Em 1955, Vladimir Nabokov dava a conhecer ao mundo o seu Humbert Humbert. Personagem inocente, sórdida, que ia filosofando e arfando pelo prazer de ter nas mãos e na mente certas meninas pré-adolescentes. As ninfetas, objecto da sua obsessão, o narrador de Lolita descreve-as como tendo entre 9 e 14 anos. Mas, escreve ele, “We lone voyagers, we nympholepts would have gone insane” se todas as “girl-children” fossem ninfetas. Pois então o que faria de uma jovem, uma ninfeta? Segundo ele vários requisitos. Mas de entre estes salta à vista o que poderia antecipar o interesse no cinema por esta personagem. Segundo Humbert, a ninfeta não depende tanto da idade, mas sim da diferença de idades entre ela e o homem, diferença que implica uma questão de “focal adjustment” de uma certa “distância que o olho interior fica excitado por ultrapassar, e um certo contraste que a mente percebe com um suspiro de perverso deleite”. Estou a traduzir, mal e porcamente, já se percebeu, tudo para salientar essa noção visual de ajuste focal. Uma ninfeta que depende de onde se olha e de um abismo entre o observador e o observado, entre aquele que deseja e aquele ou aquilo objecto do seu desejo. Parece pois argumento que poderia ser esgrimido para suportar ou destruir o espaço do voyeurismo sexual contido no cinema. Mas adiante.
Revi há pouco o filme de Kubrick e fui ler o romance que não conhecia. Entre os dois um abismo. Como se os livros fossem contentores de uma segura perversidade, e os filmes, espelhos de uma aparente inocência. Sabe-se mais ou menos o que se passou. O código Hays ainda estava em vigor e por isso não havia maneira de dar corpos a tudo isto. Nem a um predador sexual que sentava a sua lolita no colo e ejaculava no pijama (sem que ela desse por isso; a partir daqui seria este o plano para perverter o seu platonismo), nem sequer a uma jovem abusada, com cara e corpo de menina. Em algumas passagens do romance, Nabokov põe na boca do seu narrador que a Lolita a que vamos tendo acesso é uma Lolita mental, ideal, e por isso, secundários os seus medos, desejos, do-lores (como se lembram o seu nome verdadeiro). Volto a traduzir, pouco depois do tal momento do pijama: “o que tinha possuído loucamente não era ela [Lolita], mas a minha própria criação, outra, extravagante Lolita – talvez mais real que Lolita; uma sobreposição, uma cobertura, uma Lolita sem vontade própria, sem consciência, que flutuava entre mim e ela”. Esta tesão pelo imaginário deu jeito a Nabokov para tornar concreto o desespero do abusador e para nos trazer abstracta a dor da abusada. Mas e com Kubrick, como poderia acontecer, como poderia a Lolita mental passar ao ecrã, a uma Lolita real de carne e osso? Em parte este desafio de exteriorizar um mundo, foi o que ocupou o realizador de Spartacus (1960).
Talvez tudo não passe afinal de um divertimento sujo, de uma dessas coisas que Hollywood soube tão bem fabricar com um sorriso de pureza nos lábios e uma erecção nas elipses.
Sabe-se o que para a história ficou. Nabokov escreveu um argumento da sua própria obra, e até foi nomeado a um Óscar por isso. O produtor do filme, James B. Harris, disse que se tratava do melhor argumento alguma vez escrito para Hollywood mas que não podia ser feito uma vez que não havia quem o levantasse (tinha 400 páginas!). Nabokov entreteu-se a compatibilizar, muitas vezes de forma incompreensível, as mais profundas aspirações de Humbert Humbert, com truques visuais que ilustrassem a coisa. Havia nesse argumento ordens impossíveis dadas à câmara (ou como se descreveu, à nabokamera) – ela devia a dada altura encolher-se com um arrepio, por exemplo – e cenas havia perto do surreal, como uma em que Humbert, ao ler a carta da mãe de Lolita (no filme, a excepcional Shelley Winters), confessando-lhe o seu amor, tínhamos acesso a vários planos de Humbert, ora em estilo de Hamlet, ora como Edgar Allan Poe, ora fazendo dele próprio. Imagina-se a genial loucura que poderia ser, tudo pontuado com uma aparição do próprio Nabokov no filme – coisa à la Hitchcock – definido no argumento como “the nut with a butterfly net”.
Ao que se conta Kubrick nunca se opôs a Nabokov propriamente mas, quando chegava a sua vez de decidir, ia expulsando um a um esses truques visuais, assim como as próprias motivações psicológicas da personagem que iria parar às mãos de James Mason. Além desse problema de censura que implicava a necessidade de tornar um pouco mais adulta e manipuladora Lolita (há quem descreva o próprio romance, mas isso aplica-se de certa forma também ao filme, como um “adulto fraco nas mãos de uma criança forte”), havia uma outra questão inerente à passagem da literatura ao cinema. Nas primeiras páginas do romance, Nabokov “despacha-se” a dar-nos todo o tipo de motivações psicológicas que explicassem a obsessão que Humbert iria ter por Lolita. Não só há a referida filosofia das ninfetas (e portanto, ao contrário do filme, no livro quando Humbert chega a casa de Lolita nós já sabemos dos seus inusitados gostos sexuais por estas meninas), como o episódio da sua infância em Paris. Um amor interrompido por uma menina que morrerá pouco depois, e que nas palavras do próprio havia sido o motivo de cristalizar como imagem do desejo uma criança daquela idade. Ora, tudo isto, Kubrick excluiu do filme. E porquê? Porque ao contrário do romance que quer dar-nos estes factos para melhor entrar dentro da cabeça de Humbert, no filme essa entrada estava limitada à voz off, e por isso havia que explorar a surpresa, o suspense, tudo materiais que Nobokov dava de barato.
Então o filme abre com aquela cena clímax em que Mason entra na mansão desorelhada de uma personagem ressacada, histriónica, que sabe que a dada altura vai morrer mas que prefere jogar ping-pong e falar sem parar. Essa personagem ficamos a saber é Claire Quilty (Peter Sellers num dos melhores papéis que me lembro) e vai surgir ao longo do filme muito mais vezes do que no livro. Mason mata Sellers e, assim, Lolita (1962) começa sob o signo de um “crime case” em que se sabe quem matou quem, mas não o motivo, nem se conhece nada das personagens. Essa inversão (o livro acabava mais ou menos onde o filme começa) tem assim este poder de trazer o mistério para este, evitando admitir, logo à partida, que se ia assistir a um filme de um baboso pedófilo. A aparição recorrente de Sellers, sempre em discurso torrencial, demente, ora como psicólogo alemão, ora como dramaturgo ou mesmo agente policial, vai trabalhando a estratégia de Kubrick. Não se trata então de um filme sobre predação sexual, mas sim sobre um homem com crescentes distúrbios psicológicos que se afunda na sua obsessão e que age de forma cada vez mais manipuladora sobre a sua deliciosa enteada (Sue Lyon), sobretudo após a morte da sua esposa e mãe desta.
Se parte da acção, no romance de Nabokov, é linguística – sendo a quebra psicológica de Humbert também dada através do estilo literário, de duas linguagens, uma confiante, outra desesperada, que se vão progressivamente chocando -, no filme, Kubrick quis dar à queda do protagonista uma dimensão visual. Por isso a decadência de Mason – e Lolita vê-se bem como uma espécie de continuação sexual da dependência do actor pela cortisona, em Bigger Than Life (Através do Espelho, 1956) de Nicholas Ray – mostra-se através de Sellers, e da introdução do tema do doppelganger. No final ficamos com a impressão que Mason na abertura do filme, ao entrar na mansão, era afinal na sua mente que entrava. E que era a si próprio que alvejava – lembram-se que o tiro era disparado sobre um quadro de Lolita que escondia Quilty? Como uma espécie de suicídio psicológico em que o desejo por ela se transformara num monstro fora de controlo, um monstro chamado amor.
Tudo dito e contado, talvez não se possa evitar o lugar comum do livro que é melhor do que o filme. Sobretudo, no que diz respeito ao desejo, ao desespero, como jaulas mentais que a todo o momento podem ser invadidas por um conjunto de preceitos sociais. O filme parece ficar à porta de tudo isto. Mas a suavização de Kubrick desta relação proibida não deixa de ter a sua graça, sobretudo tentando vender a ideia de um Humbert de sensibilidade europeia e requintada, numa cidade meia labrega dos Estados Unidos (Winters aqui tem um papel chave, pois é muito mais matrona e caricatural do que no livro). E também quando se substituem planos de violação e nódoas suspeitas por movimentos pélvicos da “já lady” Sue Lyon ou por gags com divãs irrequietos em quartos de hotel. Talvez tudo não passe afinal de um divertimento sujo, de uma dessas coisas que Hollywood soube tão bem fabricar com um sorriso de pureza nos lábios e uma erecção nas elipses. Repito Nabokov que dizia que se alguma vez fizesse cinema, aterrorizaria todos no set com a sua tirania e ódio que tinha ao trabalho de equipa: dizia ele que a Lolita é partes meias vulgaridade e inocência. É também o ajustamento focal à lágrima, ao sorriso, à inocência perversa aquilo que nos afasta de Lolita e aquilo que nos aproxima de Lolita. Inocente perversidade, perversa inocência. Tudo depende de onde se põe a câmara – o instrumento – e a forma como este se acerca de tudo isto.