Rebecca (1940) é um desses filmes que cada cinéfilo guarda para si religiosamente, qual globo mágico, onde todos os mistérios do mundo se podem encontrar reflectidos. Para mim tem sido fruto de infinitos prazeres. Filme que revejo amiúde, que sei mais ou menos de cor, e que ainda assim me oferece, sempre, pequenas descobertas – sinais dos meus demónios, que infectam o filme, ou melhor, que encontram no filme uma forma de se comunicarem comigo. O carinho que tenho por este filme é assim coisa que preocuparia qualquer terapeuta das actividades mentais e por isso mesmo procurarei que percebam, um pouco, o sinal do meu amor por Rebecca. Não vos farei grande contextualização do filme dentro da obra de Hitchcock – e só isso encheria alguns parágrafos –, nem procurarei aprofundar muito na acção nem na relação cinema vs. literatura. Pelo contrário, seguirei uma via estranha, mas típica dos amantes, que encontram no corpo desejado uma porção (um pormenor) que apreciam mais que tudo. Assim, sobre o filme, destacarei três cenas que para mim são, ainda, lugares de infinito fascínio. A saber: a sequência do precipício, a sequência em que se reconstitui o “acidente” na cabana junto ao lago e, por fim, a sequência dos filmes caseiros da lua-de-mel. Boa sorte, neste macadame esburacado que é o amor cinéfilo. Cuidado com a suspensão.
Depois de um par de planos deslumbrantes que reforçam a componente onírica de Rebecca e nos instalam num flashback do qual nunca chegamos a acordar (essa natureza mágica das ruínas prolépticas de Manderlay e da voz off que não mais se repetirá), somos interrompidos com o súbito choque das ondas contra os rochedos, num plano picado. A câmara faz uma panorâmica ascendente para a esquerda que acaba por enquadrar ao longe um homem à beira do precipício. Corte. Grande(íssimo) plano do rosto de Laurence Olivier que, sem expressão, olha o abismo e balança levemente, ora no sentido dele, ora no sentido inverso. Novo corte. Super-picado sobre o abismo enquadrando em primeiro plano a nuca de Olivier e ao fundo as ondas quebrando nos rochedos. Corte. Plano dos pés dando um passo em frente. Corte. De novo o plano do rosto agora com um pequeno traveling à frente e ouvimos uma voz que grita “No! Stop!” Ele vira o rosto. Corte. Precipício com duas figuras, ele em primeiro plano mais acima e ela ao fundo, a câmara voa sobre o nada, num enquadramento sem chão possível, e o diálogo começa em campo/contra-campo. “What the devil are you shouting about?” / “I only thought…” Até que as personagens se encontram frente a frente num só plano. Conversa aos esticões. Ambos se vão e ficamos sós com o mar. Fade para preto.
Um homem e uma mulher ligados por um fantasma (Rebecca), por um precipício (a hitchcockiana queda) e pelo mar, sempre o mar.
Nesta sequência encontramos a colocação em prática daquela regra de ouro do cinema de Hitchcock, a saber, nunca dês a entender ao espectador, através da montagem ou do enquadramento, o desfecho de uma cena antes que este aconteça. No caso em questão a planificação, o ritmo da montagem, a acção (o passo em frente) e a escala dos planos (o plano muito geral com o homem do tamanho de uma formiga num mundo enorme e desolador contrastando com o tamanho enorme da sua cara em grande plano – o homem na sua insignificância versus a miríade de convulsões de uma alma em ebulição) dão-nos uma leitura, que Olivier se irá suicidar. Porque se quer criar uma tensão e porque se deseja construir uma surpresa na “salvação” (o terceiro acto que resolve a dúvida), ela terá que entrar de repelão por uma voz sem corpo e sem imagem. Ou seja, Fontaine salva Olivier e nós salvamo-nos também de assistir ao horror. Logo aí fica encetada o tipo de relação que se irá manter ao longo do filme entre os dois personagens e entre eles e nós que os vemos deste lado: ela é a salvação dele, é quem o arranca do passado, que o recupera do mundo dos mortos, e é também ela que nos conduz, que nos avisa dos cadafalsos e dos caminhos a evitar.
Outro aspecto que aqui se afirma como definidor do filme a vir é a presença do mar, isto porque Rebecca (“alegadamente”) morrera afogada no lago e porque a água é um elemento que está sempre presente (“listen to the sea…” ou “still water certainly runs deep” ou ainda “she was beaten in the end, but it was not a man or a woman, it was the sea”) e portanto é através da água que este novo casal se liga. Não passam muito minutos até que os vejamos aos dois, em Monte Carlo, dançando abraçados, através do reflexo de um lago artificial, isto é, através da água onde Rebecca jaz morta. E como refere Bénard da Costa, pode aproximar-se essa cena do contrato nupcial no notário após o casamento de Olivier e Fontaine, momento esse em que por esquecimento o notário lança do primeiro andar o documento marital que liga os recém casados ao nível do chão: um homem e uma mulher ligados por um fantasma (Rebecca), por um precipício (a hitchcockiana queda) e pelo mar, sempre o mar.
Mas sendo isto Hicthcock nada é o que parece e aqui não é com certeza. Mais tarde Maxim de Winter (Olivier) explica: “Do you remember that cliff where you first saw me in Monte Carlo?… That was where I found out about her… She stood there laughing, (…) and told me all about herself — everything. Things I’ll never tell a living soul. I wanted to kill her. It would have been so easy. Remember the precipice? I frightened you, didn’t I? You thought I was mad. Perhaps I was. Perhaps I am mad.” Portanto somos obrigados a olhar retrospectivamente para a cena de abertura e interpreta-la de modo diverso. Maxim não se queria suicidar, estava simplesmente a recordar quase melancolicamente o local onde podia ter terminado o seu casamento falso e todo o sofrimento que se sucederia. Isto é, não era um desejo suicida mas um olhar nostálgico. Confirma-se pois a máxima de que (todo?) o cinema revolve sobre o rosto humano e que este é necessariamente impenetrável. Então a noção que de que ela o salva é falsa, ela apenas se intromete desastradamente – como é seu hábito (veja-se a jarra caída, a estatueta de loiça quebrada…) – numa história que começara muito antes dela e que talvez continue muito depois (o happy ending é provavelmente um dos mais ambíguos do cinema americano ou do cinema tout court). Assim a disposição maternal dela cai em saco roto e ela ternurentamente deixa-se levar para a toca do lobo. O lema hitchcockiano do desfecho-não-antecipado sobrevive não só dentro da cena como ao longo do filme até chegarmos ao middle point e Fontaine ser apanhada pelo lobo (ou loba, neste caso). Assim Hitchcock faz-nos crer que acompanhamos uma protagonista salvífica mas isso não acontecerá senão quando entramos no terceiro acto e mais uma vez as cartas se viram e Maxim passa de controlador a servo e ela de inocente a regente.
Ele submete-se ao olhar dela. E daí em diante o fantasma de Rebecca esmorece (mas pode um fantasma morrer?) e Fontaine passa a ser finalmente mulher.
Passo agora à segunda sequência, a da revelação. Sobre ela note-se, primeiro que tudo, a mestria de Hitchcock: quando a conversa entre o casal se faz por temas conhecidos de ambos, os planos enquadram sempre os dois em simultâneo no mesmo rectângulo, frente a frente, ela de pé e ele sentado, ela no colo dele… Só quando a confissão começa e Maxim revela que foi ele quem colocou o corpo de Rebecca no barco afundado a conversa passa a dar-se em campos e contra-campos das faces dos dois – como se a partir daí já não pudessem estar as duas faces juntas no mesmo quadro. A separação, o súbito envelhecimento dela e a primeira vez em que ele se mostra vulnerável fazem-se por uma separação do casal também na e através da realização. “Will you look into my eyes and tell me that you love me now…” Ela não sabe o que responder, levanta-se e aproxima-se da porta que a levará para longe da desgraça e do sofrimento. Ele miserabilista massacra-se. Ela pára, a câmara começa um traveling atrás, como já fizera quando ela ficara sozinha no quarto depois de aceitar o pedido de casamento, ou na primeira revelação com Frank da contabilidade ou na biblioteca entre os braços de Olivier. Mas em todas esses momentos a câmara recuava e enquadrava a mulher (ou o casal) do topo da cabeça à ponta dos saltos isolando-a, colocando-a em confronto com um espaço e com uma circunstância em que tudo trabalhava conta ela. Aqui, como dizia, a câmara recua sim, mas ela, pela primeira vez, não fica estática, ela avança para a câmara, e para Maxim que está no fora de campo, atrás de nós, ela não se deixa encolher face à pompa hitchcockiana, não se deixa enquadrar na solidão, avança e pela primeira vez mostra força para com tudo e todos, uma força que não é só narrativa mas que é também extra-fílmica. Nesse momento ela salta do ecrã para lá dos quadros e dos movimentos de câmara, para lá dos plot points e para lá de toda a parafernália de ver e dar a ver o cinema, ela avança e tudo fica para trás. E já lá vai… “No it’s not to late, I love you more then any thing in the world.” E depois aquela reacção, como é capaz um rosto conter surpresa, terror, alegria, o riso e o nojo, tudo ali condensado num traveling à frente que a apanha de novo. Isto tudo num só plano, tudo em sequência, mise en scène da ligação e do afastamento e de novo da ligação e de novo do afastamento. Para que depois tudo volte ao lugar de partida, mas mais forte… Mas nunca inquebrável, nenhum homem nem nenhuma mulher, só o mar, sempre o mar.
Nesta cena, em particular neste plano, Fontaine – sim a personagem não tem nome, porque Rebecca sem corpo toma tudo, e ela com corpo não toma nada, pelo menos até esse plano… e a um outro que está para vir – deixa de ser a criança ingénua, o exacto oposto de Rebecca (e exactamente por isso é que ele a ama, porque ela é tudo o que a outra nunca foi), e passa a ser uma criatura nova. Para isso temos que esperar alguns planos, ouvir a revelação do precipício e depois lá vem o super-citado plano de Rebecca sem Rebecca, esse em que a câmara filma a ausência de um corpo em movimento, a acção da inexistência, enfim, aí filma-se o fantasma. Mas como? Se recuarmos percebemos que todo esse plano é uma subjectiva de Fontaine, ou seja, como diz Bénard “as duas mulheres fundem-se: (…) vemos através do olhar de Fontaine, tudo quanto ele descreve (cinzeiros, cordas, etc…) como se tudo de novo se recapitulasse e viesse nessa noite, trazido pelo corpo de Rebecca e pela aparência de Fontaine”. No entanto há por outro lado uma apropriação do olhar de Maxim por Fontaine, é que a subjectiva dela corresponde ao olhar, memória e descrição dele. Por isso, pela primeira vez ele submete-se ao olhar dela. E daí em diante o fantasma de Rebecca esmorece (mas pode um fantasma morrer?) e Fontaine passa a ser finalmente mulher.
Este outro lado é o de Mary Ann Doane em The Desire to Desire: the Woman’s Film of the 1940 – na típica onda da crítica feminista – em que descreve esse mesmo plano como “the story of a woman culminates in the image of a man” referindo-se à subjectiva anterior que termina numa panorâmica de 180º no rosto de Olivier. No que respeita ao diálogo, Donae refere que Maxim apropria o ‘Eu’ de Rebecca ao descrever as circunstâncias da sua morte recorrendo à primeira pessoa (“Aren’t you going to kill me?”) e portanto Rebecca é uma figura sem corpo, que por isso mesmo, pela não substância, pode ser controlada e manuseada pelo marido e pela substituta. No entanto, estou mais próximo de Bénard que entende a apropriação de Rebecca por Fontaine, através do referido plano subjectivo, como uma confluência entre olhar sem corpo e corpo sem olhar, ou alternativamente, com Alison L. McKee que em The Woman’s Film of the 1940s: Gender, Narrative and History encara esse momento como um de partilha de olhares, de Maxim e de Fontaine, um ponto de vista comum sem género, aliás andrógino, em vez de uma transferência de masculine gaze, como diria Laura Mulvey. Ou seja, Rebecca que fora até então a causadora da desunião funciona agora como elemento de ligação e de aproximação do casal – é através do movimento imaginado dela naquele espaço e na partilha de olhares entre os vértices do triângulo que Maxim e Fontaine finalmente se apresentam um ao outro sem sombras, mistérios e mentiras. E isso só acontece porque a morta ainda actua, porque Rebecca ressurge dos mortos para revolver os vivos enterrados em memórias e de lá os sacudir para o presente e para o amor.
No fundo o espectro de Rebecca impõe-se e é ele que transfigura o sentir daquelas imagens, que já não podem jamais ser felizes, porque as olhamos através dele e dos seus mortos.
E chego agora à cena dos filmes caseiros que retratam a lua-de-mel. Primeiro que tudo, há que sublinhar que esta cena não está presente no romance de Du Maurier e Hitchcock, na conhecida conversa com Truffaut, confirma que acrescentou essa cena exactamente para que nos pudéssemos colocar em perspectiva aquela relação e confirmar que antes dos medos, confusões, desgostos e desilusões existira felicidade e comunhão. Segundo, é esta a primeira vez que, de forma tentada e redondamente falhada, poucos segundos depois, Fontaine tenta ser Rebecca (ou pelo menos assumir dela um certo espírito, tentativa acidentada e de novo também rapidamente falhada que repetirá sem o saber com o vestido do baile de máscaras) quando arranja o cabelo e se veste com um vestido preto com um arranjo de flores brancas, como encontra numa revista – mesmo sabendo que ele lhe pedira “please promise me never to wear black satin or pearls”. Nem por acaso, cada uma dessas tentativas se faz através de vestidos de fantasia, Fontaine só consegue ser uma Rebecca de pechisbeque. Terceiro, não podemos descurar a qualidade meta-fílmica de filme dentro de um filme, de uma projecção dentro de uma projecção, mas também de como aí se tem acesso a uma elipse que nunca havia sido retratada nem referida (a lua-de-mel) e se reflecte a própria posição do espectador na sua relação com o olhar. Mas mais importante, o que aí se ensaia é a relação dessas duas coisas (o cinema é uma janela e um espelho como diz Andrew Sarris), isto é, de como o o espectador pode agir sobre o retrato e de como, inversamente, o retrato funciona para o espectador como matéria moldável.
Este terceiro ponto é aquele que me interessa abordar mais profundamente, pela força simbólica que contém e pelo precedente narrativo que cria – quase justificando e auxiliando o exercício de collage fílmico no sentido daquilo que Walter Benjamin anunciava como sendo o futuro do cinema quando o científico e o artístico andassem de mãos dadas (“uma das funções revolucionárias do cinema será a de tornar reconhecíveis como idênticos os aproveitamentos artístico e científico da fotografia, até agora divergentes, na maioria dos casos”), que é como quem diz o criativo e o analítico, ou melhor, o realizador e o crítico.
Mas antes disso deixem-me focar primeiro a cena em concreto. Fontaine surge para assistir às recém chegadas filmagens da lua-de-mel com o referido vestido preto. Olivier espanta-se e logo esquece. O projector começa a rodar, as luzes apagam-se e as imagens de piqueniques felizes, passeios junto ao mar, risos e olhos brilhantes vão surgindo no ecrã. Sobre ele ouvimos os comentários que nada acrescentam – aliás, mais banal era impossível –, “Ah, look, now. Look at that.”, “Ah, look at you. There.”, “Oh, I like that.” Ou ainda “Oh, remember that ?”. Até que a película rasga, a imagem descaracteriza-se em manchas abstractas e o branco sobrepõe-se a tudo, devo ter enrolado isto mal mais uma vez diz Olivier. Depois dá-se o incidente do china cupid e a projecção retoma. Mas agora já não se regressa ao mesmo, porque depois da humilhação face aos criados as desculpas dela sucedem-se, as imagens já perderam o seu poder encantatório de felicidade, delas já pouco emana senão a confirmação que o passado ao passado pertence, de que a nostalgia nada pode contra o presente. E a câmara de Hitchcock deixa de nos mostrar os filmes caseiros e só nos mostra os rostos alumiados pela luz cintilante do projector. Portanto a parafernália do cinema tanto nos pode levar para sítios mágicos onde podemos aceder imediatamente, como Fontaine desejara (“I wish there could be an invention… that bottled up the memory like perfume. And it never faded, never got stale. Then whenever I wanted to, I could uncork the bottle… and live the memory all over again.”), a uma memória feliz e dela nos alimentarmos ‘fetichisticamente’, ou por outro lado, pode ser um mecanismo de tortura que não permite esquecer um passado (feliz ou triste, pouco importa), como Olivier lhe explicara de seguida (“Sometimes, you know, those little bottles contain demons… that have a way of popping out at you… just as you’re trying most desperately to forget.”). A sequência dos filmes caseiros tem assim, primeiro que tudo, essa capacidade de evidenciar o poder duplo e dúplice do cinema que é simultaneamente onírico e testemunha do real.
No entanto a cena continua, e nesse continuar insere-se um instante de força anímica estrondoso: Fontaine fala por falar e refere, sem querer, o gossip (vulgo coscuvilhice) que sobre ela não se deposita nem depositará nunca – afirmando implicitamente que sobre Rebecca esse não era o caso (como mais tarde se confirmará) – acordando o monstro enraivecido que Maxim sempre traz consigo. Ele levanta-se e coloca-se em frente do projector cobrindo a projecção e como tal impedindo que as imagens alumiassem os rostos e as almas. Tudo fica escuro com uma iluminação carregada. Ela desculpa-se. Ele olha para ela sem soltar um som que seja, mudo e quieto com o som do matraquear da película a correr – “Don’t look at me like that” implora-lhe. O que simbolicamente se infere dessa cena é que Maxim sobrepõe o seu olhar ao da câmara, isto é, impede que se veja o cinema, para que só o seu olhar sobreviva. E depois fala-se de happiness e dessas coisas que eles já não têm, e olhamos de novo para a tela e vemo-los abraçados, mas o olhar dele impõe-se, a depressão dele impõe-se, no fundo o espectro de Rebecca impõe-se e é ele que transfigura o sentir daquelas imagens, que já não podem jamais ser felizes, porque as olhamos através dele e dos seus mortos. A certa altura pergunta-se no filme “Do you think the dead come back and watch the living?”, mas talvez a pergunta devesse ser Achas que os vivos se vêem pelos olhos dos mortos que regressam?
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Rebecca passa no Auditório do Centro Cultural de Cascais, dia 7 de Abril, às 16h. Sessão dedicada à escritora Ana Teresa Pereira, com apresentação do investigador Amândio Reis. Este é o primeiro filme do ciclo “O Escritor da sala de Cinema”, programado e organizado pela walshiana Raquel Morais, e que ocupará os Sábados de 7 de Abril a 20 de Maio.