Em La vallée fantôme (O Vale Fantasma, 1987), de Alain Tanner, um dos personagens, que é um realizador de cinema, diz: “O cinema é como um cancro. Não, é infeccioso, é mais como a sida.” No ensaio sobre as metáforas da sida, Susan Sontag chama a atenção desta passagem para sublinhar que aqui a comparação com o síndroma se dá pela sua “latência que permite a utilização mais específica da metáfora da sida [por comparação à do cancro].” Esta ideia do cinema como entidade que se instala secreta e progressivamente nos espectadores (espectadores cinéfilos, muito activos na suas rotinas ópticas) e dentro deles se desenvolve, ocupando-lhes tudo, é certamente um “sub-aproveitamento” dos contornos da sida, mas certamente uma metáfora bastante elucidativa da relação obsessiva com a cultura do cinema.
No entanto, a imagem da cinéfilia como vírus reflecte, em boa verdade, uma relação com o cinema que não é dos espectadores casuais. É a daqueles que enformam o mundo através do cinema, como se a sua percepção das relações, dos sítios, das conversas, enfim de tudo o que os rodeiam, estivesse turvada pelas imagens que da tela se instalaram nos seus corpos. A cinefilia coloca-se a jeito destas metaforizações exactamente do mesmo modo que acontece com outros modos de “infecção” cultural, em especial aqueles que replicam o viver: a montante o teatro, a jusante os vídeo-jogos, artes que se emaranham nos jogos de representação por si criados. Regressando a Sontag, logo em 1987 a ensaísta percebeu que não era “de surpreender que o mais recente elemento transformador do mundo moderno, o computador, recorra a metáforas colhidas na nossa doença transformadora mais recente.” E também não é surpreendente que os modos da cultura popular se tenham alterado tanto (e de forma tão infecciosa) com a democratização da web 2.0.
Ready Player One deixa-se ler segundo dois sentidos: o da herança cinéfila e o do consumo cultural como fenómeno de massas.
Mas já lá vamos. Se comecei com Tanner, passo agora para Carax. Mauvais sang (Má Raça, 1986) é, também, uma parábola sobre a sida, mas antes disso (ou através disso), é uma parábola sobre a cinefilia. Luís Miguel Oliveira fez essa análise aquando da reposição dos dois primeiros filmes do senhor Leos, sob o signo da herança: “a transmissão é um tema central: há um vírus a dizimar a humanidade (…) e se à época se viu aqui uma metáfora da Sida hoje a relação com a doença parece meramente instrumental. Também na época se viu no filme uma abordagem do tema da herança como um fardo (Daney escreveu isso, então, no Libération), como se Mauvais sang fosse um filme para matar o pai [Godard] ou, então, para se deixar matar por ele – que é possivelmente a moral da história.” Ready Player One (Ready Player One: Jogador 1, 2018) de Steven Spielberg é muito um filme que se deixa ler nestes dois sentidos, o da herança cinéfila e o do consumo cultural como fenómeno de massas.
Um filme sobre o testemunho-infeccioso que se estabelece entre o consumidor-amante e o objecto de desejo: que mais que uma mera entidade objectal, é, antes de mais, uma larga entidade cultural, infundida pelos detritos que cada um de nós (espectadores) nela deposita. A peça, o filme, o vídeo-jogo, como superfícies infinitamente conspurcáveis, ao ponto de, sobre elas, já não se encontrar nada senão a própria sujidade. Posto de modo muito erudito (e a pender para o críptico), por Giorgio Bertellini, segundo o conceito foucaultiano da genealogia do filme enquanto palimpsesto cultural, este será uma “estrutura de multi-camadas [que] implica a perda das aurais textualidades ‘originais’, mas também a expansão horizontal e pluridisciplinar das fontes de evidência cultural. Assim, a modulação genealógica da obra de arte, isto é, a sua relevância artística e cultural, resulta não só da sua específica acumulação crítica, mas também da reunião heterogénea de textualidades restritas.” Estas textualidades (os ditos detritos) são, num caso particular, a cinefilia, e num caso muito significativo, a cultura de fãs (fan based culture), em torno dos filmes, mas, de modo mais lato, em torno de todos os fenómenos da cultura de massas (música, televisão, cinema, vídeo-jogos, cultura de internet, etc.).
Se a empresa de revolução cultural que Spielberg constrói, onde tudo se equivale, é uma metáfora sobre a liberdade da Internet (ameaçada pelos interesses corporativos das grandes tech companies), é, paradoxalmente, um reflexo desses mesmos interesses corporativos da indústria cinematográfica que descobriu, nos últimos anos o poder da mercantilização da nostalgia. Há ainda a juntar um outro filão dos grandes estúdios de Hollywood, os universos que se cruzam de filme em filme onde a ideia de serialização se cristalizou completamente. Neste sentido, Ready Player One não traz nada que, por exemplo, Wreck-It Ralph (Força Ralph, 2012) já não contivesse em potência (e em ingenuidade), e é sintoma de um paradigma de produção que parece cada vez mais fechado em si mesmo.
Em termos de estrutura narrativa o filme deixa muito a desejar. O final é, aliás, quase caricatural no modo como os lugares comuns e os arquétipos da fábula spielberguiana se amontoam (os vilões presos no carro e a discutir, o velho sábio que acolhe as crianças, os planos de grua que põem nas alturas, a harpa a lamber as feridas superficiais, os gags descompressores…). No entanto, aquilo que realmente fica é o momento da herança (lá está!), em que o próprio Spielberg homenageia um dos seus mestres, Stanley Kubrick, transformando The Shinning (Shinning, 1980) num vídeo-jogo de terror (como só mesmo Spielberg seria capaz) e, consequentemente, ter um vilão chamado Nolan Sorrento(ino). Isso, e também uma ideia de mise en scène que descreve em continuidade o universo digital (sinuosos planos sequência que mimetizam a torrente contínua de informação), por oposição a uma montagem muito mais sincopada de campo/contra-campo no “mundo real”.
Ready Player One é, depois de tudo (ou antes de mais), um filme sobre essa por-vezes-não-tão-fina-assim camada que se sobrepõe a toda a produção cultural (de forma mais significativa a partir dos anos 70 – em resultado, também, do próprio trabalho de Spielberg enquanto construtor e promotor dessa relação obsessiva com os universos dos filmes). É um filme que propõe (ou melhor, apresenta) uma substituição do real pelo OASIS (uma plataforma de realidade virtual feita rede social hiper-complexa, criada por um fan boy nerd). Assim, o romance primeiro, e o filme depois, enchem-se de infinitas referências da cultura pop que ora são acessíveis ao mais comum dos mortais, ora são apenas acessíveis por um nicho de conhecedores da não-tão-pop-assim história. Aliás, o filme apresenta, como personagens, um conjunto de especialistas (de bata branca e em ambiente de laboratório) que esmiúçam e teorizam a natureza dessas textualidades que se sobrepõem no OASIS. A chave (literalmente) só será conquistada por aqueles que se deixem mergulhar (bem fundo) nessa superfície (superfície que se sobrepõe a duas outras: a superfície das imagens fílmicas e a superfície da tela).
Em conclusão, o filme procura uma fusão entre realidades, onde uma e outra se iluminam. O OASIS enriquece-se com a realidade, e a realidade com o conhecimento virtual (o amor origina pelas identidades esfumadas do online e as disfuncionalidades sociais resolvem-se através do universo binário). Uma realidade híbrida (como a nossa?) onde o concreto e o imaterial das relações humanas servem uma mesma função: os encontros (e encontrões) entre cada um de nós.