Este ano dedicado ao Feminino, o Frames – Portuguese Film Festival espalhou-se entre vários pontos da Suécia, mas foi no arranque da sua 5ª edição em Estocolmo que por lá passei. No último dia desta etapa do Festival, a 19 de Março de 2018, a sessão das 19h da sala Klarabiografen da Kulturhusetstadsteatern recebia o realizador Nick Willing, filho da icónica artista portuguesa Paula Rego, para conversar sobre o filme que lhe dedicou, Paula Rego, Secrets & Stories (Paula Rego, Histórias & Segredos, 2017) e que a folha de sala do walshiano João Araújo, disponível à entrada, apresentava como ‘‘uma rara oportunidade para espreitar a intimidade de uma figura que vestiu carapaça orgulhosa contra o olho público’’. Seria precisamente a Paula Rego, artista maior e mãe do realizador, que iríamos dedicar a hora seguinte, entre envolventes histórias partilhadas generosamente e a entusiástica participação do público presente. Não fosse o ter de acabar e ainda hoje lá estávamos. Segue-se essa mesma conversa, aqui transcrita para português.

Sabrina D. Marques [SDM]: Este filme é uma experiência maravilhosa e que me toca muitíssimo. A Paula Rego é tanto uma artista incrível como é uma precursora embaixadora da liberdade, preocupando-se com a condição feminina e influenciando o seu tempo com a sua arte. Como é que foi, para si enquanto artista, fazer um filme com e sobre uma pessoa com uma estética tão demarcada – e que é, ainda por cima, a sua mãe?
Nick Willing [NW]: Como é que foi fazer um filme com a mãe? Fazer um filme com ela foi isto: por eu ter uma câmara, ela foi muito mais simpática para mim. Eu estava a filmá-la e, por isso, ela sabia que não podia ser intratável. [Risos na plateia] Muitas das velhas fitas que surgem no documentário foram filmadas pelo seu pai. Ele começou a filmar nos anos 20 em Portugal, o que é incrível. Ele foi dono de um dos primeiros cinemas lisboetas, um cinema privado onde ele mostrava, por exemplo, Bucha & Estica, Charlie Chaplin, etc. Algumas das câmaras dele ficaram para mim. Quando perguntei se podia ficar com aquilo, ninguém se importou e, por isso, acho que me tornei cineasta quando fiquei com as câmaras do meu avô. Devo muito ao homem que nem conheci: ele morreu quando eu tinha apenas 4 ou 5 anos. Desde que me tornei cineasta, tenho feito filmes. Filmes propriamente, de ficção – este é o primeiro documentário que realizo. É por estar protegido pela câmara que, então, ela é bastante simpática comigo e, passado algum tempo, ela começou a gostar da atenção e, progressivamente, começou a abrir-se, mais e mais. Demorou cerca de 6 meses até que ela se começasse a revelar mas, às vezes, ela não dizia grande coisa e eu tinha de regressar num outro dia. Ela sempre foi muito privada, nunca me contou quase nada.

SDM: Como é que se escolhe uma forma para este filme, considerando que está a fazer um filme que contempla legados massivos (e que dispõem, potencialmente, de inúmeros materiais e arquivos), deixados por dois artistas tão prolíferos como os seus pais?
NW: Essa é uma questão decisiva porque posso afirmar uma coisa: se estivesse a fazer um filme acerca do meu pai, Vic, o seu marido, seria um objecto completamente diferente. Porque eu sempre achei que ele era fantástico. Um génio, mesmo. Mas eu incluí no filme a versão dela sobre ele. Muitas vezes, dói ouvi-la dizer que ele era de uma determinada maneira, mas trata-se somente da sua verdade. Por isso, as escolhas que eu fiz convergem para a decisão de representar, sempre, a sua versão da sua vida. Não a minha. O meu objectivo era principalmente tentar representar a sua experiência. E acho que essa é uma tarefa muito especial, particularmente quando feita junto de alguém que se conhece bastante bem.
SDM: Talvez, no futuro, ainda faça um filme sobre o seu pai?
NW: Talvez.
SDM: Acho importante que se ouça a sua mãe falar de liberdade nos tempos que correm. Apesar de confessar timidez, a Paula Rego trata a arte como o lugar onde sempre pôde ser livre, sem censuras. Foi importante para si – enquanto criador – crescer neste reduto de liberdade extrema quando, lá fora, a censura enquadrava as cabeças? É que agora, de forma subreptícia, essa censura parece estar a regressar: estamos sempre a policiar o discurso, para não ofender minorias, raças, credos, para não sermos violentos, sexistas, xenófobos, etc. Com este medo de sermos politicamente incorrectos, não andamos sempre em redor dos assuntos sem pôr o dedo na ferida, ao contrário da Paula Rego?
A grande imposição do fascismo foi o silêncio.
NW: O que realmente aconteceu nos anos 50 e nos anos 60 – quando eu era menino – é que as pessoas não falavam de nada. Não se falava de igualdade de género, de discriminação, de nada. Era normal para as mulheres serem cidadãs de segunda, em tudo, mesmo na sua própria casa. A minha mãe até teve bastante sorte. O pai dela era muito especial e queria que ela fizesse o que ela queria fazer, que era tornar-se artista. Ele ajudou-a de todas as maneiras. Quando ela ficou grávida, como se vê no filme, ele não a castigou, o que é particularmente surpreendente em qualquer contexto mas, muito particularmente, no contexto dos homens portugueses daquele tempo. Ele suportou-a financeiramente e deixou-a voltar para a escola de artes, olhando pela criança ele próprio. Isso é incrível, se pensarmos nisso. Ele tratou da minha irmã Cas e em, 1953, a minha mãe foi acabar o seu curso. O seu marido, o meu pai, também foi alguém que a apoiou muitíssimo. É certo que ele teve alguns affairs, mas ela também e hoje – quando olha para trás – vemos que, para si, isso teve o peso de grande traição. Apesar de tudo, ele sempre a considerou como uma igual enquanto artista e nunca foi competitivo em relação a ela. Hoje em dia, mesmo que num contexto de ‘’politicamente correcto’’, é importante falar de tudo. Principalmente numa sociedade ainda tão patriarcal e onde o controlo dos assuntos é feito, precisamente, por não se falar das coisas. A grande imposição do fascismo foi o silêncio: o impossibilitar a discussão fosse sobre o que fosse. Só se falava de futebol.
SDM: Apesar de ter uma postura crítica e poderosamente activa sobre o seu tempo, a arte da Paula Rego parece ter começado a agir em direcção ao futuro. Hoje, livros de Hemingway são retirados das universidades por serem lidos como belicistas. A Vénus de Willendorf não tem lugar no Facebook, por causa de um algoritmo que censura nudez. Os quadros de Balthus são retirados das galerias, por serem considerados pedófilos. Mas não é verdade que a Paula Rego sempre viu as telas como um lugar pleno para materializar o perverso, o impudico, o chocante, o visceral… como traços que também fazem parte da condição humana?
NW: Sim, agora assistimos a este movimento de retirar do meio artístico peças que representem de ‘’uma maneira inaceitável’’. A isso, vou responder como se fosse a minha mãe que, por acaso nem gosta muito de Balthus enquanto artista. Mas sobre isso ela diria, muito simplesmente: É normal que lhe agradem jovens raparigas porque é disso que os homens gostam.

SDM: E essa presença está ligada com a questão da ‘’arte enquanto exorcismo’’ de que ela fala no filme?
Aquilo que consideramos ser a grande arte está constantemente a mudar.
NW: Isso é diferente. Isso tem a ver com os seus demónios pessoais e, para ela, pintar foi encontrar uma maneira de lidar com as suas dúvidas, os seus medos, com coisas que lhe provocam ansiedade, etc. Mas ainda sobre a questão do ‘’politicamente correcto’’: não podemos censurar nada nos nossos museus. Nada. Mesmo que julguemos ter razões para censurar alguma coisa, simplesmente, não podemos. Porque a censura é o pior dos crimes contra a arte. Não podemos queimar livros, mesmo que sejam pornográficos. Quando eu estava a crescer, tínhamos uma enorme colecção de ‘’livros pornográficos’’ em casa, da Olympia Press. Lembro-me de ler Henry Miller ou D.H. Lawrence, entre outros autores que não eram publicados por nenhuma editora senão aquela. A minha mãe tinha colecções daquilo que antes era considerado pornografia e que hoje consideramos como a mais elevada literatura. O que é que isto nos diz? Que aquilo que definimos como grande arte está constantemente a mudar. E esse conceito constrói-se, muitas vezes, de costas voltadas para o ‘’politicamente correcto’’.
Paula Rego, Secrets & Stories (2017) de Nick Willing
SDM: Agora vou passar a palavra para a audiência. Sintam-se à vontade para colocar perguntas ou fazer comentários.
Público [1]: Antes de mais, muito obrigada pelo seu filme. Não é só um objecto muito pessoal sobre a sua mãe, mas é também sobre si. Uma vez que estamos perante um projecto tão privado, vou atrever-me a colocar duas questões muito pessoais também. Quando, no filme, a sua mãe afirma que é ‘’casada com o seu trabalho’’, não pude senão questionar-me: será que o Nick e as suas irmãs nunca sentiram algum tipo de ciúme daquela relação com o trabalho? A outra questão ocorreu-me quando a vemos a riscar, através dos seus desenhos, as pessoas de quem ela não gosta: Será que isso não acaba por torná-la boa pessoa? Considerando que ela era má para os quadros e não tanto para as pessoas…
“Um artista é como um explorador. São os primeiros a chegar a lugares onde nunca ninguém esteve. E, na volta, trazem uma imagem disso. Uma imagem que nós nunca vimos mas que, de imediato, reconhecemos.”
NW: Isso é verdade, definitivamente. Nos quadros, podem fazer-se coisas que não se tem a coragem de fazer na vida real. E a minha mãe nunca teve a coragem para fazer certas coisas na vida real. Em certos casos, é uma pena. Uma vez perguntei-lhe: ‘’Se pudesses escolher não sofrer de depressão mas não fazer a tua arte, o que escolherias?’’ Ela respondeu que preferia não ter depressão e não fazer arte nenhuma. Não sei se ela estava a dizer a verdade mas a resposta não deixa de ser interessante. Por acaso, nao coloquei esse pedaço no filme – mas foi o que ela disse. Em relação à primeira questão… quando eu era criança, durante a maior parte do tempo, os meus pais não só não estavam em casa como não estavam, sequer, no mesmo país. Um dia, quando os meus pais regressaram de uma viagem de férias (para dançar em Madrid ou para visitar Paris ou para trabalhar em Londres, ou algo do género) eu, que vivia na casa do Estoril, disse ao meu pai: ‘’Na escola, tenho colegas, que têm pais médicos, arquitectos, advogados e eu consigo perceber quais são os propósitos das carreiras deles. Mas qual é o objectivo de ser um artista? O que há assim de tão importante que tenham de estar sempre longe?’’ Ele respondeu-me com a rapidez de quem nem sequer tem de pensar na resposta. Disse: “Um artista é como um explorador. São os primeiros a chegar a lugares onde nunca ninguém esteve. E, na volta, trazem uma imagem disso. Uma imagem que nós nunca vimos mas que, de imediato, reconhecemos.” Tenho pensado nestas palavras desde então e ainda as acho maravilhosas. Na altura, comecei a olhar para essas imagens com atenção redobrada, à procura de perceber por onde é que tinham andado. Não posso falar pelas minhas irmãs mas eu sinto-me muito orgulhoso. Gosto de ter as imagens. Claro que, na altura, quando era miúdo, preferia ter a mãe: a olhar por mim, a cantar comigo, a levar-me à escola e todas essas coisas que as ‘mães a sério’ fazem. Mas agora, olhando para trás, estou bastante contente por termos quadros pintados por Paula Rego.
Público [2]: Eu gostaria de dizer que não é uma escolha estar doente e ser artística. Não há escolha. Fiquei muito feliz por ver que ela procurou um especialista porque houve uma altura em que ela bebia e se auto-medicava. Era auto-destrutivo e preocupante para o seu pai.
NW: A senhora é artista?
Público [2]: Não, sou psicoterapeuta. (riso geral)
NW: OK! Alguém a precisar de uma psicoterapeuta? Claro que tem razão. As duas coisas são mutuamente exclusivas. Estava apenas interessado em perceber o que é que ela escolheria se tivesse essa espécie de ‘’decisão mágica’’. Era algo que me perguntava quando era pequeno: será possível ser um grande artista e também um grande pai/mãe? A senhora poderá responder: ‘’É claro que é possível, com a terapia adequada!’’, mas eu cresci no meio de muitos artistas e conheço vários dos seus filhos e ainda estou para conhecer um que, na tarefa parental, tenha sido minimamente decente. O que é interessante é que também ainda estou para conhecer algum filho que tenha, realmente, sofrido com isso.
Público [3]: Muito obrigada pela brilhante perspectiva que nos trouxe sobre a obra da sua mãe. Eu cresci em Portugal, sendo inspirado pelos diferentes momentos do seu trabalho e, ao estudar artes, certas obras tornaram-se ainda mais importantes. É interessante assistir-lhes através deste documentário e, pedindo emprestado o tom intimista que guia o filme, pergunto-lhe: estava secretamente à espera de outra resposta à pergunta final?
NW: Claro que sim. (risos) Estava à espera que ela respondesse imediatamente: ‘’Os meus filhos’’. Por isso é que na pergunta eu enfatizo: ‘’Tu ganhaste tantos prémios, a Rainha acha que és brilhante e TIVESTE TRÊS FILHOS…’’ (riso geral) Mas essa é a sua verdade e é mesmo muito especial dizer a verdade. É um facto.
Público [3]: Acha que ela foi má para si nesse momento?
Ela quer estar à altura dos melhores e é a isso que todas as mulheres deviam aspirar.
NW: Não! Nem pensar! Acho que ela nem sequer pensa nisso. E nós já somos todos crescidos, há muito tempo. Quando se tem 8 anos, pensa-se nisso com todo o direito. Aos 50, seria ridículo. Tendo-me tornado realizador e, por isso, sendo também eu uma espécie de artista (risos), penso sobre isso enquanto pai de dois filhos, que eu adoro. Mesmo que eu considere que os meus filhos são um tudo-nada mais importantes para mim do que nós fomos para ela, ser pai só fez com que eu a admirasse cada vez mais. Pela sua honestidade mas, acima de tudo, por ter feito tudo o que fez apesar de ser mulher. A minha parte favorita do filme é aquela em que ela diz: ‘’Ser pintor é ser homem e quando eu estou a pintar sou um homem’’. O que ela está a dizer é que não quer ser mulher se isso significa que vai ser posta noutra exposição, com as restantes mulheres. Ela quer estar à altura dos melhores e é a isso que todas as mulheres deviam aspirar. Não deves estar lá por seres mulher ou homem – deves estar lá por seres um ou uma grande artista. Mas a vantagem de ela ser mulher é que ela representou verdadeiramente a outra metade da população que não estava a ser representada. Aquelas pinturas sobre os abortos só podiam ter sido feitas por uma mulher, provavelmente por uma mulher que os tivesse tido. Nem sequer consigo imaginar o olhar de um homem, mas teria sido completamente errado. E ela fez aquilo de uma forma que funcionou no interior de uma sociedade portuguesa que não sabia como votar. E isso ensina-nos uma lição essencial: a de que a grande arte faz-se a partir da experiência pessoal. É isso que resulta e sempre foi assim este é só mais um exemplo disso.

SDM: Estamos no limite do tempo e vai ter de ser a última pergunta.
Público [4]: Falou do facto da sua mãe dizer sempre a verdade. Experienciei essa qualidade como uma ingenuidade ou, como dizemos hoje em dia, como uma permanente expressão ‘’sem filtros’’. A forma dela de dizer as coisas traz-nos uma certa personalidade infantil, o que se acentua quando o Nick nos diz que ela era mais comportada ou educada quando estava a ser filmada.
NW: Acho que a palavra é acriançada e não necessariamente infantil. Mas para se ser pai é preciso ser adulto e, se calhar, é por isso que ela não foi talhada para a maternidade, que implica uma série de escolhas responsáveis que se metem no caminho de ser artista. Foi Picasso quem disse que todas as crianças são artistas, e que o difícil é permanecer artista em adulto. Por outras palavras, ele está a dizer que crescer estraga tudo. Ser um grande artista é, precisamente, reter a inocência, preservar a capacidade com que se nasce de encarar a matéria-prima em bruto. A frase mais famosa do meu pai é: ‘’Nunca se fica melhor, apenas se faz melhor’’. É algo brilhante de se observar e eu concordo em pleno: é-se igualmente artista aos quatro anos, mas só depois se aprende a desenhar melhor, a pintar melhor, etc. Mas a essência que existe no artista aos quatro anos é a mesma – senão melhor.
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Deixo o meu agradecimento a: Nick Willing, por autorizar o registo, a Cláudia Velhas pela gravação e a João Madureira pelas fotografias. Obrigada ainda à organização do Frames, André Marques Spencer, Sueli Marques Spencer, Vera Salgado Guita, Fernanda Torre e a todos os colaboradores e participantes.