora nestes filmes.

MV: Olha o filme da Claudia Varejão sobre as pescadoras japonesas [Ama-San (2016)].
PC: E o filme da Salomé sobre a mina do Equador [Eldorado XXI (2016)].
RVL: Mesmo que não haja esse tipo de direcção por parte do Instituto do Cinema e Audiovisual [ICA] e dos seus júris, parece-me que, pelo menos, existe por parte de muitos dos cineastas uma formatação auto-imposta que os faz acreditar que desenvolver um projecto (especialmente no documentário) sobre a história de Portugal, nomeadamente na relação com o Estado Novo ou com o colonialismo, é uma mais-valia à partida. Que projectos de documentário exógenos à realidade portuguesa terão menor receptividade por parte do júri.
CN: Isso faz-me lembrar uma coisa. Agora há estes concursos universitários para apoio da FCT e estava a conversar com um amigo sobre isso e ele aconselhou-me que “primeiro escreve-se o projecto de acordo com as guias publicadas e depois, ganho o projecto, faz-se o que nos apetece”. A minha questão é esta: parte da concentração de que estamos aqui a falar, temática, espacial, não é formado e enformada também por critérios de apoio? E, é defensável, é uma questão de política cultural: sendo o dinheiro limitado, é natural que haja prioridade a um filme sobre o Camões do que um sobre o Bill Cosby.
PC: Depende. Se o Salaviza quiser fazer um filme sobre o Bill Cosby se calhar muita gente quererá vê-lo.
CN: Pois, mas o Salaviza já conquistou o seu espaço dentro do meio do cinema português.
O argumento, no cinema português, é um instrumento muito importante como ponto de partida. Mas é também um ponto de saída.
MV: Mas a questão é precisamente essa. Eu lembro-me de estar no concurso em que estava a concorrer o último filme do Pedro Costa, o Cavalo Dinheiro (2014). Ele dizia, na nota de intenções, que era uma homenagem ao [Charles] Chaplin. Tinha um descritivo muito grande relativamente à homenagem que o filme iria fazer. E eu acredito que no filme isso esteja presente, mas não está da forma como estava descrito. Mas ele ganhou, e provavelmente ganharia com outro projecto. Porque um dos critérios do ICA com mais peso é o curriculum. E ele é um dos que têm a pontuação mais alta. Mas há algo que se calhar vai ao encontro do que estão a falar. Pode parecer uma generalização, mas que seja. Em Portugal, como em todo o lado, para concorrer ao ICA, é preciso escrever um argumento em que se escreve tudo quanto é possível para melhor fazer ver o filme ao júri. E esse mesmo argumento, ipsis verbis, pode ficar num concurso em último como no seguinte em primeiro. Porque os júris mudam muito. Mas o que eu sinto é que, no que diz respeito aos cineastas portugueses, há uma grande liberdade quanto ao argumento. Ele é um instrumento muito importante como ponto de partida. Mas é também um ponto de saída. Ao contrário de outros países em que o filme corresponde a uma tradução directa do argumento, em Portugal, tenho essa sensação, é muito difícil, na maiorias das vezes, identificar no filme o argumento de origem (devido à qualidade literária do guião).
MM: Nos critérios de avaliação, o que é pedido, além da sinopse, argumento, descrição e não sei mais quê, é realmente a relevância nacional. Mas isso é uma coisa que vai sendo cada vez mais atenuada na medida em que, ter-se-á que ter a noção, o mundo abriu-se muito rapidamente nos últimos anos. Ainda assim, são poucos os realizadores que filmaram ficção fora de Portugal, mesmo tendo que ver com a história do país – é o caso do Os Olhos da Ásia (1996) do João Mário Grilo. Só nos últimos anos têm surgido projectos dessa natureza e só aqueles que têm que ver com Portugal é que foram aprovados. Agora há muita gente a filmar no Brasil, mas tem que ver com acordos, parcerias, co-produções. As pessoas já não estão só no seu cantinho, mas depende sempre do curriculum. O Filipe Melo queria fazer um documentário sobre o George A. Romero, mas em Portugal dificilmente vai conseguir financiamento do ICA.
RVL: Se sobre o António de Macedo já foi difícil…
MV: E ele ter ganho apoio para a curta de terror I’ll See You In My Dreams (2003) foi um puro acaso. Porque os projectos de género no ICA, sobretudo à curta (imagino que também à longa), dificilmente passam.
RVL: Isso ajuda a formar uma certa ideia de cinema português. Porque não há muito poucos filmes de terror ou musicais com apoios, por exemplo. Salvo raras excepções. E isso também formata o cinema português.
MV: Quando eu estava a tentar descrever A Fábrica de Nada (2017), a convidar as pessoas para a sessão em Cannes, era engraçado porque eu dizia: drama social, musical, documentário politico puro e duro e também uma história de amor. Mas este cozinhar de diferentes géneros é que produz um filme único que, talvez, só pudesse ser português.

PC: É engraçado que com essa descrição eu pensei, automaticamente, noutro filme, o Nós Por Cá Todos Bem (1978). Que é precisamente isso tudo. E quando vejo um filme como o Aquele Querido Mês de Agosto faz-me lembrar imenso esse filme do Lopes. E não foi com surpresa que quando deram uma carta branca ao Gomes na Corunha ele escolheu o filme. Voltando à questão do híbrido, este sempre foi um género comum no cinema pós-Cinema Novo. Todo o cinema do César, Lopes, Macedo, todos eles trabalham muito a mistura de registos. A sua confusão. Um hibridismo, que é uma palavra agora tão na moda, que é uma característica de uma série de cineastas que habita o mesmo espaço (que por acaso é Portugal) mas que não é de todo uma característica comum a todos. Quando se fala em cinema português eu tenho, na minha cabeça, um conjunto de filmes e de cineastas perfeitamente definido. Eu sei o que é o cinema português. Agora para o Miguel esse grupo já deverá ser, certamente, ligeiramente diferente do meu. E isso para todos os outros. Mas essa ideia que cada um de nós transporta não é de todo o critério de classificação da Fnac, nem o critério de programação de uma retrospectiva de cinema português na Cinemateca Francesa. O meu é muito subjectivo, porque eu procuro isso, porque vou atrás dessas ligações.
MV: Uma caderneta de cromos. [Risos]
RVL: Creio que foi a Rita Azevedo Gomes que disse que pertencia a uma geração em que quando surgia uma imagem era um acontecimento, e era importante conservá-la. “Hoje em dia”, dizia ela a uma aluna do conservatório, “vocês têm tudo à distância de cinco minutos de download”. E que, por isso, a sua família de referências correspondia àquilo que a circundava, que lhe estava à mão. Isto é, um conjunto de cineastas portugueses e não só. Mas que, a partir dos anos 80, com o alargamento da distribuição, a televisão e o cinema em casa, passou a haver, por parte dos jovens realizadores, uma relação muito mais aberta para com o cinema que se fazia (e também com a história do cinema). E que isso, hoje em dia, com a Internet, explodiu completamente. O que quero dizer é que, por exemplo, um realizador como o Gonçalo Tocha é muito mais influenciado pelo Jonas Mekas ou pelo Robert Kramer do que por qualquer realizador português. A própria Salomé não acredito que tenha no cinema português as suas maiores influências.
MM: Eu julgo que não há grandes referências (não vou abrir excepções), por parte de realizadores portugueses, sobre o próprio cinema português. Nunca houve. Os do Cinema Novo não tinham nenhum referência para trás (por muito que falassem do Oliveira, a obra dele era, ainda, muito escassa).
PC: E era uma estratégia acima de tudo política.
MM: As referências deles, nessa época, eram muito mais a Nouvelle Vague francesa, o cinema clássico americano, os japoneses, os Vertovs, Eisensteins e etc. Uma grande cultura de cinema, em sala.
MV: E muitos deles estudaram lá fora, o que certamente deverá ter ajudado.
As referências de cineastas portugueses eram um bocado ao contrário: uma pessoa definia-se pelo que não gostava, mesmo quem trabalhava no cinema.
MM: Sim, e certamente que no IDHEC não mostravam o Leitão de Barros. [Risos] E aí acho que o cinema português tem sido muito mais influente para realizadores estrangeiros. Pode haver, e há, realizadores que são uma influência para outros, mas, do meu ponto de vista, só há três: o Oliveira, o Pedro Costa e o César. Eventualmente agora, um pouco, com o Gomes. Mas os outros… não quer dizer que não haja quem tenho sido influenciado pelo Paulo Rocha ou pelo António Reis – o Reis foi uma influência, hoje está um pouco apagado. Há uma geração de alunos da Escola de Cinema que passou pela mão do Reis e em que o olhar dele foi muito formador, e outros que, exactamente ao contrário, se deram mal com ele e sempre o detestaram. Mas acho que, até certa altura, as referências de cineastas portugueses eram um pouco ao contrário: uma pessoa definia-se pelo que não gostava, mesmo quem trabalhava no cinema. Hoje em dia, quando há uma leque muito maior de realizadores (e é impressionante o número de pessoas!), não me parece que eles estejam tão preocupados com a citação cinéfila, como as gerações que vão até à minha e depois ao Gomes e ao João Pedro Rodrigues. Não quer dizer que não encontre no Salaviza ou no Abrantes isso: este gajo viu este gajo e gosta deste gajo etc. et al., mas é a excepção.
CN: As citações e as homenagens são como que a demonstração de que se pertence a um conjunto. E hoje em dia há muito menos essa necessidade de validação. Uma pessoa faz um primeiro filme e por acaso até vai a um festival e por acaso até ganha um prémio e de repente já faz parte de uma família muito mais extensa, mas também muito mais diluída e dispersa. Que já não tem a carga que tinha.
MV: A primeira vez que eu tive noção de que havia uma descolagem geracional qualquer foi quando a Rita Nunes fez o Menos 9 (1997) e alguém, em Clermont-Ferrand, lhe perguntou quem eram os grandes mestres portugueses em que ela se inspirava e ela respondeu “eu já nasci numa altura em que nós já pertencíamos à Comunidade Europeia e já havia muito mais coisas que não apenas essa referência do cinema português. Não acho que este filme tenha qualquer dessas influências.” Lembro-me perfeitamente dela descolar-se perfeitamente dessa ligação.
CN: Isso faz-me lembrar aquela citação famosa do Daney em que ele diz “o meu país é o cinema”, só que agora já não é bem o cinema, é a imagem em movimento e já não é bem um país também… É um caldo de referências.

MV: Gostava, no entanto, de vos perguntar uma coisa que talvez possa gerar uma conversa interessante. O Rui Poças, director de fotografia, trabalhou com o João Pedro Rodrigues e para o Miguel Gomes. Ele faz filmes muito diferentes com um e com outro. O Vasco Viana, desta nova geração, trabalha com o Ico Costa, Carlos Conceição, Salaviza e também são filmes muito distintos. Mas há aqui, de certa forma, na pessoa que maneja a câmara, que está por de trás das imagens, uma certa orientação. Por exemplo, quando se vê um filme como o Farpões, Baldios (2017) da Marta Mateus, não está de parte olharmos para o trabalho feito em pós-produção do Carlos Almeida, que também se identifica nos filmes do Pedro Costa no trabalho de luz, de imagem… Há aqui, além destas famílias de realizadores, também estas questões técnicas, que devem ser postas em cima da mesa. Manel, quando agora trabalhaste com a Mariana Ricardo e o Telmo Churro [no Ramiro (2017)], que trabalham quase sempre com o Gomes, e que têm uma certa forma de escrita, como foi o diálogo?
Aquela teoria dos filmes para a gaveta ou para os amigos, é apenas botade, provocação. Não conheço nenhum realizador que não queria mostrar o filme
MM: Isso sim, houve um diálogo. Trabalhando com certas pessoas isso vai minando e contaminando (no bom sentido) o trabalho. Acho muito curioso que, mesmo hoje, com a profusão de realizadores, as pessoas passam de uns filmes para os outros e depois, porque trabalham com a mesma produtora, ou em parceria (como é o caso da Terratreme), há nisso um lado muito familiar. Isso permite, do meu ponto de vista, no sentido da precariedade e da liberdade, que já se tinha referido, que se transmitam coisas. Coisas que vêm, sem a nossa consciência (de outros realizadores), das pessoas com quem os técnicos trabalharam antes. Isto sempre foi assim. Por acaso há um texto do Augusto M. Seabra em que ele explica como a terceira geração, do [Vítor] Gonçalves ao [Miguel] Gomes, era perfurada por ligações entre todos eles: como o Quim Pinto tinha produzido a Villaverde e trabalhado no som do não sei quem, e como a Teresa tinha trabalhado num argumento do Canijo e ele tinha sido assistente do outro… Estava tudo enredado. Mas acho que hoje há uma outra ideia: o cinema é um espectáculo global e não é só para os portugueses. Aquela teoria dos filmes para a gaveta ou para os amigos é apenas botade, provocação. Não conheço nenhum realizador que não queria mostrar o filme, pode é acontecer o sistema de distribuição ser limitado. E o que aconteceu, devido a alguns festivais e às produtoras que passaram a estar muito mais preocupadas com a distribuição pelo circuito internacional, é que os filmes passaram a ser mostrados mais e melhor lá fora. Antes era dificílimo e deve-se, em grande parte, ao Paulo Branco e, mais tarde, pela circulação que os festivais nacionais permitiram. Antes disso, nos anos 70, 80 e 90, houve vários filmes que não conseguiram sequer ter estreia comercial, ou o orçamento só permitia a tiragem de uma ou duas cópias. Dalguns desses filmes não restam quaisquer cópias.
RVL: O nosso colega Luís Mendonça não pôde estar cá, mas pediu-me para colocar uma questão por ele. Ele anda a ler muito sobre o cinema de vanguarda austríaco e ficou completamente surpreso que todos aqueles cineastas experimentais austríacos a partir do [Peter] Kubelka para a frente sejam todos muito amigos, escrevam publicamente sobre os filmes uns dos outros. Mais que isso, o [Peter] Tscherkassky e o Virgil Widrich fundaram a Sixpack, que é a distribuidora dos filmes desta malta. Ou seja, uma série de cineastas, todos a trabalharem em conjunto, para que os seus filmes sejam vistos pelo mundo e que sejam pensados e analisados em detalhe. Isto é tudo muito bonito e dá que pensar: por que razão em Portugal nunca se conseguiu formar uma espécie de união duradoura de cineastas que se inter-ajudassem?
PC: Houve. O Centro Português de Cinema [CPC]. Foi efémero, é certo. E havia a Cinéfilo, onde eles escreviam uns sobre os outros. Mas estás a falar de um nicho, que é o cinema de vanguarda, se calhar na Áustria também há quezílias entre os vários realizadores.
MV: Mas há um programa especial lá, que se poderia comparar a um braço experimental dentro do ICA, que se chama Inovative Austria e tem apoios específicos para este tipo de trabalhos existirem. Houve, aqui há uns anos, não sei se por acção de um lobby destes cineastas, esta vontade de criar um programa que não é simplesmente de financiamento, é mesmo um braço temático dento do Instituto que privilegia este tipo de trabalho. E claro, daí uma distribuidora como a Sixpack, que faz um trabalho excelente, consegue que praticamente todos os grandes festivais do mundo seleccionem filmes distribuídos por eles. Há uma produção tão grande e eles estão tão presentes em todo o mundo que quase conseguem assegurar estreias mundiais em cada um dos festivais de primeira água. Mas é uma coisa pensada de raiz.
MM: Por incrível que parece houve o CPC. Mas de certo modo o caso agora da Terratreme, fundado por seis sócios (cinco realizadores), que depois acolhem um outro conjunto ainda bastante largo de realizadores, é semelhante. E funcionam num regime próximo da cooperativa, em que é uma forma de, entre eles, conseguirem fazer os projectos que querem. Outros modelos, que foram ensaiados no final dos anos 80 e nos anos 90, como a Azul, que deu origem à Trópico Filmes, fundada por ex-alunos da escola de cinema, originalmente o Daniel Del Negro, o [José] Bogalheiro e Vítor Gonçalves [1] [2] [3], com o Pedro Caldas e o Pedro Costa. A ideia deles era funcionarem como um modelo alternativo aos sistemas de produção da altura, que eram muito poucos, no fundo o Paulo Branco e o [António] Cunha Telles. Eles não queriam fazer parte desses modelos de produção. Como mais tarde tentou fazer o Quim Pinto, de forma mais individual, que convidou uma série de pessoas, incluindo o César que voltou a filmar.

MV: Mas houve também um momento que foi chave: no início dos 2000, em que a Gulbenkian criou uma série de cursos no âmbito do programa Criatividade e Criação Artística, em que fizeram dois cursos de ficção (com a dffb e com a London Film School), dois dos Ateliers Varan e um de cinema experimental/vídeo-arte. E muito desses nomes que emergem agora ao redor da Terratreme, como o Tiago Hespanha, o Pedro Pinho a Cláudia Varejão, a Luísa Homem, a Leonor Noivo, vieram muitos deles destes cursos. E isto não veio tanto da instituição, mas das afinidades que se criaram entre eles ao trabalharem nos filmes uns dos outros.
MM: E eles vinham de um ponto comum: a Faculdade Nova. Ao contrário da escola de cinema, que procurava formar pessoas para a prática do cinema, a Nova tinha a vontade de formar teóricos. Mas estes realizadores conseguiram contornar isso através desses cursos da Gulbenkian. E quando na escola de cinema ainda se trabalhava em película, estes alunos da Nova já estavam a trabalhar com o digital. Hoje, com as escolas de Abrantes, Minho, Caldas e das várias no Porto e Lisboa, surge muita gente. E há um lado curioso: não é só a abertura à possibilidade de haver muito mais realizadores, mas também um trabalho muito mais concreto do que é a análise, teorização e crítica de cinema. Até há alguns anos era difícil preencher uma prateleira com publicações que falassem sobre cinema português, e tinha que se andar pelos alfarrabistas à procura dos poucos livros existentes. Hoje em dia já não é assim. Há muita gente na academia e na Internet a ver e a pensar os filmes. E sente-se muito essa renovação, depois de uma morte que se foi dando no pensamento crítico a partir dos anos 80.
PC: Queria só salientar um outro caso, que é muito semelhante ao da Terratreme, que é o do Bando à Parte. Também é um conjunto de pessoas que trabalha nos filmes uns dos outros há muito tempo. É o Jorge Quintela ou o Paulo Abreu que filmam para o Rodrigo Areias, ou é o Areias que produz e já…
MM: E é engraçado que o André Gil Mata, que estava com eles, já saiu e entretanto juntou-se o Edgar Pêra.
MV: E ainda foram buscar, agora, a animação, que já toma uma grande parte da estrutura. Sendo que a animação sempre foi um meio um pouco à parte destas produtoras. Mas continuando aquilo que o Manel estava a dizer, houve de facto, antes desses cursos, uma experiência que foi o Laboratório de Criação Artística da Nova, com a Susana Nobre, José Filipe [Costa], Madalena Miranda, Miguel Coelho. Eles começaram a auto-produzir-se graças à democratização que os novos meios permitiam (os MiniDV e por aí fora), e foi um pouco a inauguração desse caminho. Já a outra vertente, a da escrita sobre cinema, sobre o trabalho dos outros, essa é que continua menos desenvolvida. Há o vosso caso [À pala de Walsh], mas não há muito mais…
Não bastará, de facto, uma ideia na cabeça e uma câmara na mão?… Prescindindo da escola.
CN: Eu estava pensar um pouco nisso e acho precisamente que a questão se deve pôr na própria escrita: escreve-se cada vez menos, genericamente, e portanto, escreve-se menos sobre cinema. Mas gostava que falássemos de um outro assunto, que está relacionado com este. Lembro-me de, nos primeiros tempos em que estudei no Conservatório, por volta de 2002/2003, começavam a surgir várias outras escolas de cinema, a Restart, a ETIC… Propagava esta ideia, que não é inteiramente falsa nem inteiramente verdadeira, de que numa escola onde não houvesse uma componente teórica, que fosse mais prática (subentendendo que essas outras escolas teriam esse tipo de programa), não se formariam bons criadores. Apenas com máquinas e liberdade não se iria fazer nada. Que não bastava uma ideia na cabeça e uma câmara na mão… Na altura isso fez-me imenso sentido, hoje em dia penso de forma diferente. Olho para o Conservatório como um espaço entre dois espaços de liberdade: antes da escola os cineastas aprendiam a fazer cinema na rua, nas salas de cinema ou uns com os outros, hoje em dia, depois da arrumação curricular e tudo mais, há cada vez mais a ideia de que a formação se começa a fazer para lá da escola, depois da escola. Até que ponto a escola de cinema, ou a organização em núcleos (prático/teórico), não foi uma excepção no percurso na história do cinema? Além disso, de que modo, hoje, com o acesso a câmaras, com o acesso à teoria e à história do cinema, não bastará, de facto, uma ideia na cabeça e uma câmara na mão… prescindindo da escola?
RVL: O que acho importante frisar é que a maioria das pessoas que sai de uma escola de cinema tem noção de que se enviar um projecto para um concurso do ICA ele não vai passar. São até capazes de o fazer por desportivismo, mas sem qualquer tipo de esperanças. Por outro lado, com um dinheirinho mínimo que a Gulbenkian dá, um jovem realizador é capaz de fazer uma longa. Veja-se O Primeiro Verão (2014) do Adriano Mendes, que foi feito sem apoios nenhuns, e como ele há uma série de outras pessoas que estão a fazer longas-metragens aos fins-de-semana. O Pedro Cabeleira, o João Eça, o Afonso Mota, o Rúben Gonçalves… Saíram da escola, têm um pequeno apoio da Gulbenkian (os que têm), são amigos, têm tempo, vontade e conhecimentos (uma câmara boa, um equipamento de som bom) e fazem uma longa-metragem. Isto é muito diferente da geração anterior.
CN: E há a dimensão ritual. O ritual de produção de um filme (curta ou longa), que começa com a inscrição de um projecto no ICA, passa pela rodagem, pós-produção e distribuição por festivais e/ou comercial, é hoje um outro modo de fazer. Um outro ritual.

MV: Não tenho exactamente essa perspectiva. Eu tinha a ideia de que muitas pessoas que acabavam a escola de cinema iam para essas escolas mais práticas – Restart, ETIC e por aí – concluir uma formação. Quando em 2004/2005 a formação no Conservatório ainda era em película, havia muita vontade de aprender a filmar em digital, e na Nova nem sequer tinham muita prática. Essas escolas acabavam por dar uma formação muito útil como complemento. Por exemplo, a Claudia Varejão e o André Santos e o Marco Leão passaram pela Restart… E como eles sabiam que não iriam conseguir apoio do ICA esta era uma forma de não pararem a prática, de se actualizarem tecnicamente e de apanharem professores que lhes interessavam. Sei que a Graça Castanheira dava aulas nestas escolas, assim como o Nuno Sena, o Jorge Cramez, a Margarida Cardoso… Mas, de facto, havia muitas pessoas que saíam desses cursos desiludidas. Sobre o outro tema, de que o Ricardo estava a falar, os modelos de produção alteram-se. E há uma grande apetência das geração mais novas de “se não me deixam fazer aquilo que eu quero, vou fazer aquilo que me dá na bolha.” Mas estes filmes vêm de uma energia que é criada enquanto grupo. Não acredito que eles consigam estar a fazer estes filmes sem o empenho de um montão de amigos. O Verão Danado (2017) acabou por ter cerca de seis semanas de rodagem repartidas por dois anos. E a juntar a isto, há que chamar a atenção que o ICA abriu novos concursos para a finalização cujo valor do apoio é muito significativo: até 120 mil euros (nada despiciendo quando o apoio às primeiras obras é 250 mil euros). E os filmes acabam por ter uma excelente aspecto por se investir muito na pós-produção.
RVL: Isto que eu vou dizer agora é um pouco mais para o Paulo. A forma como se organiza ou pensa a história do cinema em Portugal (ou do cinema português), define o modo como enformamos o cinema que está para vir. E houve várias abordagens. A mais simples, e cronológica, é a que vê a história do cinema através de gerações, das vanguardas até à actual (que podíamos chamar, geração Whatever) houve cerca de sete gerações de realizadores portugueses. E podemos encaixá-las umas nas outras, percebendo porque é que uma deu origem à seguinte, e assim sucessivamente… Também podemos pensar, e é a ideia do João Mário Grilo, a história do cinema português como uma feita em fases, cada qual com o seu protagonista técnico: primeiro os Actores, depois os Realizadores, e agora os Produtores. Pode-se pensar também em escolas, onde há uma figura paterna que deixa descendência (escola Reis, escola Oliveira…). Podemos pensar nisso tudo, e se calhar nenhuma delas descreve a realidade do cinema português. Neste momento o que mais me parece útil é perceber a relação entre meios de produção e avanços tecnológicos que permitem uma rodagem com muito baixo orçamento, em associação com uma geração para a qual o passado do cinema português não lhe diz muito.
PC: Não me parece que esta geração seja diferente das outras no que diz respeito a isso. O Manuel já aqui elencou vários exemplos de gerações que surgiram contra as anteriores. O Paulo Rocha confessa, em várias entrevistas, que não conhecia nada de cinema português, que os seus interesses eram outros e chega mesmo a “redescobrir”, décadas depois, algumas das comédias dos anos 40.
RVL: Mas ele já conhecia o António Campos.
PC: Acho que não, creio que ele só “descobre” o Campos quando está no CPC, quando foi o presidente (ele foi o segundo presidente, o primeiro foi o Lopes).
MM: Ele já conhecia o Campos antes…
PC: Há aquela história em que ele, numa viagem ente Lisboa e o Porto, faz um desvio por Leiria para conhecer um tipo que fazia filmes em 8mm, que era o Campos. Um Tesoiro (1958) e O Senhor (1959). Mas isso não é depois d’Os Verdes Anos?
MM: Não, não… Eu conheço isso porque trabalhei com o Paulo e ele contou-me essas histórias. Aliás, o Paulo tem imagens de um filme do Campos, que nunca foi feito, do final dos anos 50, que estão depositadas no Arquivo Nacional da Imagem em Movimento [ANIM].
RVL: Mas sem ser um pouco o Campos e muito o Oliveira, não havia referências…
O digital altera é a questão da distribuição.
PC: E no caso do Campos não é bem uma referência. Era muito desconhecido. Mas, em conclusão, esta geração não tem isso de inédito. Quanto à questão da revolução tecnológica, também não me parece que seja algo de muito diferente do que aconteceu com a introdução do 16mm. O Reis filmou em 16mm, em 35 seria muito complicado. Ninguém conseguiria fazer um plano em cima de uma bicicleta com uma câmara 35mm. O digital altera é a questão da distribuição. O custo das cópias de exibição é que se alterou muito, uma pessoa com uns tutoriais faz um Digital Cinema Package [DCP] em casa. Os custos das rodagens vêm-se reduzindo progressivamente. E, como dizia, o digital altera a circulação. Porque uma pessoa qualquer pode fazer upload de um filme numa plataforma online e, de repente, já tem milhões de visualizações e não precisa que qualquer tipo de validação, ora académica, do meio, dos festivais, do ICA, da cinefilia, da crítica, etc…
MV: Há pouco, quando o Carlos estava a falar, lembrei-me que alguns olhares estrangeiros apontaram uma das características do cinema português como sendo o facto de os realizadores mais estabelecidos não deixarem de fazer curta metragem. Coisa que é pouco comum lá fora. Em Portugal isso é muito comum, o João Pedro Rodrigues, o próprio Manel, o Miguel Gomes alternam entre a curta e a longa. E já antes, o João César Monteiro fazia isso muitas vezes.

PC: Mas isso também tem que ver com questões de produção, porque não é possível filmar longas todos os anos e, por isso, nos entretantos, fazem estas curtas que resultam de convites, encomendas, ou de apoios específicos que aparecem.
CN: E também há outra coisa: a curta-metragem é muito mais o formato de hoje. É muito mais fácil ver uma curta do que ver uma longa.
MM: Eu acho que os realizadores querem fazer longas.
RVL: A maioria…
Realizadores como o Seixas Santos, o Mário Grilo, o Joaquim Pinto, eu, de repente com os nossos curriculos lixamos as pessoas que estão a começar.
MM: A maioria, 95%. Em relação às curtas em Portugal, da parte de realizadores já instalados, resultam de problemas de produção. E isso cria uma situação grave, que está a ser discutida agora, que é: os realizadores consagrados que já só concorriam aos apoios selectivos ou automáticos, viram os seus projectos recusados e, em consequência da crise de 2012/2013, começaram a ir para os concursos de curtas e documentário e minaram aquilo de tal modo que deixou de haver primeiras obras. O que, do meu ponto de vista, é um bocado ignóbil. Ainda por cima, quando a curta era a porta de entrada para o cinema… Mas claro, isso tinha consequências muito perversas, que é, por exemplo, o Sandro Aguilar só agora estar na segunda longa quando já tem um percurso… Realizadores como o Seixas Santos, o Mário Grilo, o Joaquim Pinto, eu, de repente com os nossos currículos, lixamos as pessoas que estão a começar. A solução é passar a haver concurso de primeiras obras e selectivos como existem na longa, mas na curta. O mesmo no documentário. Depois, claro que existem outras portas: a Fresnoy convidou o Miguel Gomes e o João Pedro Rodrigues, Vila do Conde convidou-me a mim, e ao João Pedro, ao Luís Alves de Matos, ao Canijo… Não acredito que haja um realizador que recuse categoricamente uma proposta para fazer um filme, a não ser que aquilo o meta numa alhada qualquer. Ainda por cima pago… Mesmo que não ganhe nada, pelo menos faz mais um filme. Já o César, as curtas resultavam um pouco da oportunidade de, estando em rodagem, desviar a equipa e filmar uma rapidinha.
RVL: Mas também há uma serie de curtas dele que resultam do insucesso da primeira rodagem do A Comédia de Deus (1995).
MM: Sim, claro. Mas o mesmo acontece com o Costa em que as curtas são, quase todas, partes das longas, processos de lá chegar.
CN: Falámos, até agora, da acessibilidade dos meios técnicos de produção e distribuição e parece que temos aqui um panorama de pura potencialidade e liberdade. Gostava agora de falar de uma coisa que pode ser ainda um espaço de separação. O cinema português vai tendo bastante visibilidade nos festivais internacionais (coisa que aumentou muito recentemente), um destaque incrível. O que gostava de discutir convosco era se estas selecções ajudam a moldar, em parte, uma certa visão do cinema português e, por outro lado, se a selecção para estes festivais não é uma espécie de grande muralha da China, onde uns estão de fora e outros de dentro.
RVL: Além disso, há um efeito perverso na importância das selecções e dos prémios no curriculum de um realizador. Todos nós sabemos que um prémio de um festival não sendo totalmente aleatório (não é bem como atirar barro à parede), mas não é um método fácil de aferir. E, no entanto, é o critério “ideal” para se tirar ilações sobre o trabalho de um realizador.
CN: Sim, o caso dos prémios ainda é mais gritante por causa da forma como funciona um júri… Mas o que importa perceber é que há aqui vários circuitos que vão construindo um conjunto de obras que vão sendo conceituadas. E outras que esteticamente podem ser muito mais interessantes mas que não mereceram essa visibilidade.
RVL: E mais importante até é a ideia de que, se pegarmos no conjunto de filme seleccionados nos últimos anos em festivais de classe A, podemos perceber um certo tipo de cinema (que é a imagem que passa para o estrangeiro do que é o cinema português) que condiciona o cinema que os realizadores em Portugal podem fazer.
Dou aulas a alunos de cinema, e pelo segundo ano consecutivo nenhum deles tinha ouvido da Balada de um Batráquio. Isto para mim é sinal de que nós vivemos numa bolha
MV: O Carlos disse uma coisa que eu achei interessante, que é o “destaque incrível” dado ao cinema português pelos festivais internacionais. Eu dou aulas de Direitos de Autor a alunos, que supostamente são de cinema [Risos], e pelo segundo ano consecutivo nenhum deles tinha ouvido falar que a Balada de um Batráquio (2016) tinha ganho o Urso de Ouro em Berlim. Isto para mim é sinal de que nós vivemos numa bolha em que existe esse “destaque incrível”. Por outro lado, no que tem que ver com as escolhas do festivais, há a questão das agências, e agora vou falar como distribuidor. Quando estou a seleccionar filmes no IndieLisboa chateia-me imenso que uma distribuidora despeje um monte de filmes sem pensar sequer no perfil do festival, e por isso tento não fazer o mesmo. Quando estou a pensar em Cannes e Veneza, penso em que estilo de filmes pode, ou não, agradar aos programadores que lá trabalham. E tu nunca sabes, é um pouco uma lotaria. Pode sair completamente ao lado. Porque eu mandei um filme que tinha exactamente o perfil que eu achava que era o ideal e, por acaso, enviei mais um que estava pronto sem grandes esperanças e de repente é o segundo que é seleccionado. Partindo estas considerações de que eles estão já à espera de um determinado tipo de cinema português.

Mas quando, por exemplo, em 2016 eu vi o Colo (2017) e gostei tanto, tanto, tanto do filme, quis que ele fosse mostrado ao maior número de pessoas. O filme já tinha sido recusado noutro festivais de Classe A e eu achei: vamos tentar o festival de Berlim e vamos tentar a competição mais importante, a Competição Internacional. E não sei se terá ajudado, mas eu escrevi uma carta ao director do festival que era uma espécie de declaração de amor ao filme a dizer porque é que eu achei que o filme devia ser mostrado. E de facto, é estranho que o mesmo comité escolha num ano Cartas da Guerra (2016) e noutro o Colo, que são filmes que nada têm que ver. Mas tem muito que ver com a forma como as pessoas escolhem os filmes a partir de uma experiência muito particular. E, claro, há programadores que estão mais despertos a uma certa realidade. Em Cannes, por exemplo, é muito mais difícil ter filmes seleccionados, apesar de haver lá muita gente que gosta de filmes portugueses.
Até hoje não engulo a história que o director da Quinzena que contou que não seleccionou logo A Fábrica de Nada porque queria dar-lhe um destaque maior ao colocá-lo depois. Eu sinceramente acho que ele se arrependeu depois de fechar a programação. Mas por exemplo, também na Quinzena, mas nas curtas, a selecção do Farpões Baldios é muito importante para uma realizadora que tem o seu primeiro filme e, por causa disso, talvez venha a ter a vida facilitada para o próximo projecto. Mas a selecção, em geral, era muito fraca. A própria Marta dizia que não sentia afinidade nenhuma com os outros filmes. E não sendo uma selecção horrorosa, o certo é que os filmes não tinham nada que ver uns com os outros… Quando queres encontrar uma coerência de programação, e a programadora da Quinzena assume que procura a máxima diversidade, isso torna muito complicado ver uma sucessão de filmes, numa sessão em que nada comunica com nada. Aí também te perguntas que lugar pode o cinema português ocupar. Mas o certo é que, além da França, Portugal era o único país com dois filmes, o outro era o Água Mole (2017), numa selecção de 10. E em Berlim, nesse ano, num selecção de vinte, tinha quatro filmes.
RVL: Mas continua a colocar-se um enorme peso numa coisa que é um enorme imponderável. A vida das pessoas depende de um sistema que não tem contrapeso.
MM: É uma escolha. E não é tanto o ser-se escolhido para um festival, mas o facto de muitos festivais pelo mundo, e entre os portugueses também, escolherem várias vezes os mesmos nomes. Que de um número muito grande de filmes e realizadores, o IndieLisboa escolha 16 ou 17, Vila do Conde o mesmo e o Doclisboa umas 8 ou 9, de repente há nomes que nós encontramos recorrentemente nestes festivais. E mal era que não os pudéssemos escolher só porque são mais conhecidos, para dar lugar a outros.
O julgamento crítico já não é só um gajo, sentado ao computador, com aquilo que viu e aquilo que acha do mundo.
CN: Eu aproveitava para introduzir uma outra questão que está ligada a esta. Cada vez menos as pessoas escrevem sobre os filmes, e os cineastas sobre os seus pares. É muito recorrente dizer-se que há uma certa actividade de programação cinematográfica (seja em festivais ou plataformas online, ou de outros modos) que substitui o gesto do texto subjectivo, crítico. A programação substituiria o gesto de avaliação. As críticas ajudavam a validar os filmes através de um trabalho subjectivo, hoje em dia os festivais fazem um pouco o mesmo, de um ponto de vista prático, através da escolha. Só que esta validação agora já não se centra apenas numa subjectividade, mas num conjunto delas, num comité de programadores, e também na relação dos filmes uns com os outros (e o perfil do festival). Assim há todo um julgamento crítico prático, através da programação, que é todo ele muito mais permeável, no bom e mau sentido. É todo ele mais móvel, diferentes critérios aos mesmo tempo. Já não é só um gajo, sentado ao computador, com aquilo que viu e aquilo que acha do mundo. E isso é interessante, porque se parece haver menos reflexões escritas, também parece que elas passaram a ser outras coisas: como o ciclo que o Manuel organizou aqui na Cinemateca Portuguesa, ou aquilo que o Miguel e o Ricardo fazem no Indie, ou o Paulo faz no Curtas Vila do Conde. São tudo, à sua maneira, actividade de julgamento crítico.
PC: Há uma diferença entre escrever num blog, onde assinamos com o nosso nome e tudo aquilo é da nossa inteira responsabilidade, ou em integrar um comité de selecção onde somos um entre dez, onze, doze pessoas e a nossa opinião tem um peso proporcional, diluída naquele colégio. Há filmes que foram seleccionados por comités em que eu estava e dos quais eu não gostei nada. Mas o critério é esse, é colegial. Isso são, apesar de tudo, coisas muito diferentes. Muitas vezes eu entro numa reunião com uma opinião e saio de lá com outra, deixo-me convencer ou convenço os outros. Por vezes é o momento: naquele instante faz mais sentido programar aquele filme do que um outro. De qualquer forma, são sempre questões subjectivas, mas não arbitrárias… Tem muito que ver com o perfil dos festivais, com a vontade de apoiar certos gestos de cinema, certos autores. Em Vila do Conde, por exemplo, o facto de a retrospectiva ser dedicada a um determinado realizador pode influenciar um pouco a programação de outras secções que são autónomas, mas que transmitem um pouco o ambiente do festival. Cada vez é menos relevante se um filme recebe um prémio ou não, o que importa é o conjunto de selecções que o filme tem.

Em relação à “bolha”, eu também dou aulas a cursos de cinema, no primeiro e no segundo ano, e faço questão de lhes mostrar o formato da curta-metragem (porque é no fundo aquilo que eles vão desenvolver no curso) e em particular cinema português e uma das experiências que faço é passar o Arena. O filme teve imenso impacto, foi o primeiro filme português a vencer uma Palma de Ouro em Cannes e a maior parte dos alunos não só não viu o filme, como nem sabe sequer quem é o Salaviza. Numa turma de 60, os que viram o filme são 2 ou 3. E o mais curioso é que no fim da aula, também são só 2 ou 3 aqueles que querem conhecer mais filmes daquele realizador, a maior parte nem quer saber. E eu estou lá a tentar vender o peixe, a cativá-los. Mas é dramático. E faz-me questionar qual é o impacto real de uma Palma de Ouro ou de um Urso de Ouro.
MV: Mas eu gostava muito que depois de verem os filmes, ao menos os alunos criticassem: “mas isto ganhou a Palma de Ouro? Mas porquê?” Mas não, há uma apatia. Também eu dou aulas num curso de cinema de animação, e portanto é mais natural que haja um desinteresse por parte dos alunos pela imagem real (porque são quase mundos que não se tocam). Mas, por exemplo, houve uma coisa que eu achei muito curiosa. A MUBI, que eu vejo mais como uma plataforma de distribuição, surpreendeu-me muito: quando eles seguiram o festival de Cannes, decidiram escrever sobre os filmes que viram e gostaram independentemente se era uma curta ou uma longa. E fiquei muito contente de ver que o Farpões Baldios teve direito a uma crítica, da mesma forma que qualquer longa teria.
PC: Essa questão é muito importante: as pessoas terem uma opinião e assumirem-na, não como melhor ou pior que a de outrem, mas como aquela que espelha os seus gostos. Em Vila do Conde tivemos, pelo segundo ano, uma Oficina de Crítica Cinematográfica porque houve essa necessidade. O Curtas é um festival com mais de vinte anos, mostra cinema das mais diversas nacionalidades e práticas, e de repente há filmes que passam completamente ao lado de toda a cena mediática ou então só só repescados no final da semana porque ganharam um prémio qualquer. Esta oficina mantém treze ou catorze jovens (dos 18 aos 30 anos), de origens muito diferentes (de estudantes de cinema com licenciaturas e mestrados a simples curiosos que gostam de escrever) e com interesses muito diferentes, num regime de escrita que potencia a visibilidade do festival a partir das suas subjectividades, porque todos assinam o seu nome por baixo. Há, por vezes, textos nada simpáticos, quando os alunos não gostam dos filmes, e isso é bom, porque a opinião deles não está vinculada ao festival. É importante pôr as pessoas a pensar e a escrever sobre um evento que, no fundo, está preocupado com a visibilidade do cinema, em particular, do cinema português. Nós, depois da primeira edição, fizemos um fishing para perceber o impacto dos textos dos alunos e percebemos que muitas vezes os textos deles que o Público publicou e o À pala de Walsh publicou são das primeiras entradas e são mais um texto que um hipotético espectador tem acessível, o que só pode ser bom.
A formação de base e origem diferentes é, provavelmente, a causa de títulos disruptivos de uma certa imagem que o cinema português tem de si mesmo.
RVL: Queria falar de duas coisas: uma, têm surgido vários realizadores portugueses que não seguem a formação clássica do cinema (são artistas plásticos, vêm da vídeo-arte e fazem trabalhos entre a galeria e a sala de cinema, ou vêm das humanidades e são sociólogos, antropólogos, jornalistas…) e isto tem originado objectos muito diferentes do que era a “tradição” do cinema em Portugual; duas, muitos dos realizadores portugueses recentes estudaram em escolas de cinema estrangeiras, como a CalArts, a Fresnoy, a Film Factory, a HEAD, o Royal College of Art, uma série de instituições de ensino do cinema que têm acolhido alunos portugueses e que têm introduzido formas de pensar o cinema que são muito distintas daquilo que vinha sendo a prática e o ensino do cinema do em Portugal. Exemplo óbvio: os filmes da Joana Pimenta, que estudou na Nova e depois no Sensory Etnographic Lab de Harvard, ou os filmes da Sílvia das Fadas, que estudou na CalArts. Provavelmente esta formação de base e origem diferentes é a causa de títulos disruptivos de uma certa imagem que o cinema português tem de si mesmo. Filmes que, muitas vezes, são feitos com dinheiro que não é português, fora de Portugal, por um realizador que por acaso nasceu aqui, mas podia ser de outro sítio qualquer.
MM: Bom, mas isso depende muito deles próprios. Agora, por causa do ciclo, falei com alguns “desses” realizadores, a Filipa César, a Sílvia ou o Sérgio da Costa e a Maya Kosa e as posições que eles tomam em relação ao que fazem são muito engraçadas, porque cada um tem a sua posição mas nenhum deles está a marcar, claramente, “eu estou a fazer cinema português.” Mas nenhum deles também o está a negar, eles assumem onde nasceram ou onde têm raízes. O caso do Sérgio ou do Basil da Cunha é que são filhos de emigrantes portugueses na Suíça que nasceram lá mas querem vir para cá e estão a instalar-se em Portugal. Mas assumem-se mais pelo estatuto de cineastas, não se consideram artistas plásticos como a Tatiana Macedo, Filipa César ou Joana Pimenta. E até mesmo a Salomé Lamas ou o Gabriel Abrantes, eu julgo que eles não tenham que estar condicionados a uma certa ideia de tradição do cinema português. Isso já foi rompido por todos os lados. E é aí que eu acho que tudo se torna mais interessante, quando cada um encontra a sua forma de fazer as coisas.

Por exemplo, a Sílvia foi para a Califórnia, agora está em Viena. Para ela, o conteúdo não é tanto o contar das histórias, é a matéria do filme em si, por isso ela vai para lados mais experimentais. E ainda assim as origens coimbrãs dela são visíveis nos primeiros filmes, que são filmados lá. Ela estagiou aqui na Cinemateca e no ANIM, passou muito tempo aqui na sala de projecção e lá no ANIM comigo, porque queria aprender a mexer em moviolas (o que não é muito difícil…), mas ela tinha sempre esse objectivo de ir estudar para a CalArts. E teve essa coragem e essa ousadia que não é incomum na história do cinema português. O Leitão de Barros e o Lopes Ribeiros passearam-se pela Europa a aprender como fazer cinema, o mesmo com a geração do cinema novo, que estudaram em Paris e Londes e alguns deles foram estagiários de realizadores muito conceituados.
Mas depois isto fechou-se um bocado, com a criação de uma escola de cinema em Portugal. É interessante pensar que toda a geração do Cinema Novo existe por causa da Gulbenkian, foram eles que financiaram estas bolsas de estudo e depois, através do CPC, financiaram os próprios filmes. E o Estado, como via isto e percebia que estava a perder o controlo, decide criar a escola de cinema e cria um Instituto de Cinema, chamando todos esses tipos que, à partida, seriam contra o próprio regime. Eles aceitam – e ainda bem! –, mas estas coisas são realmente intrincadas e houve, em consequência, esse fechamento. Recentemente, com os acordos internacionais como o do Erasmus e outros, a escola de cinema passou a ser apenas um passo. E muitos deles, quando têm a oportunidade, vão para fora (e até agora têm voltado, mesmo que vivam fora mantêm essa ligação com Portugal). O mundo é diferente.
A Gulbenkian continua a ser fundamental.
MV: Quando pensamos que o Gabriel começa por estudar pintura em Nova Iorque e é por causa de uma exposição de pintura que ele faz o Visionay Iraq (2008) – que será o seu segundo filme, depois dos Olympia I & II (2008) –, ou na Filipa César, que trabalha directamente com galerias, eles têm uma independência económica que é muito diferente do trabalho de outros realizadores cujos filmes não comunicam com esse meio de galeria. E portanto eles vão buscar, muitas vezes, outros apoios, que são alternativos ao Instituto de Cinema. Há, assim, uma liberdade, também de meios de produção, que lhes permite mais facilmente viverem fora. Mas Manuel, tu há bocado falavas da Gulbenkian e se de facto não tem sido como antigamente, a Fundação continua, nos últimos anos, a dar bolsas de estudos. O Ico Costa e o Jorge Jácome, quando estudaram na Fresnoy, a própria Sílvia, para ir para a Califórnia ou a Joana Silva do Royal College, todos eles receberam apoios da Gulbenkian. Assim como o Carlos Almeida, para estudar restauro de cinema ou o Diogo Costa Amarante. A Gulbenkian continua a ser fundamental, de maneira talvez não tão visível, para que uma série de pessoas continue a poder estudar lá fora.
MM: Eu acho que até mais… Mas de certa forma referiste uma coisa que é importante não deixar escapar, é que há aqui patamares. Que são geográficos, mas que são muito sobre o nível económico a que cada um pertence. À partida o cinema é uma arte burguesa, para não dizer aristocrática. Mas, obviamente, e penso em Portugal, há também pessoas com origens mais precárias, mas há também pessoas que têm acesso ao cinema devido à sua condição de vida ou familiar (porque puderam ter uma câmara de filmar muito cedo, ou estudar numa escola em que se pagava mais…).
PC: Principalmente durante o regime. Ter a possibilidade sair de Portugal, estudar e ver filme (que hoje em dia é uma coisa tão básica, mas na altura não era). O Paulo Rocha diz isso várias vezes, que se não fosse a fortuna que herdou do pai nunca teria sido cineasta.
MM: Sim. Eu não conheço o Adriano Mendes, mas o Primeiro Verão é um filme feito por carolice, uma coisa muito familiar. E no tempo que ele demorou a fazer esse filme o Abrantes deve ter feito uns dez filmes. [Risos]
RVL: Ainda sobre a questão das escolas, de uma maneira diferente, é mais ou menos público que o António Reis detestava cinema avant-garde ou experimental. O Vítor Gonçalves segue um pouco as suas passadas e em boa verdade não há quase tradição de cinema experimental em Portugal (além de duas pessoas escondidas num buraco e talvez o Edgar Pêra). E isso é consequência também da formação que existe em Portugal…

MV: Mas o que queres dizer com cinema experimental? É uma expressão demasiado vaga. Por exemplo, considerarias o trabalho do [António] Palolo? Ele fez imensas experiências nos anos 60… Mas para mim é muito difícil lidar com essa expressão, porque cada vez sei menos o que quer dizer.
RVL: Até uma certa altura acho que era muito evidente que o cinema experimental era aquele que caminhava para o abstracto, não necessariamente narrativo, usava o found footage (hoje isso já se popularizou), e formatos não profissionais (como o Super 8 e depois o vídeo), tinham metragens mais curtas. Por exemplo, filmes de película pintada são obviamente cinema avant-garde. Apesar de avant-garde e experimental não serem sinónimos… Mas de qualquer forma, não há tradição em Portugal destas práticas, nunca fizeram escola.
MV: Mas há, vinda dos artistas plásticos. O Julião Sarmento, por exemplo, fazia esse tipo de experiências. Mas não se lhes chamava, na altura, cinema experimental. Hoje em dia os nomes que se enquadram nessa tradição são de facto esses que estivemos a falar, que vêm de um meio e de escolas estrangeiras, a Sílvia das Fadas, a Filipa César…
PC: Mas é como diz o Manel, Portugal tem um escola de cinema desde 1973, é relativamente recente. A partir do século XXI começam a aparecer outras escolas pelo país, um pouco por todo o lado. Portanto, é um fenómeno ainda mais recente.
RVL: Mas quando eu falo em criar escola, não é do ponto de vista pedagógico, é do ponto de vista da linhagem, dos interesses partilhados em redor de um certo tipo de expressão.
PC: Deixa-me só dar um exemplo. O cinema de animação, durante muito tempo, foi dos formatos, ou dos géneros que mais prémios conquistou para o cinema português – o [Abi] Feijó, a Regina Guimarães, o Zepe. E falava-se muito da escola portuguesa de animação, por quem estava de fora, mas nós cá sabíamos que isso não existia… Havia núcleos que trabalhavam em conjunto, pequenos estúdios. Não era escola nenhuma, tinham técnicas e estilos diferentes, coisas muito artesanais. Por vezes havia colaborações, mas por necessidade. O caso do experimental cai um pouco nesta questão.
RVL: Mas quando é que começa a haver uma produção sistemática de cinema de animação em Portugal? É a partir dos anos 70/80, não?
MV: Bem, há um fenómeno associado à Filmógrafo que foi importante por causa de uns cursos que se fizeram cá. Mas a história do cinema de animação português é muito anterior…
RVL: Sim, há cinema mudo de animação, o Pesadelo de António Maria (1923) e outros filmes que entretanto se perderam.
MV: Mas houve, mais uma vez, uma certa constância a partir dos anos 70, sim.
RVL: Mas consegue-se perceber quando é que começou a haver uma produção regular que… criou escola. Isto é, que se fizeram filmes, e nesses filmes formaram-se pessoas que fizeram outros filmes e por aí em diante. No cinema experimental isso nunca aconteceu. Se calhar por serem sempre projectos muito individuais, quase particulares.
PC: Se quisermos ser consistentes, podemos dizer que ao longo da história do cinema português houve vários cineastas consagrados que foram experimentando coisas que não eram de todo a linguagem convencional da época. Por exemplo, o João César Monteiro, todos os filmes dele até, talvez, ao Recordações da Casa Amarela (1989) são coisas experimentais, porque rompem com a linguagem dominante. Mas quer dizer, não é propriamente um cineastas experimental. O Ernesto de Sousa fez coisas em vídeo-arte, além do filme mais “tradicional” dele que é o Dom Roberto (1962). Mas são cineastas que não se prenderam a um registo.
MV: Por exemplo, o Augusto Cabrita faz, com o Carlos Vilardebó, um filme que se chama Os Caminhos do Sol (1966), que era um filme sobre os processos de fotografia que podes considerar como um filme avant garde para a época.
PC: Indo mais a trás, há o Brum do Canto com o A Dança dos Paroxismos (1929).
RVL: Mas isso está enquadrado na primeira vaga francesa, e também o Leitão de Barros e o Lopes Ribeiro fizeram filmes nesse sentido… À Epstein ou à Vertov, ou Eisenstein, ou, claro o Oliveira à Ruttmann.

MM: E também as obras do Reinaldo Ferreira, mais pelas temáticas, também se podiam considerar experimentais. Mas isto é um problema da própria produção. Se nem a ficção e o documentário têm grande investimento, muito menos a animação que dá um trabalhão para fazer cinco minutos e menos ainda o cinema experimental que não “interessava” a ninguém. Ninguém apostava. Eram muito os artistas plásticos que trabalharam essas áreas. O caso do Ernesto de Sousa é muito particular por ser um cineasta, um grande cineclubista, e também um tipo das belas artes. E que vai dar um grande rigor, enquanto professor, a uma série de alunos que passam por ele. Mas há uma série de artistas plásticos cujos filmes não são conhecidos. Tens o Julião Sarmento, o Cabrita Reis, o Palolo, a Ana Hatherly, o [E. M. de] Melo e Castro são pessoas que têm filmes experimentais. Filmes que muito poucas pessoas têm acesso…
RVL: E já agora, estão conservados no ANIM?
MM: Não. Alguns estão, mas a maioria não está. Aquilo que existe no ANIM é muito limitado. Só se tem acesso a esses filmes falando talvez com a Gulbenkian ou Serralves, ou com os próprios artistas e com alguns tipos que estudam as ligações entre o cinema e as artes plásticas em Portugal. É realmente complicado, e provavelmente vão-se perder. Há uma história muito engraçada, de um muito conceituado coleccionador português de cinema experimental que vivia no Alentejo e era pasteleiro. É quase um mito, mas é verdade. Mas há vários realizadores que tentaram sempre fazer experiências. Eu não o considero um cineastas experimental, mas o António de Macedo, a cada filme, mete lá uma merda de um plano que ninguém sabe donde vinha.
PC: E mesmo em filmes mais comerciais, como o Domingo à Tarde (1966), tem lá umas sequências a cores com o som estragado e com intervenção directa em película.
MM: O Edgar Pêra, se quiseres, é um cineasta experimental. Eu não o considero como tal…
Há duas pessoas em Portugal que eu acho que fazem cinema experimental hoje em dia: a Filipa César e a Tânia Dinis
PC: Há duas pessoas em Portugal que eu acho que fazem cinema experimental hoje em dia, mais pela coerência e consistência do trabalho onde vêm desenvolvendo um método: a Filipa César, cujos filmes trabalham sempre a relação entre a performance, a arte visual e a imagem em movimento; e os filmes da Tânia Dinis, que trabalha com imagens familiares e performance também (ela já tem quatro ou cinco filmes e são todos feitos dentro de uma coerência não formatada). Já o Pêra, que é um caso excepcional em Portugal pela longevidade, mas trabalha com linguagens e códigos que vemos facilmente noutros casos.
MV: Há uma outra pessoa, da qual eu não conheço bem a obra, mas que é um habitué dos festivais de cinema experimental, o Noé Sendas. O trabalho dele também anda por aqui. Mas também não é muito conhecido… Também o Paulo Abreu nalgumas coisas.
MM: O Pedro Bastos também.
MV: O Paulo Abreu, antes do Barba (2011), era até representado pela Lightcone que é uma das grandes distribuidoras de cinema experimental.
PC: Mas é um terreno complicado.
MV: E pouco estudado. Por isso é que é complicado ter uma noção geral.
PC: Em Vila do Conde há uma competição experimental, eu não estou nesse comité, mas acontecem imensas discussões sobre a pertinência de certos filmes nessa secção. Porque para uns certo filme não faz sentido na secção experimental. Porquê? Porque é uma área sem critérios, e nem podia tê-los, porque nesse momento deixaria de ser experimental.
MM: O Branca de Neve (2000) é experimental?

RVL: Mas esta questão do cinema experimental é semelhante à questão do cinema de género em Portugal. O terror, o policial, a ficção-científica, a fantasia… A história do António de Macedo é agora muito conhecida, mas há também o caso do Reinaldo Ferreira. Há uma história subterrânea do cinema português (não-canónica) que inclui tanto algum cinema de género como o cinema experimental. Há uma segunda história que é preciso escrever.
PC: Uma segunda, uma terceira, uma quarta… A história das histórias do cinema português tem esse problema, porque foi sendo feita por curiosos. Aliás, feita por esta casa [Cinemateca Portuguesa]. A primeira história do cinema português foi escrita pelo director da Cinemateca, o Felix Ribeiro, que, numa lógica de inventário, começa a recolher informação, mas já começa tarde. E os primeiros escritos sobre a história do cinema português só aparecem nos anos 40, uma publicação em fascículos chamada A Maravilhosa História do Cinema que incluía dois capítulos (do Felix Ribeiro) sobre o cinema português organizada por dois jornalistas, o Fernando Fragoso e o Raúl Faria da Fonseca. Isto é o início do início.
A história faz-se sobre os documentos e nós temos, como dizia o Manel, filmes recentes que estão perdidos, agora imaginem a quantidade de filmes que se perderam do início do século, os primeiros trinta anos de produção até à Primeira Guerra Mundial. O Bénard conta uma história engraçada sobre um filme que foi recuperado recentemente, Os Faroleiros (1922) do Maurice Mariaud, cuja cópia esteve perdida durante 70 anos até ser descoberta num armazém qualquer lá do Porto que tinha sido do realizador. E então, dizia-se maravilhas do filme porque nunca ninguém tinha visto, que era maravilhoso, a última bolacha do pacote, até que quando se descobriu o filme e se fez o restauro percebeu-se que é um filme banalíssimo para a época. Esse é um problema na escrita da história, a dificuldade do acesso aos filmes, e depois há essa questão de não se ter olhado para o cinema como algo que podia ser historiografado (era algo banal, que estava a acontecer) e por isso começou-se muito tarde e perderam-se muitas fontes.
Além disso, há muito poucas pessoas a escrever. Invariavelmente são o Bénard da Costa, o Felix Ribeiro e o Luís de Pina, depois em 1978, o Centro Nacional de Cultura encomenda uma história do cinema português ao Henrique Alves Costa. E como muitos deles quase não tinham tido acesso aos filmes da primeira metade do século e às fontes (e à pratica da historiografia metodológica de hemeroteca) todas essas histórias têm muito problemas. E foi-se cristalizando a história em torno dos cineastas e não dos filmes. Daí que haja o mito do ano zero do cinema português, mas depois percebe-se que o que aconteceu foi que nesse ano não estreou nenhum filme português de longa-metragem nas salas comerciais mas, se consultamos o prontuário do Matos-Cruz, estrearam cerca de 100 filmes nesse ano, de curta-metragem e documentário, filmes industriais…
MV: Eu próprio me lembro de, no meu início como programador de cinema, de começar a trabalhar no Festival de Cinema do Algarve que era um festival de cinema amador ao início, o FICA, e houve um senhor que ganhou a competição em 1970, 1972, 1975 e 1978, chamado Vasco Pinto Leite e que, por filmar em Super8 esses filmes não estavam acessíveis de maneira nenhuma, quando eu, no 25.º aniversário quis voltar a exibi-los. Há aqui outra parte da história que se perdeu irremediavelmente. E estamos a falar dos anos 70…
PC: O ANIM tem uma colecção de cinema amador incrível, que, entre muitos filmes familiares de férias e festas de aniversário, tem também cinema de ficção. Havia um circuito, uma revista de cinema amador, havia festivais. É por aí que começa o António Campos. E Portugal recebeu dois congressos internacionais apoiados pela UNICA, dedicado ao cinema amador, nos anos 50 em Lisboa e em 72 no Estoril. Esta é uma área que desde de sempre foi desconsiderada e isso faz com que de repente a história do cinema português possa ser reescrita. Ou pelo menos relativizada.
A história do cinema português ainda é uma história feita dos grandes.
A história do cinema português ainda é uma história feita dos grandes, o que importa é o nome do realizador e do produtor e pouco se sabe dos modos de produção. Conhecem-se bem certos “grandes” momentos como a Cooperativa do Espectador do Ernesto de Sousa, as Produções Cunha Telles, o caso da Tóbis, A Invicta Filmes, mas conhece-se muito pouco como é que o Reinaldo Ferreira fez aqueles filmes. Ou o funcionamento da Fortuna Filmes, que teve menos sucesso e que era gerida pela pioneira Virgínia Castro de Almeida. A história do cinema é muito mais que nomes. Nós estivemos aqui a falar de coisas que não sendo filmes (produtoras, festivais, distribuição, crítica) influenciam directamente a forma como se fazem os filmes. E a história do cinema não deve ser confundida com a história dos filmes. Deve ser algo muito mais vasto e complexo.
