A primeira longa-metragem de Xavier Legrand faz parte de um desses raros cometas que se destacam da habitual tepidez com que o cinema francês actualmente nos presenteia. Mais invulgar ainda é pensar que dentro do género no qual o cinema francês se tem vindo a perder – o drama da classe média, das separações, das custódias – que este é capaz de criar uma linguagem absolutamente diferenciada, quer pelo tom que adopta, quer pela formalidade que lhe segue.
Talvez seja embirrância minha, mas ao longo de anos tenho vindo a construir do cinema francês uma imagem homogénea, difusa, em que diversas obras se misturam e onde já não sei colocar a Deneuve ou a Huppert no filme certo. A memória que guardo são meras interpretações, algumas histórias que pela sua honestidade conseguem escapar à banalidade da sua forma, contudo, essa é a grande imagem que retenho desse cinema.
Neste filme não há zonas cinzentas, aquele homem é uma besta e por isso deve ser retratado como tal. A tolerância que o sistema tem para com os agressores (e que permite a que no início do filme possamos nós mesmos sentir que algumas alegações possam ser falsas), é a mesma intolerância que esta câmara formalmente tem para com a situação.
Por isso, quando um filme destes nos é dado a ver, é de um enorme alívio. Um alívio perante um país europeu que contrasta com as políticas de tantos outros, ao conceder apoios à produção cinematográfica, assim como à sua exibição e distribuição, e nos quais encontramos por fim uma justificação. A crise do espectador é sempre diagnosticada através dos mesmos malefícios – primeiro a televisão, depois o computador, agora o ipad e a emergência do reinado das séries – mas convenhamos que por mais sustentável que daí possamos justificar essa crise, o cinema continua a ser uma linguagem, a possuir uma forma e os responsáveis pela crise dessa forma não são os espectadores, mas antes os cineastas. São os cineastas, dos quais já mal conhecemos os nomes e que surgem timidamente a um canto do poster, dando lugar às estrelas de cinema e aos invariáveis e insuportáveis chavões do The Guardian, IndieWire ou da Film Comment – “exuberante”, “uma obra-prima”, “de cortar o fôlego” – que deram a última estocada nessa arte. Porque ser cineasta exige um estilo, uma forma de olhar e esse estilo, esse olhar, está igualmente a desaparecer.
O cinema precisa de uma sala, assim como um teatro de um palco, um concerto de um auditório ou uma pintura de um espaço museológico ou galeria. Se formos comparar este filme com muitíssimos outros que são produzidos anualmente sobre o mesmo tema, perceberíamos a exigência de uma sala ao contrário da restante produção, que de tão atabalhoada e informal que é, a televisão até se apresenta como um alívio ao ser mais benévola no detectar dos seus defeitos.
Outro aspecto que é fundamental destacar, antes de partimos para o filme em si, é o facto da actualidade e pertinência do assunto que este convoca. Recordo a capa e artigo do Libération do ano passado (2017), que dava a conhecer a história de 220 mulheres assassinadas pelos seus companheiros entre o ano de 2014 e 2016. A importância de um artigo e de uma capa consagrada a este tema, por mais conscientes que estejamos do flagelo da violência exercida sobre as mulheres, serve para contrariar a banalidade com que muitos destes casos são reportados (quando os são!) algures no fim dos jornais e misturados com outros tantos temas. Os próprios casos de violência doméstica, quando ocupam um maior tipo de destaque, surgem através de tablóides, o que em nada contribui para a discussão séria e a necessidade de promover uma maior protecção das vítimas, porque este tipo de imprensa prefere particularizar o horror da situação e acentuar a sua suposta inevitabilidade narrativa.
As mulheres são vítimas e morrem porque o sistema assim o permite. Tal como todos nós compactuamos diariamente, ao virar a página quando surge mais uma mulher vítima de violência doméstica. Aquilo que impede centenas de mulheres de denunciarem a sua situação, advém da impunidade com que a lei por vezes julga casos de agressão e rapto como consequência natural, face a uma conduta adultera. Aludo, é claro, a um recente caso ocorrido em Portugal, porém não é a excepcionalidade deste, mas antes a sua banalidade que me faz invoca-lo. Este filme não parte de nenhum cenário desconhecido, ele é antes o retrato exacto da excessiva tolerância que a lei tem face aos crimes de violência doméstica. É este sistema que permite que a custódia de um filho seja partilhada com um pai, mesmo quando há indícios fortes de maus tratos.
Neste filme não há zonas cinzentas, aquele homem é uma besta e por isso deve ser retratado como tal. A tolerância que o sistema tem para com os agressores (e que permite a que no início do filme possamos nós mesmos sentir que algumas alegações possam ser falsas), é a mesma intolerância que esta câmara formalmente tem para com a situação. Porque besta não alude a nenhum sentido mais metafórico do termo. Neste filme, tal como salientei, a forma segue o seu conteúdo e por essa razão, se é necessário retratar um homem violento, a sua violência deve estar presente no filme, em todo o filme. A corporalidade do actor Denis Ménochet é um factor crucial, não pela sua óbvia robustez, mas pelo espaço que ocupa em cada plano e que nos faz temer a sua presença, porque mesmo na sua ausência, o seu corpo, a sua massa, está lá. A própria fragilidade do corpo de Léa Drucker não é física, a câmara constrói essa própria fragilidade através da situação na qual ela está inserida (quer por comparação ao agressor, quer pelo medo que a leva a tornar-se esquiva. O único plano frontal e no qual a fragilidade desaparece por instantes, é somente no início do aniversário da filha, ainda não assombrado pela presença do pai). Quando estes corpos convergem (a cena em casa ou no parque de estacionamento), observamos o tamanho desmesurado das mãos do agressor no pescoço da vítima, o seu imponente porte naquele abraço. Este corpo que agride é sempre desproporcional face ao ser da sua agressão e isso não é mero resultado das características físicas dos actores, isso é trabalho de câmara.
E sendo um filme sobre a disposição dos corpos, as vítimas e agressor devem estar colocados de forma clara. Não será de estranhar por isso que este agressor tenha como actividade a caça. Também na caça se joga nesta dimensão, entre o corpo que procura e o outro que se afasta, que tenta manter a distância certa para não ser abatido. A persistência deste pai é a mesma de um caçador, que espera pacientemente a sua vítima e todos são potenciais vítimas, porque todos estão à distância do seu ataque. Ninguém próximo a um agressor sai ileso e portanto a conduta lida pela advogada de defesa no início do filme sobre o carácter nobre e bom do pai, descrito pelos colegas de caça ou do trabalho, contrasta com a vivência daqueles que lhe são próximos (os pais, a mulher e os filhos). Não interessa dar ao agressor uma outra vivência ou subjectividade, dado que isso poderia deturpar ou alterar o entendimento que dele temos. Este filme é pautado por um enorme sentido de justiça, precisamente por não dar a palavra ou o direito de justificação ao agressor da sua conduta. O que este faz ao longo do filme é semear o terror, é praticar sucessivos crimes de intimidação, de violência psicológica e física e contra esses crimes não há justificação, não podemos ser brandos.
De fazer notar ainda, que além desta retidão formal e narrativa, o filme vive sem qualquer tipo de sustentáculos exteriores. Não existe música ao longo do filme, porque não é necessário suportar um rosto angustiado ou exacerbar a violência de um homem quando essa angústia e essa violência já estão lá presentes. Temos no entanto uma cena com música, é certo, no aniversário da filha. Mas enquanto esta canta o Proud Mary, o seu rosto contrasta em absoluto com a festividade e tom desbragado que a música exige e que convoca os outros corpos a dançarem. Neste momento incrível vemos apenas um rosto apavorado, um olhar que sustém a custo as lágrimas, um corpo tenso, uma boca que mexe e canta porque obedece a acordes. Penso ainda que qualquer outro miserável cineasta recorreria a este truque sem hesitação, sobretudo no plano final da mãe e do filho na banheira, enquanto o pai tenta arrombar a porta. Mas Legrand demonstrou e reiterou o tom do filme, o de um enorme sentido de justiça difícil de encontrar, sobretudo numa primeira obra, onde por norma é território propício a tais enfatuações desnecessárias.
Portanto, o filme termina com a mesma secura com que começa (a leitura do depoimento do filho ao fim de dois minutos é de uma violência enorme e que lança o espectador para a implacabilidade da situação que se irá desenrolar). Não é necessário nenhuma música, nenhuma reconciliação, nenhuma vida garantida longe do agressor. Apenas se fecha a porta face ao olhar indiscreto da vizinha, porta essa baleada com 4 tiros de caçadeira e que é o último sinal da violência, demonstrando que ele ainda está lá, que a sua bestialidade mais uma vez se faz sentir. Depois encerra-se a outra porta, a de quem viu (a vizinha, que também somos nós, os espectadores) e o filme termina desta extraordinária forma.