Se é certo que devemos exigir de qualquer cineasta um estilo, é errado pensar que o reconhecimento imediato de determinadas idiossincrasias representam de forma lógica um factor necessariamente abonatório. Se no caso de Wes Anderson o podemos resgatar de um sistema americano onde o imperativo é precisamente a negação desse estilo, em detrimento de um produto de fórmulas garantidas, esquemas sobejamente planeados e onde a marca autoral consta ainda por pudor da própria indústria, incapaz de nos revelar a evidência de que o tímido nome que hoje consta, enquanto assinatura, é o de um tarefeiro e não o de um cineasta, este estilo andersiano nunca constou no meu dicionário como um elogio, mas antes a certeza de um tormento.
É esta a sua fórmula, dar algo reconhecível no diferente, tal como o turista que viaja fisicamente pelo mundo e se sente psicologicamente em casa no momento em que pede o seu Starbucks no Japão
É certo que o tormento de Anderson é um tormento colorido, mas nem por isso deixa de o ser. Na verdade há uma estranha relação entre Anderson e Kusturica, dois cineastas provindos desse magnífico campo aurático do estilo, e do qual o estilo na verdade representa uma só coisa, a plasticidade do vazio. Talvez a obra de Kusturica seja mais gravosa, na medida em que este torna colorido aquilo que não o devia ser. O estilo de Kusturica é na verdade uma ofensa a quem é retratado, porque este esvazia o drama da guerra, de um povo, de uma comunidade, dando o exotismo necessário para que o seu estilo se traduza. Já em Anderson, o tormento que este me causa não provém de uma índole de natureza ética tão óbvia, porém não devemos esquecer o brilhante artigo escrito pelo crítico David Nordstrom, intitulado «The Life Fascistic».
A análise demolidora de Nordstrom observa, através das considerações de Sontag em «Fascinating Fascism», que o fascismo não deve estar delimitado à evidência iconográfica fascista, mas de que esta possui inúmeras formas. No caso de Anderson, a fórmula traduz-se na organização imagética perfeita do seu universo. O universo de Moonrise Kingdom (2012) é talvez o lugar onde melhor podemos comprovar a tese de Nordstrom.
Mas não desenvolvendo mais este aspecto, até porque não é minha intenção tecer suficientes argumentos que equiparem a abjecção que sinto por Kusturica, ao universo naïf de Anderson, Isle of Dogs (Ilha dos Cães, 2018) representa o recuperar de uma ironia desse anti-fascismo, que o próprio Nordstrom identifica nas três primeiras obras do cineasta. De facto as boas intenções por vezes são facilmente traídas e no caso de Anderson, sinto habitualmente que o objecto da paródia rapidamente se transforma em objecto de admiração estética. No entanto, saliento uma vez mais o naïf enquanto resultado inconsequente deste, dado que o programa estético de Anderson por vezes está mais próximo de um esvaziar político do que de um insuflar fascista.
Isle of Dogs é neste sentido não um filme de matriz fascista, mas antes um filme absolutamente vazio de qualquer gesto político. Talvez as consequências sejam as mesmas, na medida em que o fascismo é precisamente a despolitização do espaço público, mas os caminhos são diferentes. O caminho que Anderson aqui segue é o de retomar uma história já antiga, a da resistência e luta estudantil no Japão de 1968 e projecta-la num futuro próximo. Neste universo, a ameaça química já não representa o flagelo sobre a “ilha” do Vietnam, mas antes sobre uma ilha de cães. Os cães convertem-se numa ameaça, após uma campanha populista que demonstra como pode o melhor amigo do Homem rapidamente ser o inimigo número um de uma nação.
Até aqui a parábola nada tem de novo, contando a história de dezenas de regimes opressores que, para consolidar o seu poder, tornam o familiar em “desfamiliar”, unindo uma maioria contra uma minoria. Algures no filme, a repórter dá conta do fraco apoio popular do candidato – um eco da situação política actual, onde a mediocridade dos políticos europeus e americanos face à contestação interna levaram à adopção de medidas populistas contra emigrantes e refugiados, de modo a reconquistar o apoio interno – outro elemento que a Anderson não escapa deste processo dos ismos. No entanto, e é aqui que podemos constatar a inocuidade do cinema de Anderson, é de que o estilo prevalece acima de tudo. A necessidade está de tal forma arreigada no cinema de Anderson, que o mote converte-se rapidamente em pretexto para o seu exercício.
Este é verdadeiramente o gesto que em Anderson mais me incomoda, a sua desonestidade perante os problemas que o seu cinema decide levantar. Nenhum filme pode ser honesto, se a forma não acompanha a tese. E no caso de Anderson, mesmo que neste último filme o histerismo não tome conta em absoluto da tese, até porque a depuração japonesa assim o exigia, Isle of Dogs acaba por ser um filme vazio, porque a marca imperou sobre tudo o resto.
Esta marca andersiana, à qual de forma pejorativa lhe atribui a categoria de estilo, é a fórmula que este encontrou para tornar plano aquilo que é diferente. O Japão aqui, mesmo na sua depuração (o factor da animação, neste aspecto, é uma mais valia porque converte os elementos reais em fantasia sem a carga fetichista que este olhar, em ficção, poderia acarretar), é convertido em objecto risível. Em defesa de Anderson, a crítica deferida em torno de processos de branqueamento ou conversão de aspecto culturais em supostos clichés exóticos, na animação perde essa conotação, tal como assinalei anteriormente. O movimento colorista em Anderson é outro. Não confundamos o trabalho de branqueamento histórico, sobre o qual a indústria americana edificou o seu cinema [de Griffith, a Ford, até ao actual Dunkirk (2017) de Nolan], com aquilo a que podemos chamar de imagética capitalista. O que Anderson faz é unicamente acompanhar esse outro ritmo da indústria americana, o de vender algo distante como próximo, sem que no entanto haja um dano evidente à História, à cultura e ao outro. Não confundamos os processos, ou estaríamos a equivaler os soldados ingleses de aparência nazi de Dunkirk, os negros de Griffith ou os índios de Ford, aos cappuccinos do Starbucks que Anderson cria. É esta a sua fórmula, dar algo reconhecível no diferente, tal como o turista que viaja fisicamente pelo mundo e se sente psicologicamente em casa no momento em que pede o seu Starbucks no Japão, com o devido reconhecimento de que ali deverá trocar o café pelo chá. Aqui trocou o seu café americano, onde organização familiar é o seu exponente máximo, pelo chá japonês dos activistas enquanto núcleo. Se tal troca faz de Isle of Dogs um objecto digno de nota, creio que a resposta é óbvia, não. Mas é necessário atender e discernir determinados aspectos na obra de Anderson, evitando assim a célebre máxima de “deitar o bebé com a água do banho”.