Aprendemos a rir com mais inteligência à custa do génio de Miloš Forman. Entre a Checoslováquia e Hollywood, entre a Nova Vaga e a Nova Hollywood, Forman formou olhares lancinantes e envolveu-nos na sua crítica pelo riso, um riso por vezes temperado com tragédia. O À pala de Walsh presta-lhe uma homenagem que procura lançar um flash rápido mas sentido sobre o seu percurso. De Horí, má Panenko (O Baile dos Bombeiros, 1967) a Valmont (1989). Eis um appetizer bem apetitoso, com um extra que não podemos deixar de assinalar: com este In Memoriam assinala-se também a entrada na equipa de um novo walshiano, Duarte Mata.
Valmont (1989) não é dos filmes de Milos Forman mais apreciados. Antes pelo contrário, a tendência é arrumá-lo a um cantinho e nem ousar referi-lo entre as suas distintas produções. É no entanto um filme que me parece conter um muito apreciável “discreto charme” europeu, talvez mais derivado da pena de Jean-Claude Carrière, do que do próprio realizador – que escreveu com ele o argumento. Digamos que aquele beijo de Valmont (Colin Firth) na nádega de uma jovem virgem só pode ser sido escrito pelo maior colaborador francês de Buñuel… É, pois, com este título que presto homenagem a Forman, porque foi o que me conquistou, ainda era eu uma adolescente, com a sua perfídia elegante, ligeira, toldada por uma espécie de amargura deslocada, um rasgo melodramático. Aqui falo especificamente da Madame de Tourvel (belíssima Meg Tilly), que sofre de verdadeiro amor pelo protagonista libertino, com a expressão mais suave deste mundo. Sofri com ela. Muito. De todas as vezes que revi Valmont.
Certamente, há filmes “menores” com que nos relacionamos de forma muito particular. Ainda assim, não vejo nada Valmont como um filme menor. Ademais, prefiro-o ao Dangerous Liaisons (Ligações Perigosas, 1988) de Stephen Frears – são ambos baseados no mesmo romance epistolar de Choderlos de Laclos. O do inglês é feito para a cabeça, o do checo para o coração (e quem diz coração diz pele). Valmont, o filme, é muito físico em todo o seu jogo de sedução com o espectador. E um dos maiores trunfos é ter Annette Bening como Merteuil. Nem duas Glenn Close vestem tão gloriosamente a indecência.
Inês N. Lourenço
Não deveria ter mais de 13 anos quando vi pela primeira vez One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Voando Sobre um Ninho de Cucos, 1975). E atingiu-me com o mesmo impacto gravativo com que o bebedouro esbranquiçado, arrematado pelo Chefe Bromden, derrui as grades da janela do hospital psiquiátrico no desfecho apoteótico desse filme. O embate foi tão forte que, nesse mesmo ano, li o livro de Ken Kesey (escrito do ponto-de-vista de Bromden, que nos guiava pelos corredores da loucura e intolerância, escudando-se num silêncio assustado com o qual nos mostrávamos complacentes) numa procura febril e mais aprofundada pela repetição dessas impressões. Não só isso, como adquiri o álbum da banda sonora para na altura reouvir, sempre que possível, o tema de encerramento espectral onde um tambor tribal, tocado de uma maneira espaçada e intimidativa, era acompanhado pelo serrote tiritante de Jack Nietzsche, criando uma atmosfera hipnótica e assombrada que, lentamente e com o acumular gradual de outros instrumentos mais “normais”, se transformava num apelo inspirador à liberdade. Nem o livro nem o álbum me deram essa sensação semelhante de catarse. E só agora, com a triste partida de Miloš Forman, percebo porquê.
Aquilo que encantava em Forman não era a força visual, nem a pujança narrativa. Na modéstia da sua realização, aquilo que surgia como extraordinariamente cinematográfico era a espontaneidade do trabalho do ator. A dinâmica que existe entre os vários pacientes, com os seus feitios heterogéneos, do hospital psiquiátrico de One Flew Over the Cuckoo’s Nest, surge como orgânica e é graças a ela (principalmente com a que o protagonista estabelece com os outros e com a enfermeira) que o filme flui da comédia para a tragédia, mostrando como a graça está a um milímetro da desgraça, sem parecer forçado ou manipulador. Material deste tipo necessita de um realizador delicado e maturo para levá-lo a bom porto. E é essa maturidade, rara e generosa para com os seus intérpretes, que permite a construção de personagens tão densas como o satânico Salieri em Amadeus (1984), o bufão Andy Kaufman em Man on the Moon (Homem na Lua, 1999) ou o egotista Larry Flynt em The People vs. Larry Flynt (Larry Flynt, 1996), com um incisivo sentido de empatia por elas em permanente construção. Ao contrário dos seus heróis, Forman pode não ter sido um excêntrico que se atreveu a desafiar o Sistema na América. Mas talvez, na sua boa conduta, tenha aberto uma série de janelas interiores que permitiram alguns dos mais memoráveis e libertos desempenhos vistos na época da Nova Hollywood e posterior.
Duarte Mata
Algures a meio estará a virtude. É assim também para o cinema de gente desequilibrada, e de gargalhada desbragada, de Miloš Forman. Há uma loucura sadia – até no seu filme que vi mais vezes durante a minha adolescência, Amadeus (1984) – que municia sempre o ataque que toca fundo. Foi assim quando Forman transformou um baile de bombeiros numa sátira que visava toda a sociedade checa sob o jugo comunista ou quando converteu a história de Andy Kaufman num retrato doce-amargo sobre a América. Mas a meio está Taking Off (Os Amores de uma Adolescente, 1971), o seu primeiro filme americano. Foi um parto, dizem, bastante complicado. Forman muda-se para os States e passa um ano inteiro a incubar a ideia que propiciaria uma entrada de leão na exigente indústria norte-americana. Dessa longa reflexão, e depois de muito inspirar o ar da sociedade que o acolhia, lança-se num striptease destemido. Não de si – isso raramente Forman faz – mas dos outros, do que o rodeia. Neste caso, ataca o lar norte-americano e põe a nu um conflito geracional, entre pais e filhos, de consequências incalculáveis. Desde logo, a fuga de adolescentes e a correspondente constituição de uma “sociedade de pais” que procura saber do paradeiro dos seus rebentos on the run. A maioria deles, é o mais certo, terá sido desviada pela cultura das drogas, do rock e da boémia hippie.
Taking Off é um filme-ainda-checo-nos-Estados-Unidos. Na realidade, é um regresso às origens para Forman, entenda-se, um piscar de olho a Konkurs (Concurso, 1964) e Cerný Petr (O Ás de Espadas, 1964). Ainda estão lá todos os tiques da Nova Vaga, como a montagem irónica, altamente sincopada, cheia de “saltos”, que lança permanentes comentários mordazes à acção. Ou o fluxo descontrolado de acontecimentos, de situações que vertiginosamente se sucedem. A sátira é tão portentosa quanto isto: se há uma crise geracional, se os filhos fogem dos pais, pois então que se aproveite a fuga para fazer… uma festa! A desesperada “sociedade de pais” transforma-se numa orgia de marijuana, álcool, jogos de striptease, “gargalhadas porcas”. “Esta marijuana é mesmo boa”, remata uma das mães, depois do respeitável pai de família ter sido avistado completamente nu em cima de uma mesa pela filha supostamente desaparecida – entretanto, o filme, como os pais, esquecera-se dela, deles, dos filhos… No fim, o namorado hippie da filha visita esta casa em frangalhos. O dito pater familias, desconfiado, pergunta-lhe se a sua carreira de músico dá dinheiro. Ele responde, desinteressado: “no ano passado ganhei para cima de 200 mil”. O patriarca engasga-se. “É engraçado: um tipo faz música para combater o governo. E depois acaba por chegar a muita gente e a ganhar dinheiro que permite comprar as coisas que combatia… Acho que lido bem com contradições”. É a estocada final de Taking Off: de facto, os filhos fogem dos pais, os pais, em certa medida, fogem dos filhos, mas ambos são farinha do mesmo saco. Cheios de contradições e, claro, ridículos. Somos todos.
Luís Mendonça
Miloš Forman foi um dos grandes realizadores internacionais do século XX, tendo tido uma carreira cujo cosmopolitismo, tal como no caso de Roman Polanski, encontra poucos pares na História do Cinema. Começou no circuito tendencialmente fechado da cinematografia checoslovaca, trabalhou durante décadas nos Estados Unidos, filmou e co-financiou em França e no Reino Unido grande parte das últimas obras. Foi precisamente esta abertura ao mundo, patente desde uma juventude sedenta de conhecimento e novidade, que fez com que sempre tivesse demonstrado interesse por quem, ao contrário de si, não a possuía. No período checoslovaco, Forman assume assim praticamente apenas um objectivo: o de cristalizar cinematograficamente a estreiteza de horizontes imposta pelo regime comunista, que pretendia instituir um leque restrito de opções de vida em que cada indivíduo teria de se inserir, sem poder, por ignorância, seguir outras. No díptico Kdyby ty Muziky Nebyly / Konkurs (Concurso, 1964) e em Horí, má Panenko (O Baile dos Bombeiros, 1967), pequenas associações rurais, de músicos e bombeiros, são o palco dos petits riens que Forman, irónica mas ternamente, co-encena, e que reflectem, com tanto rigor, o resultado da actividade humana quando não existem pontos de referência.
Esta imagem é um fotograma de uma das mais célebres cenas cómicas de Horí, má Panenko, em que uma passagem de modelos é preparada segundo uma muito vaga ideia do que seria o glamour do outro lado da Cortina de Ferro. As roupas e os penteados são, no entanto, antiquados, bem como são desajeitadas as poses e as coreografias e tristes os rostos das jovens checoslovacas, cujos sonhos e expectativas são limitados por uma superestrutura que Forman, em virtude de uma fortíssima censura que virá a motivar a sua partida para os Estados Unidos, nunca poderá representar directamente nos seus filmes, mas que estará sempre subtilmente presente. A música, e, por extensão, o cinema que a filma, são as modalidades de escape desta estreiteza de horizontes, e serão também o caminho da fuga da monotonia seguido pela protagonista de Lásky Jedné Plavovlásky (1967). Apesar de ter sido com Amadeus (1984) que, ainda muito jovem, conheceria e me apaixonaria por Forman, foi na descoberta da sua fase checoslovaca que percebi a sua genialidade como realizador: a de ter conseguido compreender como ninguém o relativismo dos valores e dos gestos consoante os espaços e os tempos em que são desenhados.
David Pinho Barros